Pasolini: Detesto quem anda com uma pistola no bolso

Tenho uma antipatia profunda, antiga, por quem carrega uma arma no bolso. A partir desse sintoma – pequeno, por fim, embora tão chamativo – pode-se reconstruir uma pessoa inteira, com todos os seus sentimentos

Por Pier Paolo Pasolini*, no blog da Boitempo

No contexto do dossiê especial dedicado às Eleições de 2018, o Blog da Boitempo recupera este artigo escrito pelo intelectual e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. Publicado originalmente no jornal Paese Sera no dia 14 de março de 1962, com o título “Detesto chi gira con la pistola in tasca”, sua atualidade para o atual contexto brasileiro fala por si só. A editoria do Blog agradece a sugestão de publicação dada por Felipe Catalani, que também se encarregou da tradução do texto direto do italiano. Boa leitura.

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Tenho uma antipatia profunda, antiga, por quem carrega uma arma no bolso. A partir desse sintoma – pequeno, por fim, embora tão chamativo – pode-se reconstruir uma pessoa inteira, com todos os seus sentimentos. Poder-se-á reencontrar, no fundo dessa mania de andar armado, algumas justificações infantis, talvez: não pode nascer do nada a ideia de que os outros são perigosos, inimigos, desprezíveis, e que, portanto, é necessário munir-se de antemão secretamente contra as intenções dos outros. A nossa sociedade tem ainda facetas selvagens, é claro: lugares onde reina o terror. Lugares onde um menino que cresceu mal se sente como em uma selva, e por isso se arma, como em uma selva.

Mas há infantilismos e infantilismos: “infantilismo” não é senão um termo clínico, um esquema que pode conter uma infinidade de realidades humanas.

O infantilismo de quem acredita resolver a vida sendo ladrãozinho é uma coisa, o infantilismo de quem anda por aí armado de uma pistola, é outra coisa. O primeiro é uma recusa da responsabilidade cívica que impõe certas vezes sacrifícios excessivos, desproporcionais ao bem, ainda que íntimo, que se obtém daí. O que me surpreende é antes como que os pobres rapazes do sub-proletariado ou do proletariado romano cambaleante não roubam cem vezes mais do que roubam. No fundo, o que os impede é justamente a antiga “virtude” estoica, a filosofia deles, que jamais foi cristã e ainda não é socialista. Mas não se pode esperar de todos que possuam essa tal “virtude” como um fim em si mesma! Eu provavelmente conheci o rapaz assassinado ­– a partir das fotografias, a fisionomia não me é estranha: e, se não o conheço, conheço centenas que são como ele. Sei qual é o mecanismo interno que os faz roubar: pode-se condená-lo, mas não se pode detestá-lo. Quase sempre os ladrõezinhos como o pobre rapaz da praça Navona inspiram uma certa simpatia: justamente pelo seu infantilismo, pela sua imaturidade civil, que os faz serem inconsequentes, despreocupados, desenraizados, audaciosos, resignados, céticos: que são todos defeitos “simpáticos”.

Um idiota que, ao contrário, anda por aí armado de uma pistola, só se pode detestá-lo: visto que possui, do infantilismo, características totalmente contrárias àquilo que elenquei aqui: nele predomina uma desconfiança obsessiva com o próximo, um narcisismo fanático e desagradável, um orgulho introvertido e deselegante que o tornam um paciente odioso para o médico, um personagem insuportável para o autor…

Agora se deu o fato que a pistola que um tal monstro tinha no bolso foi usada. Aqui eu calo. Não quero entrar no mérito de uma história que não quero saber (mesmo que me pareça bastante clara!). Eu sei somente que na praça Navona havia, entre tantos outros, um ladrãozinho que tentava ganhar o pão (leiam nos jornais a refeição que o pobre rapaz havia feito antes de morrer. E, “se têm lágrimas, deixem-nas correr”) à custa de danos ao próximo, cometendo pequenos furtos de menino, e que junto havia um ser odioso que andava armado com uma pistola. Aquilo que aconteceu naquela noite na praça Navona é demasiado horrível para se poder agora dizer alguma coisa disso. É aquilo que acontecia antes o que pode me interessar. Aquele coexistir, nas mesmas ruas, no mesmo bairro no centro da Itália, de dois “infantes”, os dois a seu modo incapazes de viver: o ladrãozinho deformado, gostaria de dizer, por um excesso de inocência, por um excesso de marginalidade, por um excesso de gratuidade – todas coisas que nascem nos estratos associais da sociedade –, o proprietário da pistola, ao contrário, deformado pelo sentido da propriedade, pela vaidade, pelo desprezo pelos pobres – todas coisas que nascem nos estratos conformistas da sociedade.

