Por Marina Silva, no Correio
Sem a permissão e consentimento dos seus donos, o Terreiro Húnkpame Karè Lewí Xwè, localizado na Travessa Heráclito, em Cajazeiras IV, teve 3 mil m² de área verde de seu território sagrado devastados por tratores.
Além das espécies arrancadas do solo, como pés de coqueiro, piaçava e canela de velho, o terreiro teve muitas de suas ferramentas ritualísticas destruídas pelo maquinário. Uma perda que, segundo os filhos da casa, é incalculável.
“Foram árvores sagradas, assentamentos e materiais de culto, as representações dos orixás. Infelizmente, não temos como recuperar isso. Não temos como recuperar essa área perdida que é o mais importante para gente. O que nós cultuamos ainda é vivo, mas as suas representações foram destruídas”, lamenta Francisco Bottas Neto, Ogã do terreiro.
Os assentamentos, que são os objetos que representam cada orixá, são os locais onde o povo de santo costuma depositar suas oferendas. Ao todo, foram três representações destruídas: Xangô, Ogum e Baba Egun. Ainda não há informações sobre qual empresa estava realizando obras no local, o que será apurado pela Polícia Civil.
“Eram de extrema importância para o nosso culto. Para começar qualquer sequência de ritual dentro do Candomblé, nós precisamos render homenagens a eles, mas não vamos deixar de cultuar porque nós temos outras formas de culto”, lamenta o ogã.
De acordo com ele, as máquinas que já estavam trabalhando a todo vapor nas imediações, avançaram para os fundos do terreno no dia 11 de dezembro. Ao perceber que os veículos se aproximavam da área, os proprietários do local tentaram avisar aos trabalhadores que conduziam as obras, mas sem sucesso.
Duas escavadeiras e um trator, lembra o ogã, foram responsáveis arrancar a cerca do espaço e avançar para a destruição dos 3 mil dos 12 mil m² da área que pertence a sua família desde 1993, como pode ser atestado por meio de um documento de compra e venda.
Investigação
O caso foi registrado na 13ª Delegacia Territorial (Cajazeiras) e, após o comunicado, uma equipe do Departamento de Polícia Técnica (DPT) esteve no local constatando o perimetro devastado. O desmatamento se estendeu também a um corrégo que fica fora da propriedade do terreiro, mas que era utilizado nos rituais religiosos.
“Quando estive nas obras com uma equipe da polícia procurando os responsáveis ninguém se apresentou, disseram que os donos estavam em reunião. Não se sabe, até agora, quem está à frente disso. Queríamos saber se isso (desmatamento) está legalizado e se há autorização para isso. Só no nosso terreno foram centenas de árvores”, explica o sacerdote Carlos Alberto de Oliveira.
A delegada Olveranda Santos, titular da 13ª Delegacia, informou que oitivas já foram realizadas com membros da comunidade do Terreiro. As investigações estão sendo realizadas pela Polícia Civil para identificar a empresa responsável pela obra que serão posteriormente intimados para prestar depoimentos.
Intolerância
O Centro de Referência e Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, ligado à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Bahia (Sepromi), está acompanhando e começará a apurar o caso nesta quarta-feira (19). De acordo com a coordenadora do centro, Nairobi Aguiar, integrantes do terreiro entraram em contato com o Centro na última quarta-feira (12) pedindo orientações.
“Iniciamos as primeiras orientações. Falamos que o primeiro passo a se dar em casos de intolerância religiosa e racismo é fazer o registro na delegacia. Orientei que tivesse mais detalhes possíveis, fazer constar no boletim de ocorrência que se tratava de racismo e intolerência religiosa”, contou Nairobi.
Uma reunião entre membros do terreiro e o Centro será realizado nesta quarta-feira (19). “Eles irão apresentar os documentos necessários para que a gente comece a representar o terreiro nesse caso, como o documento do terreiro. Após isso, nós iremos acionar os órgãos que fazem parte da rede de combate ao racismo, para que a gente possa trabalhar de forma integrada”, afirmou.
Dentre os órgãos que fazem parte da rede estão a Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA), o Ministério Público Estadual (MP-BA) e a Defensoria Pública do Estado. “Ainda não conseguimos identificar de qual empresa são as máquinas que violaram o terreiro”, disse Nairobi.
De acordo com dados do Centro de Referência e Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, 17 casos de violações à terreiros foram realizados nos últimos quatro anos. Em 2015, quatro casos foram registrados, em 2016 foram cinco, em 2017 três e em 2018, cinco casos. Neste ano, 136 ocorrências foram registradas no Centro, sendo 83 de racismo, 43 de intolerância e 10 de casos correlatos.
*Sob a supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier
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Ogã do terreiro, Francisco Bottas conta que área destruída era de extrema importância para o culto. Foto: Marina Silva /CORREIO