Democracia não pode ser reduzida ao exercício do voto. Entrevista especial com Giannino Piana

por Vitor Necchi, em IHU On-Line

Nos últimos tempos, em especial depois do processo eleitoral pelo qual o Brasil passou, é comum se ouvir que é preciso aceitar a decisão da maioria. Essa perspectiva revela um entendimento parcial do conceito de democracia, sendo apenas associado à ideia de que uma decisão democrática é aquela que contemple a maioria. “A democracia – é bom lembrar – não pode se reduzir ao simples respeito formal pelo princípio da maioria, por mais importante que ele seja. Ela envolve a adesão a algumas posturas éticas, que são os pressupostos dos quais não se pode abrir mão se pretendemos concorrer para a busca do bem comum”, alerta o teólogo Giannino Piana.

O professor também incita a pensar no exercício da democracia levando em conta outros dispositivos, e não só o voto. “Não pode se reduzir ao simples exercício do voto, mas deve dar origem a formas participativas cada vez mais amplas e deve se preocupar em garantir as condições econômico-sociais e civis para a inclusão na gestão da vida pública de todos os cidadãos”, analisa, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Piana aponta que o desgaste da representatividade democrática tem origem num contexto global, em que interesses individuais são a questão de fundo, que vai “da cultura individualista, que abre espaço apenas aos interesses privados e/ou corporativos, até formas renascentes de etnocentrismo e de racismo”. “Não há dúvida de que a responsabilidade por aquilo que ocorreu também recai sobre as forças políticas tradicionais, os partidos, que, de lugares de agregação do consenso e de formulação das propostas programáticas para informar a ação política, infelizmente, muitas vezes, se transformaram em estruturas de poder”, acrescenta. Para ele, um caminho para emprego do conceito pleno de democracia passa por “recuperar aquela tensão ideal original, que representa o terreno fecundo no qual se pode fazer germinar, em todos os níveis, a vida democrática”.

Giannino Piana é professor de Ética Cristã na Universidade Livre de Urbino, e de Ética e Economia na Universidade de Turim. É considerado um dos maiores teólogos morais da cena cultural italiana e internacional. Foi presidente da Associazione Italiana dei Teologi Moralisti. É autor de diversas obras, como Omosessualità. Una proposta etica (Assisi: Cittadella Editrice, 2010), Etica scienza società. I nodi critici emergenti (Assisi: Cittadella Editrice, 2005) e Pregare e fare la giustizia (Mangano: Edizioni Qiqajon, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A crise econômica de 2008 está na gênese do recrudescimento de discursos de ódio que ancoram pensamentos nacionalistas e populistas?

Giannino Piana – O desconforto criado pela crise econômico-financeira, especialmente em algumas áreas da população, certamente é uma das razões (no entanto, não a única) de que nacionalistas e populistas cavalguem nas suas batalhas contra as instituições políticas tradicionais acusadas de terem provocado a situação atual através da sua inação em relação aos bancos e agências financeiras, que se tornaram os poderes fortes que dominam o cenário mundial. Não há dúvida de que tal denúncia contenha uma parte de verdade: a política hoje tem cada vez menos poder. Mas as respostas dadas pelos nacionalistas e pelos populistas, longe de serem resolutivas, apenas alimentam essa situação.

O fechamento dentro das fronteiras nacionais, na presença de um mundo globalizado e interdependente, acaba enfraquecendo a ação política. Enquanto isso, por sua vez, o recurso ao povo sem passar pelas instituições representativas constitui um grave vulnus para a democracia.

IHU On-Line – Em eleições recentes realizadas em países europeus, observa-se o crescimento de ideias, movimentos e partidos populistas como na Itália (Movimento 5 Stelle e Lega), na Grã-Bretanha (Brexit) e na França (Front National), assim como a ascensão das direitas na Alemanha e na Áustria. O que isso indica e que consequências podemos esperar?

