Fundadora do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, Dona Dijé teve um infarto fulminante, apenas três dias depois de ter sua luta reconhecida oficialmente
Em O Globo
Morreu na madrugada desta sexta-feira, aos 70 anos, Maria de Jesus Ferreira Bringelo, a Dona Dijé, liderança histórica da luta dos negros, mulheres e quilombolas no Brasil. Ela morreu no mesmo rincão do Maranhão onde nasceu, vitimada por um infarto, apenas três dias depois de ter sua luta reconhecida oficialmente ao ser empossada como conselheira dos povos e comunidades tradicionais em Brasília. A morte de Dona Dijé ocorreu no dia que marca os seis meses da execução, ainda sem resposta, de outra liderança no campo dos direitos humanos, a vereadora carioca Marielle Franco.
Fundadora do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu — grupo formado por mulheres extrativistas do Maranhão, Tocantins, Pará e Piauí — , Dijé lutava, ao lado de outras lideranças, pela regulamentação do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, que representa mais de cinco milhões de brasileiros, entre indígenas, quilombolas, ciganos, seringueiros, extrativistas e outras dezenas de grupos.
Instituído por decreto em maio de 2016, o órgão só foi empossado pelo governo federal, sob batuta do Ministério dos Direitos Humanos, na última terça-feira, dia 11 de setembro, após grande mobilização dos segmentos rurais. A ferramenta tem função de implementar efetivamente a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, criada em 2007, e considerada fundamental para o combate à violência e à violação de direitos dos povos tradicionais do país.
— A gente sonhou tanto tempo com este momento e hoje agradeço por estar acordada vivendo este grande dia — disse Dona Dijé, emocionada, na ocasião da posse. Ela começou a passar mal ainda em Brasília e pediu para voltar para casa, no Quilombo de Monte Alegre, município de São Luiz Gonzaga, interior do Maranhão — espaço de moradia e luta de quilombolas e quebradoras de coco desde o século XIX.
No início do mês de julho, Dona Dijé foi anfitriã, em seu território, de um encontro de líderes de povos e comunidades de todo o Brasil. O GLOBO acompanhou, por quatro dias, a partilha de dores e lutas que se deu por meio de cantos, danças e depoimentos emocionados. A líder maranhense recebia com um sorriso e abraço cada um dos convidados — que ficaram abrigados em um barracão, construído em poucos dias pela comunidade.
Entre outras mulheres de fibra na linha de frente dos enfrentamentos rurais, Dijé era modelo para todas. Com discurso suave e firme, permeado pelas experiências duras que viveu desde a infância, ela construiu uma liderança acolhedora e feminista. Com 6 anos, foi morar “na casa de brancos” para poder ir à escola e, por lá, trabalhar nas tarefas domésticas. Aos 15, voltou para a comunidade dos pais, onde começou a quebrar coco, casou e descasou mais de uma vez, e cuidou de cinco filhos com o trabalho na roça.
Na década de 70, Dona Dijé iniciou a luta também pela sobrevivência de sua comunidade. Em 1979, nove dias depois de ter um filho, sua casa foi queimada pela polícia, a mando da Justiça e de fazendeiros, e eles tiveram que ir morar no meio da floresta. “Não foi apenas a opressão, foi a humilhação. Nós até ouvimos um fazendeiro dizer que cem pessoas negras (não) valem uma única vaca. Nós estávamos lá resistindo porque a pior coisa que nos aconteceria seria sermos enviados para as margens da cidade. Nós não estaríamos em lugar algum. Então enfrentamos muita opressão, enfrentamos muita humilhação, mas ficamos lá porque sabíamos que, se não, seria ainda pior. E ouvir o fazendeiro dizer isso significa para nós que o negócio da pecuária é muito mais valorizado que a vida humana”, relatou, em entrevista ao “Huffington Post”, em 2016.
À época, além da lida pra alimentar os filhos, decidiu tomar a dianteira do movimento quilombola. Daí em diante, sua vida foi de luta e militância pelo direito ao acesso livre à terra. Em 1990, fundou com outras mulheres o movimento de quebradeiras de coco. Em seguida, aliou-se a outros grupos de povos e comunidades tradicionais que lutam pelo direito ao território e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa e econômica.
— Queremos nosso território livre para nascer, viver, germinar, parir e morrer —, disse ela, em julho, com os pés descalços sobre o chão do seu quilombo.
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Dona Dijé (à direita) era quebradeira de coco e liderança quilombola. Foto: Beatriz Mota / O Globo.