Há quem acredita que só se pode chegar ao paraíso após a morte. No entanto, sem morrer, nos primeiros dias do ano de 2019, estivemos em um paraíso natural e sagrado: a Lapinha, na Serra do Cipó, no município de Santana do Riacho, MG. Por estrada rústica, ao longo de sete quilômetros da cidadezinha de Santana do Riacho até o vilarejo da Lapinha, a paisagem é exuberante. Montanhas, vegetação de mata, campo rupestre e cerrado – berço e útero das águas -, flores exalando perfume com odores variados e deliciosos; uma infinidade de nascentes jorrando água que formam pequenos cursos d’água. Sem poluição, o ar oxigenado alimenta nosso corpo sagrado. Ainda no alto de uma serra, de repente descortina-se um vale encantador. Ao fundo, a Serra da Lapinha, aos pés da qual está o vilarejo Lapinha da Serra, distrito do município de Santana do Riacho, entrecortada pelos córregos Mata Capim e Riachinho. Com grandes e imponentes paredões que reluzem cores, entre elas, o lilás, a Serra da Lapinha integra o complexo de serras e escarpas da grandiosa Serra do Cipó, situadas na porção sul da Serra do Espinhaço. Impossível não parar e contemplar a beleza natural daquele vale com a Serra, o seu grande lago artificial (barragem) e, ao fundo, os picos da Lapinha e do Breu.
Na Lapinha da Serra encontramos o povo camponês nascido naquele território. Simplicidade, acolhimento e espontaneidade são traços característicos que experimentamos logo nos primeiros contatos. Ao conversar, percebe-se o imenso amor que têm por aquele lugar. Muitos amargaram por vários anos a vida surrada em Belo Horizonte, mas voltaram para o aconchego das suas origens na Lapinha. Ao redor se percebe um número expressivo de casas de pessoas da cidade que buscam um refúgio em ambiente de tranquilidade. Percebe-se também que os interesses do capital estão chegando com força, invadindo a Área de Proteção Ambiental (APA), o Morro da Pedreira e outras Unidades de Conservação (UCs) existentes na região.
Após contemplar a beleza natural do Vale da Lapinha, onde está também uma barragem de uma hidrelétrica de uma empresa privada, e após conversarmos com o porteiro que dá acesso à Cachoeira das Pedras e à Cachoeira do Hapel e sermos autorizados a entrar, logo no início do percurso, já dentro do ambiente próximo às duas cachoeiras, senti e intuí que estava em um lugar não apenas de natureza exuberante, mas um lugar sagrado e profundamente místico. Lembrei-me subitamente da passagem bíblica do livro do Êxodo que diz que Moisés, ao pastorear o rebanho, na montanha do Horeb, no deserto, teve uma experiência mística ao contemplar uma sarça ardente. Um anjo do Deus da vida lhe disse no meio de um fogo ardente: “Tire as sandálias dos seus pés, porque o lugar em que você se encontra é uma terra sagrada” (Êxodo 3,5). Nessa experiência fulcral e fontal, Moisés fez a experiência de que o Deus Javé não é um Deus neutro, mas é um Deus que ouve os clamores dos oprimidos, desce, se aproxima do povo injustiçado, convive e caminha junto às lutas libertárias (Êxodo 3,7-9).
A vegetação é encantadora. Das flores do campo e de muitas plantas exalam um perfume discreto, mas delicioso e com variados odores trazidos pelos ventos de sucupira, pau d’óleo, angico, jatobá, pindaíba, pequi, gameleira, sempre-viva, bromélia, alecrim e de delicadas orquídeas. Caminhar devagarinho sobre as pedras e areias brilhantes, de preferência em silêncio e descalço, vendo e observando o ambiente é o mais salutar. Contemplar de forma panorâmica o maciço ruiniforme – rochas esculpidas pelo vento e que tem aspectos de ruínas – da Serra da Lapinha com seus paredões imponentes, suas fendas instigantes e girar o olhar devagarinho sobre o grande Vale da Lapinha da Serra e seus picos deixa extasiado/a quem ainda não foi desumanizado pelo frenesi e estresse das cidades mercantilizadas e mercantilizadoras de tudo, do ser humano inclusive.
