Por Alenice Baeta e Henrique Piló*
Parte do centro histórico da sede do município de Mariana foi tombada em nível federal em 1938 com a denominação de “Conjunto Arquitetônico e urbanístico de Mariana”, tendo seu registro no Livro de Tombo LBA /069-T-38 inscrição 62, folha 12. A despoluição visual de centros históricos, por meio da retirada de fiação aérea e de postes é prevista em normas patrimoniais internacionais vigentes das quais o Brasil é signatário, visando a revitalização e a valorização desses tipos de sítios. Seria insensato do ponto de vista de uma política patrimonial, revitalizar um conjunto histórico destruindo estruturas de baixa visibilidade ou esmaecidas por se situarem no subsolo do mesmo local ou logradouro, ao inserir os canos de redes de distribuição subterrânea-RDS (eletrificação e telefonia).
De fato, as estruturas subterrâneas possuem a mesma magnitude documental se comparadas a monumentos consagrados e demais edificações e ruínas situados na superfície do solo, ou melhor no “cenário visível” da cidade. Muitas destas estruturas, conforme constatado nos documentos históricos levantados, são oriundas dos primeiros decênios dos séculos XVIII e XIX. Dentre elas, destaca-se uma complexa rede de canalizações que foram feitas por meio da técnica de cantaria (antiga arte de esculpir e assentar as rochas), apresentando canais e regos de provimento de água excepcionais do ponto de vista estético, etnográfico e tecnológico. Esta malha de provimento representa o sistema de abastecimento colonial, as relações espaço-econômicas, escravistas e de segregação social vigentes na época.
A partir desses pressupostos, apresentam-se as principais normas patrimoniais que vêm instruindo e norteando a proteção e intervenções em núcleos históricos e arqueológicos com este tipo de implantação. Já no início do século passado, em 1931, a reunião da Sociedade das Nações elaborou um documento, a Carta de Atenas, que recomenda em seu item III, “a supressão de toda a publicidade, de toda a presença abusiva de postes ou fios telegráficos, de toda a indústria ruidosa, mesmo de altas chaminés, na vizinhança ou na proximidade dos monumentos de arte ou de história”.
A Recomendação de Paris de 1962, organizada pela Unesco relativa à salvaguarda da beleza e do caráter das paisagens e sítios, reforça em seu primeiro ponto a necessidade de “restituição do aspecto das paisagens e sítios naturais, rurais e urbanos (…)”. Nos itens seguintes, indicam que devem ser adotadas medidas preventivas e corretivas, e no caso da segunda, que estas “deveriam ser destinadas a suprimir os prejuízos causados às paisagens e aos sítios e na medida do possível, reabilitá-los.” Propõe no subtítulo Medidas de Salvaguarda: “13. Um controle geral deveria ser exercido sobre os trabalhos e as atividades suscetíveis de causar danos as paisagens e aos sítios, em toda a extensão do território do Estado.”
Por sua vez, o documento internacional sobre conservação e restauração de monumentos e sítios realizada pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios-ICOMOS em 1964, a Carta de Veneza, reforça a necessidade de estudos arqueológicos associados a estudos relacionados à conservação e valorização de monumentos.
A Carta do Restauro, cuja convenção ocorreu na Itália em 1972, reitera em seu Anexo A: “é necessário, no campo da arqueologia, ter presente exigências particulares relativas à salvaguarda do subsolo arqueológico e à conservação e restauração dos achados durante as prospecções terrestres e subaquáticas (…)”. Reitera ainda no Anexo D sobre a necessidade de adequação dos equipamentos viários. “É preciso considerar a possibilidade de integração do mobiliário moderno e dos serviços públicos estreitamente ligados às exigências vitais do centro.”
Vale a pena mencionar a Recomendação de Nairobi de 1976, referente à ‘Salvaguarda dos Conjuntos Históricos e sua Função na Vida Contemporânea’ organizada pela Unesco: “4. Os conjuntos históricos ou tradicionais e sua ambiência deveriam ser protegidos ativamente contra quaisquer deteriorações, particularmente as que resultam de uma utilização imprópria, de acréscimos supérfluos e de transformações abusivas (…) assim como as provocadas por qualquer forma de poluição.”
