As línguas indígenas, o Brasil e a Unesco em 2019. Por José Ribamar Bessa Freire

“A história da América é também a história de suas línguas, que temos de lamentar quando já mortas, de visitar e cuidar quando doentes, de celebrar com alegres cantos de vida quando faladas”. (Bartolomeu Meliá – 2010)

No Taqui Pra Ti

Em uma das línguas guarani, o homem denomina sua  irmã de  (t)xereindy, que significa algo assim como “luz de minha vida”. Já a mulher chama seu irmão de (t)xekywy, em livre tradução “aquele que está sempre ao meu lado”. Essa é uma das formas de marcar com léxico específico as relações entre irmãos segundo o gênero e o lugar que ocupam. A antropóloga guarani Sandra Benites, explica:

– O irmão ampara. E a irmã o ilumina para ele não se perder na escuridão.

Esse modo único de nomear as relações de parentesco e as demais coisas caracteriza cada uma das 6.700 línguas do mundo, das quais 5 mil são indígenas, a maioria em risco de extinção. Elas guardam um tesouro cultural, entre outros, conhecimentos sofisticados sobre o ecossistema, métodos de conservação, segredos de cura, mistérios da vida das plantas, comportamentos de animais e de seres humanos, sistemas de classificação, literatura oral, poesia, cantos –  tudo isso acumulado em milhares de anos e que precisa ser estudado e compartilhado com o mundo inteiro.

No entanto, segundo o irlandês David Crystal, em “A revolução da linguagem”, a cada duas semanas desaparece uma língua, num ritmo acelerado sem precedentes na história da humanidade, o que é dramático e alarmante:

– Uma língua começa a desaparecer quando seus falantes são expulsos de suas terras ou quando a comunidade, por essa e outras razões, perde o desejo de preservá-la. Se uma língua que nunca foi documentada morre, é como se jamais tivesse existido, porque não deixa qualquer vestígio” – diz Crystal.

All the world

Se o guarani falado em quatro países desaparecer do planeta, nenhuma irmã jamais será chamada de “luz de minha vida” por seu irmão, porque essas formas poéticas de ler as relações fraternas também desaparecem. O que significa que a morte de uma língua é tão catastrófica para a humanidade quanto a extinção de uma planta ou de um animal, porque com ela se perdem formas de imprimir sentido às relações e de entender o mundo.  

– A língua é sagrada porque guarda o pensamento de um povo. Se eu falo em português a palavra casa, lembro uma construção com paredes, mas na minha língua Yaathé casa é cetutxiá, que significa lugar de sorrir, de paz, de alegria – diz dona Taci, pajé de Águas Belas (PE), onde vivem mais de seis mil índios Fulniô, muitos dos quais já não usam a língua, que a pajé, já falecida, fazia questão de falar sempre dentro da casa. O português, como sua segunda língua, por ter sido aprendida em situação de conflito, não lhe permite criar os sentidos poéticos e afetivos que compõe na sua língua materna.  

Como impedir este glotocídio? A ONU celebra o Ano Internacional das Línguas Indígenas, em 2019, quando a UNESCO promove eventos em defesa dessas “línguas em perigo”, consideradas moribundas ou anêmicas, e dará seu aval a governos, organizações indígenas, universidades e centros de pesquisa para realizarem atividades em pelo menos 90 países, onde as línguas indígenas são faladas por 3% da população mundial. E no Brasil?

Brazil out

As línguas indígenas, jamais reconhecidas pelas instâncias do poder, foram reprimidas em todo o continente americano ao longo de sua história. Perderam falantes que tiveram as terras usurpadas, sofreram castigos físicos na escola para não usá-las e foram compelidos a se envergonhar delas. Mais de mil línguas faladas no Brasil foram minorizadas, silenciadas e extintas em cinco séculos. O Estado brasileiro só mudou seu discurso na nova Constituição de 1988, que reconhece aos índios o direito de usarem suas línguas originais como forma de exercer a sua cidadania e etnicidade.

Esse Brasil, que não se considerava um país plurilíngue, sequer sabia quantas línguas eram faladas em seu território. O Censo do IBGE, pela primeira vez, em 2010, contabilizou 274 línguas indígenas, a partir da autodeclaração dos falantes. Já os linguistas propõem que esse número oscila entre 160 a 180, considerando que muitas delas podem ser variações de uma mesma língua.

De lá para cá, registramos avanços. Professores indígenas foram capacitados para dar aulas a 250 mil crianças, em mais de 2.700 escolas interculturais, a maioria delas bilíngues. Foi criado em 2010 o Inventário Nacional da Diversidade Linguística, permitindo o IPHAN identificar algumas línguas indígenas como “línguas de referência cultural brasileira”. Universidades, museus e centros de pesquisas desenvolveram projetos para documentar as línguas em perigo e formaram alguns índios no mestrado e no doutorado em linguística.  

