Índio terena emociona ao chegar no doutorado sem nunca ter abandonado seu povo

Aos 33 anos, Leosmar quer concluir o doutorado e continuar fortalecendo a resistência do povo indígena.

Por Thailla Torres, no Campo Grande News

Aos 33 anos, Leosmar Antonio é o primeiro da família a ter um diploma e também o único da terra indígena Cachoeirinha, no município de Miranda, aprovado em todas as etapas da seleção do doutorado, na destacada instituição de pesquisa na área de ciência e tecnologia em saúde da América Latina, a Fiocruz.

Abraçando amigos e o Koixomuneti, liderança espiritual da aldeia, o indígena comemora a conquista e ganha depoimentos emocionantes de quem há anos acompanha o “filho da roça” encarar de cabeça erguida a ciência, dedicado a fortalecer a resistência de um povo que cada vez mais luta pela sobrevivência.

Ele venceu todas as etapas para conquistar uma das 15 vagas no doutorado em Epidemiologia em  Saúde Pública, onde pretende, de maneira mais específica, aprofundar a análise sobre os impactos que as alterações ambientais causam no processo de saúde-doença do povo indígena. “Foi um processo difícil e concorrido. Teve análise curricular, inglês, produção científica, mas consegui chegar a reta final. Vai ter ‘Filho da Roça’ doutor sim”, comemora o doutorando por telefone.

Leosmar é terena, biólogo, mestre, professor, filho de Juliana da Silva e Ecildo Antonio, que durante décadas trabalharam na roça para sustentar a família e em condições que o filho nunca esqueceu. “Nasci na aldeia, onde permaneci até os 3 anos de idade. Depois, meus pais mudaram para uma fazenda por causa da dificuldade de manter a família. Cresci vendo as dificuldades, como um salário muito baixo para muitas horas de trabalho. Eu não aceitava aquela situação”, conta Leosmar. Aos 14 anos o menino voltou para a aldeia e se dividia entre o trabalho e as horas de estudos.

Sair da aldeia e estudar em uma universidade pública, em Dourados, segunda maior cidade do Estado, foi um desafio para Leosmar. “Dormi na praça, morei em fundo de bares, furava buraco para fossa e era servente para ter condições de continuar na cidade e terminar meu curso“. Apesar de ter conquistado uma vaga na universidade pública, ele sabe que essa é uma oportunidade para poucos indígenas, que também necessitam enfrentar o preconceito. “Naquela época não tinha uma força indígena dentro da universidade, o preconceito era dos colegas e até dos professores”.

Observando as dificuldades de seu povo para manter suas raízes, ele sempre soube que se dedicaria a uma vida mais digna e justa para a comunidade indígena, especialmente, terena. Mas o projeto foi consolidado quando ingressou como bolsista na Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias), quando o seu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) teve o objetivo de realizar uma seleção preliminar de bactérias de solos de sua comunidade que pudesse contribuir na produtividade das roças Terena.

De lá pra cá, as iniciativas só aumentaram, assim como a luta pelo reconhecimento da ciência que teima em não ver outras formas de conhecimento. “O povos tradicionais tem muito conhecimento ao longo dos anos. Nós, indígenas, temos muito a contribuir. Eu acredito que é possível unir esse conhecimento, ele é uma alternativa para a humanidade, principalmente, pela relação intíma com a natureza”, explica.

Levar conhecimento as aldeias é também um jeito de fortalecer seu povo, principalmente, depois que o presidente Jair Messias Bolsonaro (PSL), logo no primeiro dia de governo, colocou a demarcação de terras indígenas na mão de uma ruralista, a engenheira agrônoma Tereza Cristina (DEM), nova ministra da agricultura. “O desmanche já começou, estar no doutorado é mais uma forma de fortalecer a nossa resistência. Eu vou me especializar, levar conhecimento e fortalecer o meu povo. É o que eu mais quero no doutorado”.

Também, enquanto estudante de Biologia foi vencedor do Concurso de Redação e Poesia Avá Marandu “Direitos Humanos do Povo Guarani”, realizado pelo Pontão de Cultura, aberto a todos os países da América Latina, inclusive, o Brasil. Em 2012, logo após concluir sua graduação, foi indicado por caciques e lideranças das aldeias da Terra Indígena Cachoeirinha para compor o Conselho Regional do Projeto GATI (Gestão Ambiental e Territorial Indígena). 

Atualmente, é professor contratado da Rede Estadual de Ensino e do curso de licenciatura Intercultural Povos do Pantanal, da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul). Nesse curso, há seis anos, ministra três disciplinas específicas, sendo Biologia e Conhecimentos Tradicionais, Biologia Aplicada à Saúde e Tradições Terapêuticas Indígenas.

Leosmar entre lideranças indígenas do povo Tapuia, de Manaus. Foto: Arquivo Pessoal

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

1 × dois =