Giannino Piana – É preciso reconhecer que nem todos os partidos populistas são necessariamente de direita: trata-se, na realidade, na maioria dos casos, de forças quaisquer, que fazem do protesto a sua razão de viver e que, em um momento difícil como o atual, em que crescem as desigualdades econômico-sociais e se amplia a área da pobreza, elas obtêm um grande sucesso, denunciando também uma escassa consciência civil por parte de um quociente consistente da população. Causa mais preocupação, além disso, o aumento das direitas, não excluindo as autoritárias que se remetem a modelos execráveis do passado.

São muitas as causas que concorrem para provocar o nascimento desse fenômeno: da cultura individualista, que abre espaço apenas aos interesses privados e/ou corporativos, até formas renascentes de etnocentrismo e de racismo: basta recordar aqui a atenção sobre a rejeição dos imigrantes. As perspectivas para o futuro certamente não são promissoras. Só se pode esperar por uma revolução das consciências, que, no entanto, para poder se realizar, exige um forte compromisso educativo, começando pelas novas gerações.

IHU On-Line – Por que ocorreu essa virada e de maneira tão rápida?

Giannino Piana – As causas são, ao mesmo tempo, estruturais e culturais. Quanto às primeiras – as estruturais – já foi lembrado o processo de globalização, que ocorreu no signo da hegemonia econômica e política dos povos ricos, acentuando as desigualdades não apenas entre Norte e Sul, mas também entre as diversas classes sociais e alimentando a conflitualidade, que desemboca nas guerras e em formas de violência privada e pública.

Quanto às segundas – as culturais –, além do individualismo já mencionado, merece ser lembrada, pela relevância que reveste, a crise dos valores civis compartilhados, isto é, a perda daquelas evidências éticas comuns, que representavam as razões profundas do pertencimento coletivo e criavam as condições para o desenvolvimento de amplas formas de solidariedade. A velocidade com que tudo isso ocorreu (e ocorre) está ligada à aceleração do tempo, isto é, ao ritmo frenético com que ocorrem hoje as transformações em todos os âmbitos da vida, principalmente por causa dos progressos da tecnologia.

IHU On-Line – O senhor escreveu que experiências recentes na Europa permitem que se possa pensar na ideia de uma internacional populista europeia. O que há de convergência nesses movimentos?

Giannino Piana – Infelizmente, a busca por uma convergência entre as forças populistas e de direita já está plenamente em andamento. A Itália, desse ponto de vista, é um laboratório exemplar. Mas os intercâmbios entre os partidos pertencentes às áreas recordadas não se limitam à Itália: as eleições europeias já próximas puseram em movimento formas de aliança alargada entre os vários países europeus com graves riscos para o futuro da Europa.

Os fatores que produzem tal convergência residem nos princípios inspiradores dos vários movimentos, na rejeição da União Europeia(e do euro) e, mais radicalmente, na vontade de superar um sistema representativo como o das democracias ocidentais. É de se esperar que também se mova algo na área da centro-esquerda, isto é, que se ative um processo ampliado de resistência, que também envolva forças diversas, que, no entanto, compartilhem o reconhecimento da necessidade de se opor a todas as formas de absolutismo nacionalista e de populismo antidemocrático.

IHU On-Line – O enfraquecimento de formas de representação tradicionais, como os partidos políticos, e o reconhecimento de limites dos regimes democráticos estabelecem brechas e riscos de que tipo?

Giannino Piana – Não há dúvida de que a responsabilidade por aquilo que ocorre e ocorreu também recai sobre as forças políticas tradicionais, os partidos, que, de lugares de agregação do consenso e de formulação das propostas programáticas para informar a ação política, infelizmente, muitas vezes, se transformaram em estruturas de poder, perdendo o contato com a base popular. A asfixia das seções locais, até mesmo em partidos tradicionalmente muito representativos, denuncia a presença de um processo involutivo, que deve ser absolutamente revertido.

