Wagner Moura: “Os cidadãos têm a obrigação de resistir”

Após a estreia na Berlinale de “Marighella”, seu primeiro filme como diretor, Wagner Moura conta em entrevista como chegou ao tema, fala sobre resistência em regimes autoritários e comenta as dificuldades que o longa deve enfrentar para ser distribuído no Brasil de hoje.

Por Camila Gonzatto, no Blog da Berlinale/Goethe-Institut

Com mais de duas horas e meia, Marighella debruça-se sobre os últimos anos da vida do escritor, político e ativista Carlos Marighella, morto pela ditadura militar no Brasil. A ênfase do filme recai sobre a atuação do protagonista na Ação Nacional Libertadora (ANL) – um dos grupos de luta armada ativos contra o regime. O longa-metragem foi construído como uma obra ficcional de ação, com câmera próxima aos personagens, muitas vezes na mão, planos rápidos e montagem ágil. “Não quero que o filme soe como algo do passado. Quero que as pessoas o sintam como algo que está acontecendo agora”, diz o diretor. Em uma mesa-redonda com jornalistas de vários países do mundo, Wagner Moura fala sobre Marighella.

Como você chegou ao tema deste que é seu primeiro trabalho como diretor?

A biografia de Marighella, de Mário Magalhães, tinha acabador de sair. Sempre fui fascinado não apenas pelo próprio Marighella, mas por histórias de resistência no Brasil: Malês, Canudos, demonstrações populares contra o Estado, contra ditaduras e regimes antidemocráticos. Mas me interessavam principalmente as resistências em torno da ditadura a partir de 1964, porque, em termos de tempo, são muito próximas a mim. Nasci em 1976. Minha geração, no entanto, é muito diferente daquela que lutou contra o regime. Cresci numa geração bem alienada. Essa geração que está indo para as ruas no Brasil agora é muito mais próxima da geração de 1964 do que a minha.

Quando começou esse projeto, você já se sabia que Jair Bolsonaro seria presidente do Brasil?

Não. Começamos em 2012 e filmamos em 2017 durante o governo Temer. Naquele momento, ninguém poderia acreditar que Bolsonaro se tornaria presidente do Brasil. Não quero que esse filme se torne uma resposta a um governo específico. O filme não é uma resposta a Bolsonaro, mas é, provavelmente, um dos primeiros produtos culturais do Brasil a se colocar abertamente contra o que Bolsonaro representa. Bolsonaro gravou um vídeo contra o filme, mesmo antes de ser presidente, dizendo que era um absurdo fazer um filme sobre esse “terrorista”. Mas o filme precisa ser maior que isso.

Como foi feita a adaptação para as telas do livro de Mário Magalhães?

O roteiro foi escrito pelo Felipe Braga, com minha ajuda. Para mim, sempre ficou muito claro que esse filme precisava funcionar como um longa-metragem de ficção, porque já há muitos documentários sobre Marighella. Por isso usamos as ferramentas do fazer cinematográfico: há no filme situações e personagens que não existiram na realidade, mas a alma do filme é bem calcada no que estudamos. Levamos realmente a sério a leitura do livro, estudamos profundamente o que aconteceu em 1964, convidamos ex-guerrilheiros para conversar com o elenco. Quando filmamos, sentimos que estávamos bem apoiados para falar sobre esse assunto, que é bem delicado. Muitos personagens, por exemplo, são amálgamas de pessoas. No filme, vemos dez personagens, mas eram centenas de guerrilheiros. Há alguns personagens baseados especificamente em pessoas reais. Tomamos muitas liberdades, mas muito embasadas. É claro que espero ser criticado pela direita no Brasil, mas também espero ser criticado por pessoas de esquerda, que assistirão ao filme e dirão que não foi exatamente isso o que aconteceu.

“REGIMES FASCISTAS SEMPRE COMEÇAM COM QUESTÕES SEMÂNTICAS”

O filme assume uma postura política?

É um filme sobre narrativas. É por isso que a narrativa desse filme vai encontrar muitos problemas no Brasil. Quando o presidente do STF diz que não houve golpe em 1964, mas um “movimento”, foi dado o primeiro passo. É uma mudança semântica. Se você olhar para o surgimento de todos os regimes fascistas na história, eles sempre começam com questões semânticas. É sobre palavras e o que elas significam. Esse filme está aqui para dizer que a ditadura foi terrível, não foi legal ou sóbria. Por isso, acho que o filme será abraçado por muitas pessoas que querem defender essa narrativa, mas será odiado por pessoas que querem mudar a narrativa. Sei que estão surgindo filmes no Brasil dizendo “a verdade sobre a ditadura, a verdade sobre 1964”. Estamos vivendo um momento em que tudo é baseado em fake news. Isso me assusta muito. A verdade, como conhecemos, acabou. Não importa mais. Esse é um dos grandes temas do filme: a batalha da comunicação.

E qual narrativa você propõe com o filme?

É simples: a resistência é importante na história do mundo. Os cidadãos têm o direito, ou melhor, na verdade, eles têm a obrigação de resistir contra ditaduras, contra um Estado violento ou um Estado que não os respeita. O filme está aqui para dizer que tivemos uma ditadura há alguns anos. Não foi bom, foi ruim, ela desrespeitou os direitos humanos mais básicos dos cidadãos brasileiros. E houve pessoas que decidiram fazer alguma coisa, mesmo colocando suas vidas em risco. Podemos discutir se a luta armada foi boa ou não. Não me importo. O que eles fizeram foi resistir. E encontraram uma forma de fazer alguma coisa contra o que estava acontecendo. Em situações como essas, há pessoas que se escondem e aquelas que mostram suas caras e falam no que acreditam, pelas quais tenho muito respeito.

“NÃO QUISEMOS ALIVIAR A NÁUSEA”

Por que você decidiu mostrar cenas de tortura?

Eu estava com medo de cair no clichê de filmes sobre ditadura. Por isso, só tivemos uma cena no filme. A cena está lá, porque realmente aconteceu. Esta é a verdade. Não poderíamos evitá-la. A cena tem de três a quatro minutos, foi filmada em um único plano. Não quisemos aliviar a náusea. A tortura foi oficialmente aceita como um método de interrogação.

O que você espera da recepção do filme no Brasil?

Estou preparado para todos os tipos de reação. As coisas estão mal no país. Espero as pessoas indo ao cinema e jogando coisas na tela. Espero agressão física. Espero de tudo. Honestamente, estou preparado. E quero que o filme seja lançado no Brasil o quanto antes. Esse é um problema: nossos distribuidores não têm uma data exata ainda. Vai ser bem difícil. Acredito que estar em Berlim num festival grande como esse, e ver a comunidade internacional assistindo ao filme, vai provavelmente facilitar que ele seja lançado. Eles dizem que é melhor esperar. Claro que estão com medo do governo. Não posso culpá-los. Mas, se eu fosse um distribuidor, lançaria na próxima semana.

Camila Gonzatto é roteirista e diretora de cinema e televisão.

Destaque: Wagner Moura exibe placa de Marielle Franco no lançamento de Marighella em Berlim. Foto: AFP

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