Guia politicamente preconceituoso: as falácias de Narloch sobre a escravidão

Baseando-se principalmente na narrativa dos que lucravam com a escravidão, Narloch tenta deslegitimar a luta do movimento negro, fomentando conformismo e preconceitos

“Os preconceitos de cor e sangue que reinam tão soberanamente na sociedade … têm, destarte, uma função verdadeiramente providencial. São admiráveis aparelhos seletivos que impedem a ascensão até as classes dirigentes desses mestiços inferiores, que formigam nas subcamadas da população …”

A passagem acima, retirada do livro Populações meridionais do Brasil, de Francisco Oliveira Vianna, publicado em 1918, revela que a história politicamente incorreta não é um fenômeno novo. No passado, essa pseudo-história serviu a ideologias racistas. No presente, serve a outras ideologias. Depreciar a luta quilombola é, por exemplo, uma forma de combater conquistas das atuais comunidades remanescentes da escravidão, comunidades que muito lutaram pela reparação de direitos e legalização de terras por elas secularmente ocupadas.

A história politicamente incorreta também descontextualiza os casos de escravos que conseguiram a liberdade. Omite que a alforria ocorria principalmente entre os cativos domésticos e das cidades. Omite que para a imensa maioria dos escravizados nos trabalhos agrícolas, a libertação estava fora do horizonte de possibilidades. As descontextualizações das experiências individuais serve para transferir aos despossuídos os motivos de sua condição social precária. Através de exemplos do passado, desestimula-se a crítica ao presente e promove-se a culpabilização dos dominados: os escravos não conseguiam a liberdade por não se empenharem o suficiente para alcançar esse objetivo…

Também é importante criticar a interpretação avançada a respeito da abolição. Imaginar que esse movimento decorreu apenas da pressão estrangeira é desconsiderar a luta de abolicionistas e escravos brasileiros.

Ao negar a legitimidade das mobilizações populares, promove-se o conformismo. Portanto, criticar a história politicamente incorreta é um exercício de cidadania. Essa crítica não deve ficar restrita a salas de aula. O combate a essa forma de obscurantismo e de exaltação ao atraso é responsabilidade de todos.

Zumbi é um falso herói?

“Zumbi, o maior herói negro do Brasil, o homem em cuja data de morte se comemora em muitas cidades do país o Dia da Consciência Negra, mandava capturar escravos de fazendas vizinhas para que eles trabalhassem forçados no Quilombo dos Palmares. Também sequestrava mulheres, raras nas primeiras décadas do Brasil, e executava aqueles que quisessem fugir do quilombo”. (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Quem pesquisar a palavra “herói” no google encontrará os seguintes primeiros resultados: “mortal divinizado após sua morte; semideus”; “figura arquetípica, personagem modelo, que reúne, em si, os atributos necessários para superar, de forma excepcional, um determinado problema de dimensão épica”; “filho de um deus ou uma deusa com um ser humano”.

Bastam essas acepções para mostrar que o “herói” é, por definição, um ser mítico.

Geralmente se considera um “mito” como uma “mentira”. Mas essa definição é incompleta. Ela deixa de lado os aspectos positivos dos “mitos”, pois eles também podem servir de modelos de comportamento morais e de valores éticos.

Quanto contamos estórias de Pinóquio às crianças, sabemos que bonecos de madeira não falam. Também sabemos que o nariz não cresce à medida que se conta uma mentira. Porém, não sentimos remorsos ao contarmos essas estórias, pois o importante é que elas condenam o hábito de “mentir” – além, é claro, de serem divertidas e boas para se pensar.

Os heróis nacionais são contos de fadas para gente grande. Embora, é claro, quase sempre menos divertidos do que as estórias de Pinóquio. O importante são os valores que eles representam no presente e os caminhos que apontam para o futuro.

Os semideuses não existem. Submetidos a uma lupa existencial, os heróis deixam de existir. Afinal, todos os homens são contraditórios, apresentam falhas, são resultado das circunstâncias a que estão submetidos.

Isso é válido para Zumbi, assim como para os demais heróis nacionais. Eis o que escreveu William Cohen a respeito de um herói dos Estados Unidos: “Parece paradoxal que Thomas Jefferson, um dos eternos heróis da democracia norte-americana, fosse também o proprietário de mais de 180 escravos exatamente à época em que proclamava que todos os homens foram criados iguais e foram ‘dotados por seu Criador’ com os ‘direitos inalienáveis’ à ‘vida, liberdade e à busca da felicidade”.[1] Portanto, quem estiver em busca de heróis desista de futricar a vida do personagem eleito, pois, como disse Caetano Veloso, “De perto, ninguém é normal”.

Mais importante ainda é o reconhecimento de que não há suporte documental para se afirmar que Zumbi possuía escravos, mandava matar fugitivos ou sequestrava mulheres.

Cabe aqui aplicar a crítica às fontes, da mesma forma que Narloch a utilizou em relação aos bandeirantes.