Certamente, não se trata de voltar de modo servil ao passado – a sociedade mudou, e os partidos políticos também devem mudar –, mas sim de recuperar aquela tensão ideal original, que representa o terreno fecundo no qual se pode fazer germinar, em todos os níveis, a vida democrática. A democracia precisa hoje de um impulso semelhante e não pode se reduzir ao simples exercício do voto, mas deve dar origem a formas participativas cada vez mais amplas e deve se preocupar em garantir as condições econômico-sociais e civis para a inclusão na gestão da vida pública de todos os cidadãos.

IHU On-Line – A democracia representativa está em crise? Quais evidências sobre isso podemos levantar?

Giannino Piana – A crise da democracia representativa está fora de questão. Diversos fatores concorrem para determinar essa crise, entre os quais, sem dúvida, a tecnologia, nas suas aplicações concretas, tanto para a vida econômica quanto para o sistema das informações, ocupa um lugar de primeiro plano. O risco, de fato, é que a tecnocracia favoreça a plutocracia, isto é, o poder incondicional do dinheiro e, muitas vezes conectada a ela, a telecracia (hoje, sobretudo graças às mídias sociais e à difusão das fake news). Tudo isso só pode ser agravado pelos nacionalismos, que se referem ao modelo tradicional do Estado-nação, que, por causa da acentuada interdependência entre os povos, não é mais capaz de enfrentar questões que ultrapassam amplamente as fronteiras dos países individuais.

IHU On-Line – A ideia de democracia direta vem ganhando mais espaço? Por que e como ela pode ser praticada?

Giannino Piana – A ideia de democracia direta, que está na raiz dos populismos, é na realidade (pelo menos por enquanto) um fenômeno totalmente elitista. A prova disso está no fato de que a web, à qual o Movimento 5 Stelle recorre na Itália tanto para escolher seus representantes nas várias instituições administrativas e políticas, quanto para propor e avaliar os programas a serem implementados, chega, de fato, a um percentual muito limitado de pessoas, que certamente não podem ser consideradas o povo. O espaço concretamente ocupado pela democracia direta, portanto, é, neste caso, ridículo: estamos bem longe da sua prática efetiva.

Esse fato, contudo, não deve ser um álibi atrás do qual devamos nos entrincheirar para esconder a crise que hoje atravessa também a democracia representativa por causa das razões já lembradas, mas também por causa das dificuldades que se encontram na escolha e na designação da representação: os mecanismos tradicionais parecem ter se deteriorado, e torna-se necessário traçar novos caminhos, que permitam a livre expressão da cidadania.

IHU On-Line – Questões consagradas pelos direitos humanos, entre elas o combate ao racismo e o respeito à diversidade sexual, correriam sérios riscos se fossem submetidas a algum mecanismo de consulta direta. Como lidar com essa situação?

Giannino Piana – A democracia – é bom lembrar – não pode se reduzir ao simples respeito formal pelo princípio da maioria, por mais importante que ele seja. Ela envolve a adesão a algumas posturas éticas, que são os pressupostos dos quais não se pode abrir mão se pretendemos concorrer para a busca do bem comum. As Cartas dos Direitos definem precisamente essas reivindicações, totalmente inderrogáveis.

Se não fosse assim, de fato, também acabariam tendo plena legitimidade leis altamente prejudiciais à dignidade humana – pensemos nas leis raciais –, na medida em que elas recebem a aprovação popular. Autores como Kelsen[1] ou Bobbio[2], que defendem um conceito formal de democracia, também não deixam de ressaltar a necessidade do respeito por alguns valores-chave, como a tolerância, o direito das minorias, a justiça social e assim por diante. A reação ao risco assinalado deve ser firme no plano institucional, mas, acima de tudo, deve se desenvolver no plano social e civil, fazendo aumentar a consciência dos valores referidos.

IHU On-Line – Por que países europeus vêm rejeitando de maneira contundente os migrantes refugiados?

