É inaceitável que ONGs continuem a catequizar comunidades indígenas, diz especialista

Por Larissa Infante, Época

A retirada de crianças de comunidades indígenas e sua realocação em internatos, afastadas de suas famílias, foi durante muito tempo uma estratégia do Estado brasileiro. Em associação a ordens religiosas, as medidas buscavam promover a “integração” das populações nativas à sociedade brasileira. Até meados da década de 80, alguns desses internatos ainda funcionavam, explica o psiquiatra Maximiliano Loiola Ponte de Souza, um estudioso da saúde mental de populações indígenas. Em países que adotaram políticas semelhantes, como o Canadá e a Austrália, estudos apontam associação entre a internação compulsória de crianças e as altas taxas de suicídio nessas populações. Souza evita, porém, comentar o caso da índia Kajutiti Lulu Kamayurá, retirada aos 6 anos da aldeia Kamayurá, no Xingu, pela ministra Damares Alves, por não ter “todas as informações necessárias” para uma avaliação.  

Pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz, autor de vários artigos sobre a saúde dos povos indígenas, Souza tem uma postura crítica em relação a qualquer instituição, ONGs entre elas, que se aproximem de comunidades com o “propósito evangelizador”, mesmo que velado. Para o psiquiatra, instituições como essas fazem um desserviço as populações, na medida em que para convencê-las a abraçarem valores de outra cultura, acabam por desvalorizar o universo indígena. 

ÉPOCA publicou, em sua edição de 4 de fevereiro, uma reportagem sobre uma criança da aldeia Kamayurá, no Xingu, chamada Lulu. Segundo alguns indígenas, ela teria sido retirada irregularmente da  aldeia pela ministra Damares Alves, quando tinha 6 anos. Hoje, a ministra a apresenta como sua filha adotiva. De que forma casos assim podem afetar a criança indígena?  

É praticamente impossível fazer de forma adequada uma análise em profundidade das questões relacionadas a esse caso, uma vez que não temos todas as informações necessárias. Além disso, em qualquer reflexão que se faça sobre saúde mental indígena, é importante considerar a grande diversidade que existe dentro dos grupos indígenas brasileiros. Estima-se que no Brasil tenhamos mais de 200 povos indígenas, falantes de mais de uma centena de línguas. Esses indígenas estão em situações extremamente complexas e variáveis, desde indígenas em situação de isolamento ou semi-isolamento, em alguns pontos da Amazônia, até indígenas que residem em terras minúsculas, em área de intenso conflito agrário, como no Sul de Mato Grosso do Sul. Ademais, esses grupos indígenas têm tradições culturais diferentes. 

Mas, de forma geral, como o senhor vê a retirada de crianças indígenas de suas comunidades?  

Retirar crianças de suas comunidades foi, durante muito tempo, uma estratégia utilizada pelo Estado brasileiro para lidar com a questão indígena. Em associação com o conjunto de ordens religiosas durante muitos anos e até meados da década de 80, crianças indígenas, muitas vezes, eram colocadas em internatos, apartadas de suas famílias. Isso aconteceu em várias partes do Brasil. As crianças em geral eram tiradas de suas famílias mais ou menos na época em que iam passar pelos rituais de iniciação. Estes são rituais nos quais elas passam pela transição da infância para idade adulta e nos quais elas vão ter acesso, de forma intensiva, a um conjunto de aprendizados a respeito das normas culturais do seu grupo.   

Com que objetivo elas eram retiradas de suas comunidades?  

De forma muito bem pensada, as crianças indígenas foram ao longo do tempo separadas de seus pais justamente nessa época para que, ao longo dos anos, a influência dos mais velhos sobre os mais jovens fosse diluída. Ao invés de aprender os valores do seu grupo, elas eram internadas em escolas e, a partir daí, iam sendo incutidos os valores da dita sociedade ocidental. Uma vez terminada a escola, essas crianças voltariam para as comunidades trazendo esses ensinamentos que tinham a ver com os ensinamentos dos “brancos”. Foi uma das estratégias utilizadas para minar a autoridade dos mais velhos e que foi sistematicamente utilizada pelo estado brasileiro. Isso também aconteceu em países como o Canadá e na região da Austrália e Nova Zelândia. Diferentemente do Brasil, esses países já fizeram um reconhecimento público de que essa medida era inadequada e vêm sendo implementadas um conjunto de ações para tentar mitigar as consequências desta iniciativa. Nesses países, vários estudos vêm fazendo a associação entre as experiências traumáticas relacionadas à internação compulsória de crianças e os altos índices de suicídio encontrados nessas populações.  

E qual o efeito da separação da criança indígena de sua comunidade?  

