por Gustavo Freire Barbosa*, em CartaCapital
Então advogado, em maio de 2011 o hoje ministro Luís Roberto Barroso subia à tribuna do Supremo Tribunal Federal para sair em defesa da constitucionalidade das uniões homoafetivas. Na ocasião, Barroso fez questão de destacar o caráter contramajoritário do poder judiciário no reconhecimento de direitos cuja institucionalização pelas vias do parlamento se mostra improvável em virtude de sua maioria conservadora.
Ser contramajoritário, como o próprio termo deixa claro, é bater de frente com o conjunto de ideias, posições e concepções prevalecentes. Foi o que Mitterrand fez em 1981 ao abolir a pena de morte na França mesmo com a maioria da população sendo favorável à pena capital. Foi o que fizeram os ministros Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal no período em que ocuparam cadeiras no mesmo STF do ministro Barroso. Os três pagaram o preço pela insolência de não se alinharem ao regime militar.
Hoje, Barroso entende que o juiz deve ouvir o “sentimento social” ao decidir. Julgando que o “sentimento social” é aquele entabulado pela guilhotina do lavajatismo, Barroso achou conveniente sepultar o iluminismo. Com ele, os dizeres dos artigos 5º, inciso LVII da Constituição Federal e 283 do Código de Processo Penal que preveem a presunção de inocência e proíbem a prisão antes de decisão condenatória definitiva.
As contradições entre o Barroso-advogado e o Barroso-ministro foram expostas pelo advogado José Roberto Batochio no plenário do STF. Ao levantar tese que favoreceria o ex-presidente Lula e que já havia sido defendida naquela tribuna por Barroso, o ministro o interrompeu exasperado para afirmar que fora derrotado na época. Demônios do passado costumam ser inconvenientes. Não veem hora nem lugar quando decidem dar seus sustos.
Barroso não está só em sua retórica populista. Fux, seu colega, defende que as decisões do STF devem refletir os “anseios da sociedade”. É improvável que a sociedade concorde que magistrados, já bem servidos de benevolentes soldos, ganhem auxílio-moradia. Isso, contudo, não impediu que Fux com uma canetada permitisse seu regular pagamento, ordem que seria revista somente depois de quatro anos e da sanção do reajuste de 16% dos salários do STF. Até lá, mais de um bilhão de reais foram para os aristocráticos bolsos de nossos juízes.
Na quarta-feira, 19 de dezembro, o ministro Marco Aurélio decidiu liminarmente que todos os presos decorrentes de condenações não-definitivas em segunda instância deveriam ser soltos. Na leva estaria o mais famoso encarcerado do planeta, o ex-presidente Lula. Depois do episódio envolvendo a decisão do desembargador Favreto e o conluio entre os desembargadores Gebran Neto, Thompson Flores e o então juiz Sérgio Moro para mantê-lo preso, ficou bastante claro que, se a decisão for favorável a Lula, o sistema recursal que deve ser aplicado não é o dos códigos de Processo Civil ou de Processo Penal. Muito menos o da legislação especial. É, sim, o da cabeça do juiz que melhor atender à lascívia do lavajatismo em manter o ex-mandatário atrás das grades, já que a decisão foi reformada no mesmo dia, um domingo, com um dos juízes suspendendo suas férias e sem que fosse necessária a interposição de recurso. Incrível.
Há quem acuse Marco Aurélio de ter agido politicamente. É provável que quem faça esse tipo de acusação não tenha visto problema no fato da ministra Carmen Lúcia, quando presidia a corte, ter manipulado a pauta e jogado o julgamento do habeas corpus de Lula para antes do julgamento das ações que iriam analisar a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal (que, repita-se, proíbe a prisão antes do trânsito em julgado). Por causa dessa pedalada, Lula está preso até hoje.
Quando Fux, passando o trator por cima de inúmeros precedentes, engabelou o sistema recursal e, no estilo “eu que mando”, derrubou a decisão de Lewandowski que permitiu que a Folha de S. Paulo entrevistasse Lula, provavelmente nenhum dos que ficaram indignados com a decisão de Marco Aurélio o acusou de politizar o judiciário. Creio que já esteja claro que decisão técnica, de acordo com os parâmetros e ritos legais e processuais, é sempre a que mantém Lula preso. Aprendam.
Ame-o ou odeie-o, uma coisa deve ser reconhecida: somente um gigante da envergadura de Lula é capaz de demonstrar a completa disfuncionalidade e o descarado privatismo em que se encontra nosso sistema de justiça – disfuncionalidade que existe unicamente se tivermos como referência o “limitado horizonte jurídico”, expressão usada por Marx em sua crítica ao Programa de Gotha. Limitado sim, pois é inegável que o sistema se encontra plenamente funcional para atender a determinados fins num contexto em que, na queda de braço entre capital e trabalho, aquele está ganhando com sobras. Manter livre a principal liderança capaz de aglutinar forças contra isso é uma ingenuidade que a direita jamais cometeria – diferentemente da esquerda e seu reino de fantasias republicanas.
Episódios como o desta quarta dão a impressão, diria Millôr Fernandes, de que o país vez por outra corre o risco de cair numa democracia. É bom sermos implacáveis agora. Pois a história em seu julgamento será – e irá cobrar a fatura de onde estávamos.
*Professor e advogado.
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Fotos: Justificando/STF