Uma atroz conveniência. Por Patrick Mariano

Na Cult

Antes de começar a escrever este artigo tentei encontrar o pedido de prisão feito por Raquel Dodge contra o governador do Estado do Rio de Janeiro, Fernando Pezão, bem como a decisão do ministro Félix Fischer que a determinou. Em vão, resolvi ligar na assessoria de imprensa dos dois órgãos públicos e a reposta que recebi foi a de que sobre elas havia sigilo e que não a divulgariam. Resolvi insistir e indagar até quando esse sigilo vigoraria e não obtive nenhuma projeção quanto ao tempo. Na noite do dia 1 de dezembro, dois dias após a prisão, soube que o ministro Fischer havia levantando o sigilo apenas do pedido de prisão.

Em 2015 realizei uma pesquisa em decisões do STF que compreendia um período de 70 anos de jurisprudência sobre prisão preventiva e ordem pública. Foram 460 decisões judiciais pesquisadas. Pude analisar desde decretos de prisão de anarquistas no início do século passado, como as de comunistas em meados desse mesmo século, e consegui acessar todas elas sem restrição do computador de casa.

Confesso que a ausência de transparência e publicidade do conteúdo do decreto prisão do governador do segundo Estado mais populoso do Brasil, sem qualquer acesso ao conteúdo, foi uma novidade quanto ao método utilizado.

Num primeiro momento, a razão para esta prática que desrespeita o Código de Processo Penal e a Constituição da República, seria evitar a crítica e o escrutínio público. Essa realidade aturde, porque se trata da mais alta autoridade daquele Estado, eleito pelo voto de milhões de cariocas. Aos eleitores cariocas, não apenas à crítica especializada jurídica e a sociedade em geral, é que esta decisão deliberada de esconder os motivos da prisão é ainda mais absurda.

Veja, façamos o exercício: eu sou um eleitor do Rio de Janeiro, exerci meu direito democrático em 2014 e, numa bela manhã qualquer, uma viatura da PF adentra a sede do Governo do Estado. De lá, retira em camburão o próprio governador e não se revela o teor do ato de prisão. Como se bastasse ou fosse suficiente para suprir esse disparate, é oferecida apenas uma entrevista coletiva em que a autoridade que requereu a prisão apresenta sua versão dos fatos. E nada mais.

Ao liberar o conteúdo do pedido de prisão feito por Raquel Dodge, mas não o do decreto prisional, o ministro possibilitou a exploração dos meios de comunicação de trechos das provas colhidas justamente para reforçar a estigmatização do acusado e sua própria decisão.

Da entrevista da senhora procuradora geral e, agora do seu pedido de prisão, se extrai a informação de que os fatos que motivaram a prisão teriam ocorrido de 2007 a 2015, há quase quatro anos, portanto, do momento da prisão.

Não há notícia de que o governador tenha praticado algum fato concreto que atrapalhasse a investigação, ou tivesse se negado a com ela colaborar ou de que estaria colocando em risco uma eventual e incerta aplicação da lei penal. A única menção mais próxima da atualidade foi uma interceptação de diálogo por telefone sobre um fato ocorrido no sistema prisional do Estado do Rio de Janeiro, que envolvia o ex-governador Sérgio Cabral. O relato era de que Cabral havia sido levado para uma solitária por ter discutido com um representante do Ministério Público. O governador então, disse que tomaria pé da situação. Por óbvio, tudo que é relativo ao sistema prisional carioca é de competência e interesse da autoridade máxima do Poder Executivo, o governador do Estado.

Diante dessa carência de fatos, sobra como motivo para a prisão a necessidade de “preservar a ordem pública” o que, diante do lapso temporal entre a suposta prática dos crimes e a prisão, se revela completamente descabida: como um fato ocorrido em 2015 poderia ocasionar risco à ordem pública no presente momento? O uso da interceptação telefônica mencionada a pouco, a fim de justificar a necessidade do decreto de prisão, apenas revela o seu arbítrio.