Uma criança indígena vai se tornando um membro da comunidade ao longo de sua vida, através de um conjunto de aprendizados e experiências que se dão desde o seu nascimento até o final de sua vida. O aprendizado, no contexto indígena, tem relação com duas questões importantes, entre outras. Uma é observar o que os outros fazem e a outra é o aprendizado ritual. Estar junto com os membros de sua comunidade no cotidiano, comer, dormir, dançar com eles é o meio através do qual as crianças vão se tornando membros da comunidade. Elas começam a estabelecer relações entre si, vão se inserindo na rede de parentesco e ali ela vão se construindo como pessoa. Vão aprender também nos processos rituais, nos ritos de passagem, de nascimento de filho, de morte…  

É importante definir que cultura não é um conjunto de arcos, penas e cocares. A cultura é um substrato simbólico através do qual a pessoa significa o mundo. É o mundo visto através desse olhar, dessa cultura, que foi sendo adquirida ao longo dos anos. Sendo apartada, essa pessoa vai ser tolhida da introjeção desse sistema simbólico. Assim, a forma como ela vai acabar entendendo o mundo vai se tornando distante daquele das pessoas com as quais ela deveria ter convivido. Elas passam, de certa forma, a ter dificuldade de ver o mundo da mesma forma como os seus parentes e as demais pessoas da aldeia.

A ministra Damares Alves disse que possibilitou a Lulu a chance de retornar para sua tribo. É possível que o indígena retorne para sua comunidade depois de tanto tempo?   

Possível é, suponho que sim. Mas o desafio será grande. Quem retornará será uma pessoa que se constituiu por meio de um conjunto de valores distinto daqueles da sua comunidade. O quanto esses valores entrarão ou não em conflito com os valores do grupo do qual ela saiu, só a experiência poderá dizer. É importante também refletir sobre qual é a governabilidade real que uma criança ou um jovem têm para opinar sobre algo tão complexo. Para mim, refletir sobre esta questão abre um conjunto de perguntas: Quais são os receios que ela teria ao retornar? Como foi que, ao longo da convivência com os não indígenas, ela construiu a imagem sobre o que é ser indígena? Principalmente, caso neste processo tenha lhe sido passada, mesmo que indiretamente, a ideia de que seu ambiente de origem seria um ambiente pobre, sujo, sem Deus, um ambiente de ausência de tudo aquilo que ela teria, em tese, na sociedade não indígena. Será se essa pessoa teria interesse ou disponibilidade emocional para retornar?  

Existem diversas ONGs que atuam em tribos indígenas para dar assistência a crianças e famílias. Na sua opinião, essa ONGs cumprem um papel positivo para esses jovens?   

Primeiramente, é importante destacar que existe uma diversidade de ONGs. Algumas delas trabalham de forma muito respeitosa e com muito diálogo com as comunidades indígenas e suas lideranças, de modo a buscar, em parceria, alternativas para enfrentar os diferentes desafios atualmente postos a estas populações. Por outro lado, podem existir ONGs cujo objetivo é escuso. Se o objetivo da ONG, implícito ou explícito, é o de levar uma religião, uma cultura, um modo de ser distinto daqueles dos povos indígenas, eu sempre verei isso com maus olhos. Instituições com propósito evangelizador, catequizador, no meu entendimento, fazem desserviço às populações indígenas. Defendo este ponto de vista por entender que instituições como essas põem em xeque a cultura indígena, propagando uma visão de mundo na qual o mundo indígena é mundo pecador, inferior, incompleto e que a única forma possível para se alcançar a completude seria abandonar sua forma de ver o mundo e adotar os princípios daquela outra cultura.  

Povos como os ianomâmis praticam até hoje o chamado infanticídio. O senhor acha que ONGs como a fundada pela ministra Damares ou o Estado brasileiro devem interferir nessas práticas desses povos?  

Essa é uma pergunta para a qual eu não tenho uma resposta. Mas aproveito o contexto para fazer uma outra pergunta: o que mais mata hoje em dia as populações indígenas? Seria o eventual infanticídio, praticado em alguns lugares e em algumas circunstâncias, ou são as doenças preveníveis, como a tuberculose, ou o suicídio, ou doenças relacionadas à pobreza e ao desfavorecimento social? A literatura científica especializada aponta que essas doenças e agravos são altamente prevalentes entre os povos indígenas brasileiros, levando a elevadas e desproporcionais taxas de mortalidade. Se quisermos efetivamente prevenir a morte precoce das pessoas indígenas, teríamos outros lugares para intervir sem tanta polêmica. Não deveria haver polêmica se defendêssemos que o Estado interviesse e garantisse o acesso das populações indígenas aos cuidados de saúde. Não deveria haver nenhuma polêmica se defendêssemos que o Estado coibisse a exploração predatória de madeireiros e de garimpeiros em terras indígenas. Eu acredito que exista um conjunto de ações que o Estado possa fazer, inclusive em parceria com organizações não governamentais e populações indígenas, para melhorar a vida destes últimos, sem gerar tanta polêmica e com a capacidade de produzir efeitos muito mais expressivos. 

Imagem: Os indígenas da aldeia Kamayurá moram no Parque Nacional do Xingu, no norte do Mato Grosso – Jorge William / Agência O Globo

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