Como sempre, inconsciência pré-social e conformismo coincidem. É o vínculo horrendo do qual nasce o fascismo: ou seja, um fenômeno político das nações mais atrasadas. Há vinte anos atrás o pistoleiro teria sido um “capomanipolo1 e talvez, o pobre rapaz assassinado, um soldado: um inocente soldado que, de si mesmo, não conhece outra coisa senão a juventude. Hoje, mudados os tempos, houve o assassinato: um fato de sangue atroz, impossível. Mas se pensarem bem, é a mesma coisa. Recuperá-lo como soldado ou assassiná-lo como ladrão é uma mesma operação de conformismo burguês deformado realizada por um produto típico do conformismo burguês italiano.

A responsabilidade por fatos como aquele que ocorreu domingo à noite na praça Navona é de muitos. A atroz deformação ideológica que se formou pouco a pouco dentro da cabeça do possuidor da pistola não provém certamente somente do âmbito familiar no qual ele nasceu. Certamente foi em família que lhe vieram as primeiras ideias sobre seus vizinhos sub-proletários. Esse momento da sua “educação sentimental”, porém, não julgo, porque é muito privado. Cada um tem o pai e a mãe que tem: e se eles são reacionários temerosos e se tornaram ferozes, pobres coitados, pela ideia de dever defender aquilo que possuem – quase como se tratasse de um caso de má consciência – é uma desgraça que pode acontecer a todos. Mas o terrível é que as confirmações de tal “educação sentimental” o filho as encontra em todo lugar, em volta de si, crescendo. É uma comprovação tal da bondade das próprias ideias erradas a ponto de chegar ao fanatismo, à cruzada. Se aquele jovem carregava uma pistola no bolso, porque “obcecado com ladrões”, isso quer dizer que havia nele, ao menos confusa, a vocação de se fazer justiceiro: quase paladino de uma ideia absolutamente honesta, quase um reformador, bíblico, do costume.

E onde o assassino encontrou tais confirmações da ideia da posse como uma coisa sacra, que torna sacrílego, e portanto punível com a morte, quem viola essa posse? Em toda parte, repito: em toda a imprensa burguesa, desde aquela fascista, que é uma apologia contínua de crimes como aquele cometido domingo na praça Navona, até aquela moderada que é a matriz do conformismo mais inalterável, até aquela de certa oposição cuja crítica é anti-conformista somente em certos níveis, enquanto em outros permanece reacionária e moralista; e, por fim, até aquela da oposição de esquerda que nem sempre sabe dizer uma palavra verdadeiramente sincera e audaz sobre muitos problemas.

É bem sabido que o racismo é um dos fenômenos mais típicos da deformação psicológica do burguês. Ora, “racismo” é um termo vastíssimo, cuja abrangência compreende grande parte do horizonte mental de quem sofre de racismo. Poderia dizer ­– generalizando muito – que o racismo é um hábito mental que substituiu os tabus selvagens do homem arcaico. O homem, para viver, precisa de fundamentos seguros: de hábitos. Quando um desses hábitos desaparece, um outro lhe toma a função mecânica de proteção contra o caos. Dos campos de Buchenwald ou de Dachau o racismo pode atingir fenômenos aparentemente pequenos, mas fundamentalmente graves, como o assassinato de domingo à noite. O racismo, de fato, é um mecanismo: não lhe importa o objeto. Que pode ser substituído com facilidade máxima. O ódio contra os judeus pode ser substituído pelo ódio contra os negros: o importante é que haja uma minoria, uma categoria, para odiar. Naturalmente, em nome da maioria daqueles que são todos iguais entre eles, cuja vida é regulada pelas mesmas normas, cujos traços acabam por assumir uma analogia quase física, etc: em nome do conformismo, em suma.

