Um professor de Filosofia ligado à “crítica do valor” relança livro e sustenta: Bolsonaro não é aberração, mas a nova norma do sistema; para não sermos tragados por ele, precisamos ler Marx a partir de novas óticas
Por Marco Weissheimer, do Sul21, no Outras Palavras
As crises cíclicas do capitalismo sempre produziram situações destrutivas com regressões à barbárie. Essas crises, porém, não são meramente cíclicas. Elas também vão se acumulando e se tornando cada vez mais crises sistêmicas e estruturais, onde a regressão à barbárie é cada vez mais permanente. Nós já estamos vivendo uma situação de barbárie permanente, onde o sistema insiste em funcionar com a mesma lógica, mesmo que a humanidade e a natureza não sobrevivam a ele. Essa é uma das teses centrais do livro A Crítica do Capitalismo em Temos de Catástrofe (Editora Conseqüência), de Marildo Menegat, professor de Filosofia, do Programa de Pós-Graduação de Políticas Públicas em Direitos Humanos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Menegat esteve em Porto Alegre no início de fevereiro para o lançamento do livro e participou de um debate no Plenarinho da Assembleia Legislativa. Em entrevista ao Sul21, ele falou sobre a sua obra que, entre outras coisas, analisa o atual estágio do capitalismo que estaria levando o mundo a um beco sem saída. “Para continuarmos mantendo o trabalho, produção de mercadorias e circulação de dinheiro como fundamentos desta sociedade nós temos que destruir a humanidade e a natureza”, afirma. O professor da UFRJ também avalia a situação brasileira neste cenário de barbárie permanente em escala global. Para ele, a vitória de Bolsonaro é a expressão política que um colapso social. Segundo critérios da ONU, os números da violência no Brasil já caracterizam uma situação de guerra civil de baixa intensidade. Menegat chama a atenção para o papel dos militares neste cenário e para a experiência que eles tiveram no Haiti:
“Na medida em que o capitalismo vai colapsando no mundo inteiro, inclusive na América Latina – veja os casos da Venezuela, da Argentina e, de certo modo, do Brasil – é necessário garantir espaços territoriais onde ele ainda é capaz de acumular. No Haiti, o Exército brasileiro se capacitou a fazer isso não somente no Brasil, mas na América Latina inteira. A Venezuela, possivelmente, venha a ser uma continuidade dessa experiência”.
O subtítulo de seu livro fala do “giro dos ponteiros do relógio no pulso do morto”. Qual o significado dessa expressão no contexto de sua análise sobre o estágio atual do capitalismo?
Há cerca de 20 anos venho fazendo uma leitura a contrapelo do marxismo, associando-me a uma leitura internacional que vem sendo feita já há mais tempo, especialmente nos Estados Unidos e na Alemanha, que se chama crítica do valor. A crítica do valor tem dois eixos muito importantes. O primeiro é fazer uma crítica ao que chamamos de categorias que fundamentam a sociedade moderna, como, por exemplo, trabalho, dinheiro, valor, mercadoria. Por outro lado, procura fazer uma análise do processo de crise do capitalismo, um tema muito polêmico e complexo. É polêmico porque o marxismo, no final do século dezenove e início do século vinte, fez grandes discussões sobre o fôlego histórico do capitalismo, questionando se ele era uma forma de produção eterna ou se tinha um tempo histórico determinado. Além disso, também debateu quais eram os sinais de uma possível crise estrutural dessa forma de vida social. Os autores que falavam na possibilidade de um colapso do capitalismo acabaram perdendo a razão de seu argumento quando o capitalismo se reconstroi no período pós-guerra. Só que esses autores estavam certos em afirmar que o capitalismo tinha um limite histórico. Rosa Luxemburgo, por exemplo, dizia que o capitalismo tinha um limite de expansão. Chega um certo momento que a reprodução ampliada dele não consegue mais produzir valor novo.
O capitalismo é, em essência, uma esfera apartada da economia que domina todas as outras esferas da vida social. É uma novidade histórica. Isso não aconteceu na Antiguidade nem na Idade Média. Moses Finley, um historiador judeu-alemão que migrou para a Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, diz que na Grécia antiga e na Roma antiga aquilo que nós chamamos modernamente de economia não existia. É claro que essas sociedades precisam de uma esfera de produção da sua existência material, como toda sociedade precisa. Mas nenhuma sociedade produziu isso por meio de objetivações abstratas como o capitalismo produz. O valor é uma objetivação abstrata. O capitalismo é regido por uma lógica de acumulação de objetividades abstratas que vão se tornando cada vez mais insanas.
Então, quando falamos de crise econômica, estamos falando da essência do capitalismo. O valor, para ser produzido, precisa ser extraído de mais valor. Só que essa extração de mais valor vai sempre depender do desenvolvimento das forças produtivas. Há certo momento do desenvolvimento da técnica em que o trabalho humano é residual e não acumula mais valor novo que permita um processo de expansão do capital. A partir dos anos 70, a crítica do valor começa a desenvolver uma análise que dizia que, com a terceira revolução tecnológica, começamos a chegar neste limite histórico. A partir daí, os fenômenos que passamos a observar no capitalismo são cada vez mais expressões desse limite da acumulação. A crise de 1973-1975 já é uma expressão disso. A partir dela, toda a história do capitalismo é uma tentativa desesperada do capital em busca de saídas para esse limite.