Na Cachoeira das Pedras, toda reverência é pouca. Sentar nas pedras e ficar contemplando a beleza da cascata de água vertendo até o poço das pedras é refrescante e energizante. A sinfonia da orquestra da cachoeira é inebriante. Não é barulho, é música harmoniosa que fala direto às cordas do mais profundo do nosso ser. Um convite para perceber a aura de mística e de sacralidade ali que irradia das suas cristalinas águas. Ver e sentir a apresentação da orquestra que é a cachoeira é revigorante, mas também fechar os olhos e ficar só ouvindo, sem ver, parece que nos eleva às nossas origens primeiras e ancestrais. Por outro lado, fixar o olhar no reflexo das águas em movimento na rocha chega a hipnotizar quem mergulha com sinceridade neste cenário extemporâneo. Assim como o profeta João Batista, do Evangelho bíblico, batizava nas águas do rio Jordão, tomar um banho, nadar no poço da Cachoeira das Pedras não é apenas inesquecível, é ser batizado pela irmã água e por todos os bons espíritos que ali estão e acariciam quem se deixa tocar pelo amor gratuito que irradia da cachoeira. Porém, é preciso ter cautela para não se acidentar nas pedras.
Mais uns 100 metros de caminhada por entre pedras e vegetação campestre perfumada, chega-se à imponente Cachoeira do Hapel, na Lapinha da Serra. Que beleza encantadora! Indescritível! Inefável! A vontade era de ficar ali e demorar ao máximo, esquecer o tempo de voltar. Recordei-me imediatamente da Cachoeira Casca D’Anta – de 186 metros de queda -, que está próxima das nascentes do Rio São Francisco, em São Roque de Minas, e também da Cachoeira da Jiboia – com 144 metros de queda -, no município de Uruana de Minas, no noroeste de Minas. Ao contemplar as maravilhas da Cachoeira do Hapel, em silêncio, alguns momentos de olhos abertos, outros momentos de olhos fechados, recordei também que o Deus vida que está no humano e nas entranhas da História, criou – e continua criando -, nas ondas da evolução, tudo “em seis dias, mas no sétimo dia descansou” (Gênesis 2,2-3). Por que Deus teria descansado após seis dias de trabalho criativo? Conta-se que um sábio teria perguntado a Deus porque ele resolveu descansar após o sexto dia. Ao contemplar a beleza e a sacralidade de toda a natureza, de tudo o que havia sido criado nas ondas da evolução – “Deus viu que tudo que tinha sido criado era muito bom” (Gênesis 1,31) -, Deus teria dito que já tinha criado tudo com muito amor e para o bem da humanidade e de toda a biodiversidade. Quando viu que faltava criar a cidade, o Deus criador concluiu que era melhor descansar, pois a natureza criada era pródiga.
Enfim, a região da Lapinha da Serra é um paraíso natural pelo encanto das suas cachoeiras, vales, montanhas e pelo seu povo camponês. Porém, a Lapinha é fundamentalmente um paraíso sagrado pelo grande número de sítios históricos e arqueológicos. A Lapinha da Serra nos diz que não basta lutarmos para conquistarmos direitos sociais e humanitários. É preciso também resgatar as nossas origens mais profundas e ancestrais e nos reconectar com a mãe terra, com a irmã água, com as serras esculpidas pelo tempo… e daí, com os bons espíritos presentes na natureza. A Lapinha não é apenas um paraíso natural, mas, acima de tudo, ambiente sagrado, por onde, aliás, viveram ao longo de milênios povos pré-coloniais e ancestrais; trata-se de memórias de uma longa duração e de uma natureza que é detentora de direitos e de dignidade. Penetrar neste universo é revitalizador. São encantadores os inúmeros sítios arqueológicos já encontrados e pesquisados por arqueólogas e arqueólogos, que não são, muitos deles e delas, apenas profissionais em busca de artefatos históricos e arqueológicos, mas são, em primeiro lugar, pessoas sagradas que nos mostram que é imprescindível a conexão com as culturas pré-coloniais, seus deuses, mitos, nossos parentes ancestrais, os encantados e os bons espíritos que não morrem nunca. Em tempos de trevas e de desertos no Brasil – fascismo e extrema-direita no poder -, parece imprescindível buscar os lugares naturais e mágicos, ver, sentir e absorver as suas mensagens e energias primordiais para seguir na luta e na resistência diante das injustiças sociais e ecológicas. Lapinha da Serra, na Serra do Cipó, em Minas Gerais, é um desses lugares de onde irradia uma luz e uma força divina impressionante. Gratidão eterna ao povo de Lapinha e a todos/as os/as ancestrais e bons espíritos que ali habitam há milhares de anos.
*Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
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Imagem: Pinturas Rupestres da Lapinha – Reprodução do Portal Oficial da Prefeitura Municipal de Santana do Riacho