Este documento ainda alerta para obras de saneamento urbano ou de beneficiamento em áreas não nucleares de proteção, que dizer, que não constam como sítios tombados e ou de proteção, mas que deveriam respeitar um plano de salvaguarda e os elementos que possuam valor histórico e ou arquitetônico. O Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – ICOMOS em 1986 elaborou importante documento durante encontro em Washington que reitera em seu artigo 11: “É importante contribuir para um melhor conhecimento do passado das cidades históricas através do favorecimento das pesquisas arqueológicas urbanas e da apresentação adequada das descobertas, sem prejuízo da organização geral do tecido urbano.”
Importante foi a Carta produzida em Petrópolis no Primeiro Seminário Brasileiro para preservação e revitalização de centros históricos que considerou os “Sítios Históricos Urbanos-SHU” e seu entorno um organismo complexo e histórico, que merece ser compreendido e tratado em suas diversas manifestações. Os sítios arqueológicos pré-coloniais e ou históricos, sem exceção, são protegidos por lei federal de no 3.924 de 1961; sendo desde então o principal instrumento de salvaguarda e proteção deste tipo de acervo cultural no país. Esta categoria de patrimônio cultural encontra-se enquadrada como “Bens da União”, cuja descaracterização e ou destruição, incorrem em infrações sujeitas às penalidades previstas em legislação.
Novos instrumentos jurídicos na década de oitenta foram considerados de maneira a operacionalizar e assegurar a preservação do Patrimônio Arqueológico. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a proteção do acervo cultural passou a ser compartilhada com as esferas estaduais e municipais, conforme exposto em seu inciso III. As constituições estaduais e municipais reiteram a necessidade de proteção do acervo cultural e histórico.
A partir desta esteira legal e normativa é que vêm sendo desenvolvidas pesquisas arqueológicas no centro histórico da sede de Mariana organizadas em 3 etapas integradas que compõem o projeto “Veias Urbanas” visando revelar, registrar, difundir e contextualizar as suas estruturas subterrâneas e a importância da sua preservação in loco.
Para além do centro histórico de Mariana, impossível aqui não mencionar o patrimônio cultural e arqueológico sotoposto ou sob a lama nos sítios Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo situados no vale do rio Gualaxo do Norte, Bacia do rio Doce, também em Mariana, assolados em 2015 pela grande tragédia socioambiental causada pelo derramamento de rejeitos oriundos da Barragem Fundão e a sua significância e valor imensurável patrimonial e espacial. Do ponto de vista conceitual, reforça-se que todos os sítios arqueológicos, independentemente de cronologia, dimensão, exposição do sítio ou vestígios (exposto, submerso ou sotoposto), antiguidade, diacronia e estado de conservação, têm a mesma importância histórica, cultural e legal. Isto se aplica também aos locais assolados pela tragédia acima mencionada, óbvio.
Para arrematar, constata-se que ainda muito pouco se conhece sobre o subterrâneo de todo o município e suas reais dimensões, e certamente de tantas outras cidades históricas de nosso país; mas o suficiente para entender que se trata de assunto complexo e delicado, merecedor de atenção especial no contexto das políticas públicas, culturais, ambientais e de planejamento urbano nas mesmas. O subterrâneo, como o nosso inconsciente, sempre revela algo de novo a partir de um passado… A memória subterrânea de um lugar fica lá, assentada como artérias que pulsam… Por onde pisamos, e à nossa espera… para ser percebida, valorizada e talvez compreendida.
–
*Arqueólogos e Historiadores – Coordenadores do projeto “Veias Urbanas” em Mariana (ENCEL/Artefactto).
Bibliografia Consultada:
CURY, Isabelle Cartas Patrimoniais Rio de Janeiro: IPHAN, 2000.
Imagem: Trecho de lajes com junções bem encaixadas formando um bicame talhado em cantaria situado no subterrâneo da rua Dom Silvério na sede de Mariana, MG. Foto: A. Baeta.