Tenho certeza que, na cabeça daquele ser odioso que andava por aí armado com uma pistola, os jovens ladrõezinhos do seu bairro se inseriam em uma ideia generalizante de tipo racista. Seu ódio contra eles era, portanto, no fundo, uma forma, mesmo que degenerada e particular, de ódio de classe.

Não há dúvida que à justiça deverá interessar o caso concreto: e o assassino deverá ser julgado (gostaria de dizer com a máxima severidade) no âmbito de sua particularidade de homem civilmente adulto, de cidadão. E, dentro de tal particularidade, dever-se-á limitar à terrível pena pelo destino do assassinado.

A mim interessa agora buscar outras responsabilidades, mais gerais, outras fontes de confusão que continuarão a contar mesmo depois que os jornais pararem de se interessar por este caso. Não falo das causas estruturais, porque falaria no vazio, sem ressonância imediata… Mas me interessam as “confirmações” que o assassino teve de sua aberração ideológica, de seu classismo racista. Não há um jornal italiano, mesmo o de linha editorial menos burguesa, que de alguma forma não tenha sua dose de responsabilidade, mesmo que mínima. Os jornais burgueses pelo autêntico conformismo burguês, os anti-burgueses pelo temor de ir contra esse conformismo, ou seja, de entrar em confronto com a opinião pública – que lhes é tão importante – nunca souberam ou quiseram dar uma imagem exata de pessoas tal como o pobre Moscucci Rossano2, em sua breve vida. Isso é, nunca deram uma interpretação objetiva, pacata, humana dos casos do sub-proletariado, casos de ladrõezinhos, como nesse, de prostitutas etc., sobre os quais abundam as pequenas notícias, ou seja, a vida da nação. Eles foram sempre apresentados e julgados do ponto de vista possível: é como se julgá-los de um outro ponto de vista seria quem sabe um risco nos confrontos com a opinião pública. Assim, também os jornais dos radicais ou dos socialistas ou dos comunistas, quando falam de pessoas como Moscucci Rossano, falam deles como tipos de uma “raça” distinta, predestinados ao desprezo, à inexistência, à condenação moral. Pessoas desprovidas de teor humano. De prestígio humano. Bodes expiatórios de uma situação humana infectada, de uma vida nacional corrupta e hipócrita. Entendo, no fundo, como o filho do proprietário do “Tre Scalini”, de tanto ver expostos ao desprezo público esses filhos do sub-proletariado – alinhados em filas atrozes de placas fotográficas tanto no Messaggero como no Unitá3 – tenha por fim concebido frente a eles uma espécie de rancor teológico ao ponto de arrogar-se o direito de eleger-se justiceiro.

É necessário ter a coragem para escandalizá-los. Nunca se deve, por nenhuma razão de tática ou de compromisso, adotar frente à opinião pública o ponto de vista do cidadão de bem burguês, nunca se deve confundir a moral com o moralismo conformista. Há uma quantidade enorme de cidadãos italianos que assim correm o risco de serem cortados para fora da história: digo enorme porque o sub-proletariado italiano ainda conta com milhões de pessoas: melhor dizendo, gostaria de dizer que todo o sul é sub-proletário. E corre o risco de ser cortado para fora de nossa história, se o juízo histórico se degrada em juízo hipócrita e moralista, e se a imprensa, ao invés de formar a opinião pública, serve a ela.

Notas

1 Comandante de um “manipolo” da milícia fascista, correspondente ao grau de tenente no exército [N. T.].
2 Segundo me explicaram, em italiano, essa forma de antepor o sobrenome ao nome é uma “alusão levemente irônico-melancólica” ao estilo burocrático (como em uma carteira de identidade) ou militar [N. T.].
3 Referência ao jornal conservador Il Messaggero e ao jornal comunista L’Unità.

*Nasceu em Bolonha em 1922. Cineasta, escritor e intelectual crítico, dirigiu TeoremaSaló e O evangelho segundo São Mateus, entre outros.

Foto: Reprodução/Twitter

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