Giannino Piana – Como já se recordou, contribuem para provocar tal rejeição os egoísmos individuais e de grupo, as tendências nacionalistas e soberanistas, e a presença de formas de xenofobia e de racismo. No entanto, não se pode negar que o afluxo de um número cada vez maior de migrantes cria sérios problemas, particularmente o de fornecer condições de moradia e de trabalho adequadas. Além disso, as tensões nascem muitas vezes de uma percepção do fenômeno que não corresponde à realidade, isto é, que é agigantado graças também às informações incorretas das mídias. O problema não é de fácil solução, mas, na base de tudo, existe a exigência do cultivo de uma cultura da acolhida e da solidariedade.

IHU On-Line – O projeto de uma Europa unificada mobilizou forças políticas e diversas nações décadas atrás. Por que esse ideal passou a ser questionado?

Giannino Piana – O ideal europeísta nasceu no último período imediatamente pós-guerra – aquele que se seguiu à queda dos regimes totalitários que ensanguentaram o continente europeu – e teve o grande mérito de assegurar aos povos europeus mais de 70 anos de paz. A realização desse ideal se desenvolveu com fases alternadas e encontrou expressão sobretudo no campo econômico – infelizmente muito pouco nos campos político e cultural – com a progressiva inclusão de novos países, particularmente os do Oriente que gravitavam no passado na órbita da ex-União Soviética e que produziram mais dificuldades. Hoje, a situação está gravemente comprometida pelos motivos já lembrados. Esperamos que as próximas eleições europeias criem as condições para um verdadeiro relançamento.

Notas:

[1] Hans Kelsen: jurista austríaco, autor da teoria pura do direito. De origem judia, foi perseguido pelo nazismo e fugiu para os Estados Unidos da América. Sua obra abrange a Teoria do Direito, principalmente, mas também filosofia do direito, dogmática jurídica, especialmente quanto ao direito constitucional e direito internacional, além de obras propriamente políticas, filosofia da justiça e sociologia. De sua autoria citamos Teoria pura do Direito (São Paulo, Martins Fontes, 2000); A ilusão da justiça (São Paulo: Martins Fontes, 2000); O que é justiça? (São Paulo: Martins Fontes, 2001). (Nota da IHU On-Line).

[2] Norberto Bobbio (1910-2004): filósofo e senador vitalício italiano. Considerado um dos grandes intelectuais italianos, Bobbio era doutor em Filosofia e Direito pela Universidade de Turim, fez parte do grupo antifascista Giustizia e Liberta (Justiça e Liberdade). Adepto do socialismo liberal, Bobbio foi preso durante uma semana, em 1935, pelo regime fascista de Benito Mussolini. Em 1994, assumiu publicamente uma posição contra as políticas defendidas por Silvio Berlusconi, que representava o centro-direita nas eleições gerais. Nesta altura, escreveu um dos seus ensaios mais conhecidos, Direita e Esquerda, no qual se pronunciou contra a “nova direita”. Bobbio recebeu o doutoramento Honoris Causa pelas universidades de Paris, de Buenos Aires, de Madrid, de Bolonha e de Chambéry (France). Autor de livros de impacto, como Direita e Esquerda (São Paulo: Unesp, 2001), tinha como principais matrizes de sua obra a discussão da guerra e da paz, os direitos humanos e a democracia. Escreveu ainda Teoria Geral da Política (Rio de Janeiro: Campus, 1999); Diálogo em Torno da República (Rio de Janeiro: Campus, 2001); Entre Duas Repúblicas (Brasília: Ed. UnB, 2001); Elogio da Serenidade (São Paulo: Ed. Unesp, 2002); O Filósofo e a Política (Rio de Janeiro: Contraponto, 2003). Em virtude se seu falecimento, aos 94 anos, a edição 89 da IHU On-Line, de 12-01-2004, apresentou a biografia de Norberto Bobbio. (Nota da IHU On-Line).

CC 2.0 WIKIMEDIA

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

13 − três =