Os quilombolas de Palmares não deixaram escritos do próprio punho. Nesse caso, não é possível fazer a comparação documental, pois não havia cartórios, tribunais e repartições públicas nos quilombos. O que os livros citados por Narloch dizem a respeito deles foram escritos por holandeses (ou alemães que os acompanhavam), portugueses e fazendeiros que atuavam em câmaras municipais.

Essa gente, por razões óbvias, odiava o Quilombo de Palmares e tentava o tempo todo provar que a vida ali era ainda pior do que nas senzalas, daí as acusações do lugar ser um antro de ladrões, assassinos e estupradores. Imagem, aliás, coincidente com a que boa parte da elite brasileira atual faz das comunidades carentes.

Se você achar que Zumbi representa o ideal de luta contra a opressão e a desigualdade, luta contra o preconceito racial e social, continue a considerá-lo um herói.

Negros eram escravistas?

“Não há motivo para ativistas do movimento negro fecharem os olhos aos escravos que viraram senhores. Ninguém hoje deve ser responsabilizado pelo que os antepassados distantes fizeram séculos atrás. Além disso, na época em que eles viveram, ter escravos não era considerado errado: tratava-se de um costume tido como correto pela lei e pela tradição. ” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Em 1500, a escravidão era legal em Portugal e, no Brasil, foi proibida somente em 1888. Uma questão fundamental é saber: por qual razão esse sistema social extraordinariamente injusto sobreviveu tanto tempo?

“Dividir para reinar”, eis a fórmula utilizada pelos escravistas. Antes mesmo de chegar ao Brasil, os escravos estavam politicamente divididos.

O uso do termo “africano”, por sinal, era semelhante ao uso atual da expressão “latino-americano”. Seria interessante saber quem já esteve fora do Brasil e respondeu “Sou latino-americano”, ou “Nasci na América Latina”, às perguntas: “De onde você é?” ou “Onde você nasceu?”.

Esse tipo de resposta pode ocorrer, mas deve ser infinitamente menos frequente do que as definições: “Sou brasileiro” ou “Nasci no Brasil”. A predominância dessas últimas respostas se deve ao fato de a identidade “latino-americana” ser “fraca”, muito pouco mobilizadora, e por vezes esconder antipatias.

O mesmo ocorria na África, só que de forma bem mais intensa. Nos séculos XVI-XVIII, não existia uma identidade africana. O que havia era uma infinidade de grupos étnicos, com múltiplas rivalidades locais, que não raramente acabavam em guerras. Os prisioneiros delas eram vendidos como escravos para o Brasil.

Além disso, os reinos africanos não eram socialmente homogêneos. Reis, guerreiros e comerciantes ocupavam o topo da escala social e participavam do tráfico, que existiu antes mesmo dos europeus chegarem a esse continente.

A escravidão, portanto, existia na África pré-colonial. Até aí é possível acompanhar Narloch. O problema é o uso abusivo do termo “africano”. Quem se envolvia com o tráfico não eram os “africanos” como um todo, mas sim uma pequena parcela.

No Brasil, conforme mostram Manolo Florentino e José Góes, as rivalidades étnicas africanas criavam conflitos nas senzalas. Os cativos também se diferenciavam entre estrangeiros e nascidos no Brasil. Além dessa divisão, havia aquelas decorrentes de se morar na cidade ou no campo, ou ainda de se trabalhar na agricultura ou na casa-grande.[2]

Há tempos, João José Reis e Eduardo Silva chamaram a atenção para os múltiplos efeitos dessas divisões. Um escravo ou escrava nascidos no Brasil conheciam apenas, do ponto de vista existencial, a vida no cativeiro. Se fossem escravos domésticos, a tendência seria de conviver mais com a família senhorial do que com o pessoal da senzala. Se vivessem em cidades ou vilas, ficavam expostos a contatos com a vizinhança, conseguindo amigos e protetores brancos.[3]

Dessa forma, as trajetórias de vida dos cativos e cativas domésticos nascidos no Brasil e moradores em cidades podiam ser muito diferentes das registradas entre escravos africanos cortadores de cana-de-açúcar. Os primeiros eram fortes candidatos à alforria. Já os trabalhadores da senzala – principalmente os africanos, que viveram a experiência de não ser escravos – eram potencialmente mais seduzidos à fuga.

Baseado em um autor, Narloch cita possíveis “chicas da silva” mineiras do século XVIII, afirma que elas podiam ser poucas, mas serviam de modelo de conduta. Sim, mas é bom qualificar esse modelo como “escravista”. Paralelamente a ele, havia o modelo “antiescravista”, evidenciado nos mais de 100 quilombos da Capitania de Minas Gerais, identificados por Carlos Magno Guimarães.[4]

Portanto, havia escravos conformados à escravidão e os que a ela não se submetiam – da mesma forma que hoje existem jornalistas subservientes ao poder e os críticos a ele. Por isso mesmo, desconfie sempre da expressão: “na época em que eles viveram”, pois ela encobre diferentes anseios, conflitos e visões de época, quase sempre substituídos pela falsa imagem do conformista generalizado.

A experiência da escravidão mostra que sistemas sociais extremamente injustos podem perdurar durante séculos, desde que haja divisões e rivalidades entre os oprimidos.

