Nas eleições, crianças copiam seus pais e aprendem a odiar. Por Leonardo Sakamoto

no blog do Sakamoto

– Comunista tem que morrer! Comunista tem que morrer!

A garotinha não tinha idade para saber o que é um ”comunista” (se bem que tem muito marmanjo que rumina a palavra diariamente sem ter ideia do que ela significa de verdade, pois sua fonte de informação são mensagens de WhatsApp retiradas de páginas de notícias falsas derrubadas pelo Facebook), muito menos as implicações de pregar a morte de alguém. Mas repetiu as frases ainda mais duas vezes quando percebeu que estava agradando os pais – que não apenas sorriam, como pareciam demonstrar um certo orgulho. Resta saber se orgulho da filha já falar tão bem ou dela ter aprendido os primeiros passos do macarthismo.

Antes que alguém pergunte, ela não gritava para mim. Provavelmente, repetiu o que ouviu em casa.

Esse não é o primeiro caso que presencio. E já ouvi relatos semelhantes de amigos professores e psicólogos, que reclamam que o período eleitoral está demandando trabalho dobrado. Pela internet circulam casos de pais e mães orgulhosos de seus filhos que desenham, com o dedo, na tela de tablets, assassinatos de políticos. Ou de crianças que fizeram bullying em colegas que usavam cores diferentes daquelas que são ”autorizadas” socialmente, como o vermelho. Ou de famílias que acham normal crianças aprenderem a desejar a morte a quem defende uma ideologia diferente.

Ao perceber que o primeiro colocado na disputa presidencial e ídolo de multidões, Jair Bolsonaro, diz que fará ”uma limpeza nunca vista na história desse Brasil” após eleito; que ”vamos varrer do mapa esses bandidos vermelhos do Brasil”; e ainda que ”esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”, seus seguidores acreditam que têm carta branca para fazerem o que quiserem. E ensinar aos filhos que também façam.

Durante as eleições de 2014, entrevistei pedagogos que ressaltaram que a percepção sobre o coletivo, bem como o aprendizado sobre justiça, diversidade e tolerância ocorre, fundamentalmente, na escola. E que esse é o ambiente onde devem conviver opiniões diferentes. Por mais que alunos e alunas tragam de casa uma visão intolerante, a escola deve transformar e ressignificar essa visão. Não para doutrinar ou censurar, mas garantir o respeito à divergência.

Na escola, aprendemos a lidar com a igualdade e a diferença. Se um pai diz para não andar com homossexuais porque eles são ”sujos”, na escola a pessoa terá a oportunidade de aprender que, na verdade, as coisas não são assim e que as diferenças entre as pessoas representam uma vantagem e não uma desvantagem para a sociedade. E que todos os modos de vida devem ser respeitados. E que ser homossexual não é uma doença que se contrai e tampouco é curado na base da porrada.

É por isso, pela possibilidade de construir essa pluralidade, que a escola é vista como ameaça por quem defenda o direito de impedir que os outros tenham direitos.

Uma ação importante, neste momento, é as escolas promoverem debates e reuniões para que todos entendam qual tipo de mensagem estão passando para seus filhos durante as eleições.

Dois pais ou duas mães que defendam o voto em um candidato X e dois pais ou duas mães que defendam o voto em um candidato Y podem ser convidados para apresentar seus pontos de vista para os alunos em uma turma, de forma respeitosa. Por exemplo: por que escolheram o seu candidato, mas não vale explicar porque ele é ”anti” alguma coisa, mas falar das coisas boas que ele defende.

Pois a discussão de valores e de respeito a ideias divergentes é tão importante quanto o do conhecimento técnico. Mostrar que é possível debater de forma saudável, sem desejar o óbito do outro e sem tentar socá-lo é fundamental para que, no final, tenhamos um país.

Com a popularização das redes sociais e a quantidade de tempo em que os mais jovens passam conectados, a família e a escola não são sua única fonte de formação, nem a principal. Mas a escola tem que estar preparada para entender isso e convidá-los à reflexão sobre tudo. Quando a escola fecha os olhos diante do ódio, ela está transmitindo valores. Afinal, a intolerância é um valor.

Em outras palavras, o silêncio não é neutro.

A incapacidade de colocar-se no lugar do outro e entender que ele ou ela merece a mesma dignidade que sonhamos para nós mesmos esteve sempre presente. A diferença é que não era distribuída pela internet, conectada pelas redes sociais e amplificada pela popularização de smartphones. A rede trouxe maravilhas, mas também organizou a ignorância que estava dispersa.

Após o momento eleitoral, nem todo o ódio deflagrado retornará para a caixinha. E gente que está se sentido mais à vontade do que nunca para transformar seu medo em violência, e espalhá-lo, vai seguir em marcha. Claro que prefiro que a realidade sobre nós mesmos venha à tona ao invés de ser escondida. Manter tudo no armário tem a vantagem de oferecer aos cidadãos uma tranquilidade forjada suficientemente ampla para que cada um toque sua vida. Mas como todo processo que não é natural, uma hora esse represamento explode. E machuca.

O Brasil deveria olhar para suas entranhas e discutir que tipo de sociedade quer ser após as notícia falsas terem embaralhado as coisas. Devido à pluralidade de sua composição, não é possível imaginar que o melhor modelo não seja o de seguir a vontade da maioria, garantindo, contudo, o respeito à dignidade de todas as minorias. Ou seja, uma democracia real.

A escola existe também para que todos aprendam a fazer política e a entender de justiça – que, em última instância, são as artes de garantir que possamos conviver no mesmo espaço sem nos matar. Mas em tempos que muitos comemoram quando o deputado federal mais votado do país diz que a Suprema Corte pode ser fechada apenas com um cabo e um soldado, a mediação de conflitos e a busca pelo bem comum viraram motivo de piada.

Uma das principais funções da escola deveria ser produzir pessoas pensantes e contestadoras que podem colocar em risco a própria estrutura política e econômica montada para que tudo funcione do jeito em que está. Em algumas sociedades, pessoas assim, que protestam, discutem, debatem, discordam, mudam são as mais úteis. Porque essas pessoas são fundamentais para encontrar nova saídas e transformar o país para melhor. Sejam elas de esquerda, de direita, de centro. Por aqui, são vistas com desconfiança e chamadas de mal-educadas e ”vagabundas”. Educar pode significar libertar ou enquadrar. Que tipo de educação estamos oferecendo? Que tipo de educação precisamos ter?

Bolsonaro ensina criança a imitar uma arma, durante agenda eleitoral em Goiânia, em julho. Foto: Reprodução

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