Dois elementos precisam ser esquadrinhados neste caso: a quem interessaria a prisão do governador neste momento? Qual será o impacto deste ato na criminalização da política e qual é a sua relação com a implementação da agenda econômica ultraliberal, não apenas no Rio, mas no Brasil?

Em um momento de reconfiguração das forças políticas e de montagem do novo governo, muito se tem falado sobre a indicação para o cargo de Procurador Geral da República sob a nova gestão e a influência de Sergio Moro neste processo.

São aventados, deste modo, nomes próximos ao ex-juiz, o que tiraria Dodge do poder. Aqui então talvez esteja a chave para a prisão neste momento. Dodge, distante do rigor técnico e constitucional, teria apostado no jogo político para se reposicionar e se fortalecer perante a “opinião pública” e os novos ocupantes do poder. A iniciativa não é nova. Janot fez o mesmo com Temer, mas não contava com a força política do governo no Congresso. Acabou por ser desmoralizado e perdeu as eleições internas da PGR.

Aqui reside um dos maiores problemas do tempo presente: o MPF e o Poder Judiciário agem como se fossem bancadas do Congresso Nacional e seus atos, decisões e o peso institucional dos próprios órgãos são cada vez mais pautados pelo oportunismo e conveniência política.

Os exemplos são inúmeros: a liminar de Fux segurando por longos anos a análise do auxílio-moradia, os inexplicáveis cinco meses em que Teori segurou o pedido liminar de afastamento de Eduardo Cunha, a prisão do Senador Delcídio Amaral e os atos de Moro na condução da operação lava-jato.

Talvez aí esteja a resposta para o ato de se ocultar o pedido de prisão (durante dois dias) e a própria decisão: não se trata de fundamento voltado ao campo do direito, mas sim às próprias idiossincrasias e necessidades políticas de Dodge.

Outro aspecto do ato de prisão e do seu simbolismo – esse é talvez um dos mais preocupantes – é o encontro do populismo penal com a consolidação do pensamento econômico que expolia o pouco do aspecto social do Estado no tempo presente.

O capitalismo, como se sabe, é constituído por crises cíclicas e atravessado, em seu próprio âmago, pela instabilidade na sociabilidade para garantia do mais-valor. No contexto político brasileiro, notadamente o do Rio de Janeiro, que se revela no formato de uma crise econômica e social profunda materializada no atraso de salários de servidores, desastre na prestação da saúde pública, no sistema educacional, na segurança pública (da qual a intervenção militar é o ápice dessa crise), a expiação de todos esses males através de um bode expiatório vem bem a calhar.

A execração, a humilhação, a exposição pública, o ritual de destruição à semelhança dos procedimentos medievais estimulados e fortalecidos pela atuação dos meios de comunicação são necessários. A cobertura da Globonews mostrou-se como um misto de sadismo e espetáculo. Justamente o grupo econômico que mais esteve próximo de Cabral e Pezão no auge do crescimento econômico do Estado e dos grandes eventos. Os lucros e a parceria entre eles parece nunca ter existido, mas para exibir Sérgio Cabral acorrentado pelos pés e mãos, como um serial killer, não houve nenhuma assunção de culpa ou autocrítica (palavra da moda) por parte da Rede Globo.

O simbolismo disso tudo é a construção do imaginário das pessoas de que a crise econômica não é fruto da imposição de uma gestão submissa ao interesse do sistema financeiro e de escolhas que levam a redução e aniquilamento do viés social do Estado, mas, sim, de inteira responsabilidade de uma única pessoa.

Assim, nada é gratuito. O discurso de Barroso no julgamento do indulto e o espetáculo da prisão preventiva de um governador eleito democraticamente para além da estigmatização e criminalização da política é conveniente para a imposição do neoliberalismo. Mesmo que o custo dessa conveniência seja a atrocidade do nosso tempo.

PATRICK MARIANO é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP

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