O que devemos aos abolicionistas ingleses?

“Em 2007, completaram-se duzentos anos da proibição do tráfico de escravos, a primeira vitória da campanha abolicionista da Inglaterra. Nenhum país da África ou movimento negro da América prestou homenagens ou agradecimentos aos ingleses.” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Narloch critica livros didáticos que defendem a motivação econômica – interesses mesquinhos dos industriais ingleses em ampliar o mercado de consumo – na abolição do tráfico de escravos.

Segundo ele, essa tese, simplista e ideológica, foi superada pelos estudos de Seymour Drescher, dentre outros pesquisadores. Trata-se de uma crítica válida. Numa rara desatenção, Narloch faz um comentário “politicamente correto”, dizendo que o movimento abolicionista inglês, surgido na segunda metade do século XVIII, foi a primeira grande campanha popular bem-sucedida da “história moderna, um molde para as lutas sociais do século 19”.

Quem tiver dúvida quanto a isso, eu indico o livro de Adam Hochschild, onde ele conta como um pequeno grupo de pessoas conseguiu mobilizar a opinião pública britânica, inclusive com a adesão de quase 300.000 pessoas ao boicote do consumo de açúcar produzido em áreas escravistas.[5]

Sem dúvida, devemos ser gratos aos abolicionistas ingleses, que lutaram contra a elite econômica inglesa da época, até vencerem a batalha.O abolicionismo inglês foi a vitória da nascente sociedade civil democrática sobre os interesses de grandes traficantes e investidores no comércio internacional colonial. Rapidamente, o movimento tornou-se mundial. No Brasil, ele influenciou as primeiras leis restringindo o tráfico e foi fundamental para o término oficial desse comércio em 1850.

Tentem, porém, lembrar de algum livro que mencione a pressão inglesa pela abolição da escravidão em 1888? Não conheço nenhum. Portanto, a importância inglesa no fim da escravidão brasileira é só parte da História. É preciso também conhecer a luta dos escravos e dos abolicionistas brasileiros nesse processo.

Além disso, é importante lembrar que na segunda metade do século XIX, o movimento abolicionista inglês entra em declínio. O historiador português João Pedro Marques faz um balanço dessa questão e aponta como uma das razões disso a ascensão das teorias biológicas racistas.[6]

Esse período também foi acompanhado pela conquista europeia de novos territórios. Na África, a escravidão voltou a ser tolerada, sobrevivendo em colônias inglesas, como ocorreu em Serra Leoa, até 1928. Conforme afirma Mike Davis, quando não era possível a escravidão, a alternativa era o extermínio. Na África do Sul chegou-se a adotar o genocídio como política oficial.[7]

Enfim, no século XIX, não é difícil encontrar muitíssimos relatos de atrocidades cometidas pelo Estado inglês contra africanos. Por isso, o melhor seria combinar que o agradecimento da “África”, ou do “movimento negro da América”, aos ingleses fosse acompanhado por um pedido de desculpas desses últimos ao continente africano e demais grupos humanos atormentados pelo imperialismo vitoriano.

É bom pensar

A história politicamente incorreta é uma história com partido. O partido do conformismo e do preconceito. Essa modalidade de pseudo-história ataca ou tenta desmobilizar movimentos sociais em busca de reparação de direitos.

Como faz isso? Desmoralizando os símbolos desses movimentos ou fazendo generalizações abusivas. Outra estratégia utilizada consiste em transformar conquistas desses movimentos em concessões das elites ou de potências estrangeiras.

Referências

[1] COHEN, William. Thomas Jefferson e o problema da escravidão. Estudos avançados. 2000, vol.14, n.38, pp.151-180. Acesso em: 01 de fev. 2018.
[2] FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Editora Record, 1997.
[3] REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
[4] GUIMARÃES, Carlos Magno. A negação da ordem escravista. Quilombos em Minas Gerais no Século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988.
[5] HOCHSCHILD, Adam.Enterrem as correntes: profetas e rebeldes na luta pela libertação dos escravos. Rio de Janeiro: Record, 2007.
[6] MARQUES, João Pedro. Uma revisão crítica das teorias sobre a abolição do tráfico de escravos português. Penélope, v. 14, 1994, p. 95-118. Acesso em: 01 fev. 2018.
[7] DAVIS, Mike. Holocaustos coloniais: clima, fome e imperialismo na formação do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002.

 

Comments (1)

  1. cara de pau e mentiroso.

    Zumbi. Pesquisei conforme vc sugeriu e não há nada disso. Pior, ao usar burramente essa definição vc desarma o movimento negro que jamais vendeu Zumbi coo um mito.

    Negros Escravistas

    Mentiroso. Não haveria escravidão para a América ou Norte da África se os reinos negros africanos não ganhassem rios de dinheiro com isso. Quando Portugal aportou no Norte da África descobriu o intenso e cruel mercado de escravos existente ali há 700 anos. O Islã escravizou e capou e matou durante 2 mil anos.

    Abolicionistas

    Babaquice que não vale um comentário

    MAM

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