Todas essas conquistas estão agora ameaçadas pela corrente ideológica que toma posse no dia 1º de janeiro. O presidente eleito com 57 milhões de votos anuncia que vai rever as demarcações de terras, que a diversidade atenta contra a unidade nacional, que vai “proporcionar meios para os índios se integrarem à sociedade e serem iguais a nós”. Nós quem, cara pálida? Quem quer ser igual a Jair Bolsonaro? Os 57 milhões que votaram nele? Será que assinam embaixo do lema “O Brasil acima de tudo, os índios abaixo de todos?” De qualquer forma, o Brasil oficial está de fora das comemorações do Ano Internacional das Línguas Indígenas.

Retrocesso

Estimulado por esse discurso, o agronegócio com seus jagunços já está afiando os cascos. Ataques pipocam em várias regiões do país. Em Pernambuco, pistoleiros invadiram a terra Pankararu, na quarta (26), e incendiaram a escola indígena, creche e posto de saúde. No Maranhão, na quarta (19), uma força policial retirou 160 famílias de índios Tremembé de suas terras e tratores destruíram as plantações cuidadas sem agrotóxicos. No Amazonas, sábado (22), capangas armados atacaram a base da Funai de proteção a índios isolados na Terra Indígena Vale do Javari. Em Mato Grosso do Sul, o martírio dos Guarani-Kaiowá é permanente. Um silêncio sepulcral na grande mídia, com raras exceções.

Nessa questão, enquanto parte da humanidade avança em direção à civilização, o Brasil retrocede à barbárie, ao esquadrão da morte formado por bandeirantes no período colonial, a Paulo de Frontin, presidente da “Comissão do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil”, que declarou em 1900 no seu discurso oficial de abertura das comemorações:

– “O Brasil não é o índio; os selvícolas, esparsos, ainda abundam nas nossas magestosas florestas e em nada differem dos seus ascendentes de 400 anos atrás; não são nem podem ser considerados parte integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o conseguindo, eliminá-los”.

Esse discurso obscurantista e genocida aflorou na ditadura militar de 1964. Muitos anos depois, um de seus ministros, Delfim Netto, suspeito de receber 15 milhões de reais em propinas relacionadas à construção da Usina de Belo Monte, foi objeto de busca e apreensão na Operação Lava-Jato em 9 de março de 2018. O gordinho sinistro, para retribuir o pagamento,  desrespeitou as línguas indígenas fazendo “gracinha” nas páginas amarelas da VEJA:

– “Veja o caso do complexo hidrelétrico Belo Monte, no Rio Xingu. Por mais nobre que seja a questão indígena, é absurdo exigir dos investidores que reduzam pela metade a potência da energia prevista num projeto gigantesco, só porque doze índios cocorocós moram na região e um jesuíta quer publicar a gramática cocorocó em alemão”.

Esse é o espírito que anima o novo governo: truculência, deboche, ignorância, boçalidade. O movimento indígena e os “doze índios cocorocós” já estão organizando, por conta própria, as comemorações em defesa de suas línguas e de seus territórios. A resistência continua. Somos milhões de cocorocós, os índios e seus aliados.

P.S. O historiador mexicano Miguel León Portilla escreveu em nahuatl um belo poema Ihcuac tlahtolli ye miqui, cuja versão ao português Quando morre uma língua publicamos aqui em 2016. No Ano Internacional das Línguas Indígenas pedimos licença ao autor para ressuscitar as línguas nessa outra versão:

QUANDO UMA LÍNGUA VIVE

Quando uma língua vive,

se refletem nela

como num espelho

as coisas divinas, o universo:

estrelas, sol, lua. 

bem como as coisas humanas:

pensar, sentir, amar.

Quando uma língua vive

tudo o que existe no mundo,

mares e rios,

animais e plantas

são pensados e ditos

com sinais e sons

repletos de significados.

Quando uma língua está viva

se abrem, então,

a todos os povos do mundo

uma janela, uma porta,

o desabrochar diferente

de tudo aquilo que é ser e vida na terra.

Quando uma língua está viva

qualquer falante dela,

consegue renovar 

suas palavras de amor,

suas entoações de dor e querência,

ou – quem sabe? – seus velhos cantos,

suas histórias, discursos, preces.

Mas quando morre uma língua,

Ah, quando morre uma língua,

a memória fenece.

Espelhos quebrados para sempre,

sombra de vozes

silenciadas para sempre:

a humanidade se empobrece.

(http://www.taquiprati.com.br/cronica/1292-quando-morre-uma-lingua-version-en-espa)

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