Eu pertenço à geração dos anos 80, quando foram criadas organizações como o PT, a CUT e o MST. Em meio a essas experiências comecei a pensar os limites programáticos delas. O que nos mobiliza como horizonte histórico já não é mais factível. No final dos anos 80, a União Soviética está colapsando e o socialismo real deixa de existir. O limite programático que enfrentamos aqui não é que não haja espaço para uma crítica radical do capitalismo em defesa de outra forma de vida social. Esse limite consiste no fato de que o capitalismo, como uma forma social total mundial, encontrou seu ponto de chegada, iniciando um largo processo de colapso. A minha elaboração é sobre esse colapso do capitalismo visto da periferia, que é a nossa experiência brasileira. E faço isso a partir do conceito de barbárie. “A Crítica do Capitalismo em Tempos de Catástrofe” é o quarto livro desse percurso de elaboração teórica.
Há uma linha de continuidade entre essas obras, então?
Sim. Dos anos 90 até 2018, o que venho fazendo é precisar o que chamo de barbárie. Esse conceito já está presente na Antiguidade. Para os gregos, a barbárie era sempre uma coisa externa à cultura deles. No caso dos romanos, o quadro é um pouco mais complexo, pois eles entendiam que a sua própria cultura também podia produzir barbárie, apesar de chamarem isso mais de decadência. Para o iluminismo, a barbárie sempre será externa: o indígena, o colonizado, o não-europeu ocidental. Em Marx, há uma reflexão muito lúcida sobre a barbárie. Para ele, a barbárie é um produto do próprio desenvolvimento do capitalismo. Marx pensa esse conceito em dois momentos. Por um lado, ele fala de uma barbárie momentânea. Em todo momento de crise, que são cíclicas no capitalismo, se produz uma situação destrutiva com regressões à barbárie. No entanto, essas crises não são meramente cíclicas. Elas também vão se acumulando e se tornando cada vez mais crises sistêmicas e estruturais, onde a regressão à barbárie é cada vez menos momentânea. A barbárie vai se tornando cada vez mais permanente. Na nossa época ela é permanente. Aí é que entra a ideia do giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto. O sistema insiste em funcionar, mas a humanidade não sobrevive a ele.
As crises do capitalismo no final do século dezenove e início do vinte foram “resolvidas” com duas guerras mundiais. Esse elemento da destruição é uma condição de sobrevivência do capitalismo?
De sobrevivência eu não diria, mas a guerra moderna nasce com o capitalismo. Robert Kurz mostra que um dos aspectos fundamentais das origens do capitalismo está ligado às armas de fogo. Essas armas introduziram um desequilíbrio na guerra feudal, que tinha armas produzidas de forma artesanal. O equilíbrio de combate entre os senhores feudais era razoável. Quando as armas de fogo começam a ser introduzidas produz-se um imenso desequilíbrio de poder. Correr atrás dessas armas torna-se uma questão de vida ou morte. Elas não são mais produzidas em oficinas artesanais. E para serem adquiridas exigem um tipo de mediação que é o dinheiro, naquela época em forma de ouro, prata, metais preciosos. As armas de fogo produzem uma fome por dinheiro que vai desorganizar completamente a sociedade medieval e iniciar um processo de reorganização da vida social.
Desde esse momento histórico – séculos dezesseis e dezessete – a guerra passou a ser parte permanente do processo de produção e de reprodução do capitalismo. Qualquer economia importante do mundo tem um setor armamentista significativo. O grande salto do capitalismo industrial na Inglaterra, no século dezenove, se dá durante as guerras napoleônicas. Elas exigiram da indústria inglesa um departamento de produção de bens de capital, de máquinas e armas, separado do departamento de produção de bens de consumo. Então, a produção de armas é inerente à história do capitalismo. Em alguns momentos, a produção de armas também é uma boa forma de se dar um destino para uma superacumulação de capital. Toda a lógica do capitalismo é destrutiva. O capitalismo é um modo de produção destrutivo. Voltando à ideia de Marx, a barbárie é o telos, o fim do capitalismo. Ele não é uma base de organização social compatível com a construção de uma civilização emancipada. Esperar do capitalismo as bases dessa emancipação humana é um grande erro.
Considerando essa lógica destrutiva e o atual contexto político e econômico internacional qual é a possibilidade, na tua avaliação, da crise desembocar em uma nova grande guerra em escala global?
Já está em curso. Nos anos 90, tivemos alguns sintomas da crise em curso, como o colapso da União Soviética e do leste europeu, o desmanche da Iugoslávia, a guerra nos Bálcãs, a crise das dívidas externas da América Latina e do norte da África, entre outros. Este contexto histórico vai produzir um tipo de fenômeno social absolutamente novo: novas formas de guerras civis que já não tem uma noção muito definida de tomada de poder. Há um colapso da economia e do Estado e esse espaço é ocupado pela violência. Nós vimos como essa forma de guerra civil se deu nos Bálcãs, com limpezas étnicas e ações da OTAN. O processo de separação de repúblicas que faziam parte da União Soviética, como Georgia e Chechênia, é outro exemplo. Na América Latina, o nosso padrão foi diferente. Aqui esse processo se expressa numa explosão da criminalidade que não carrega consigo uma bandeira nacional ou étnica, embora sejam os pobres e negros que estão sendo esmagados pelas armas.
No final dos anos 70, início dos anos 80, o número de mortes por causas externas no Brasil não passava de 11 mil/ano. Em meados dos anos 90, esse número já tinha subido para a faixa dos 36 mil mortes. Hoje, está em torno de 60 mil mortes/ano. É um crescimento muito maior que o crescimento da população neste período. Portanto, temos uma situação de violência endêmica, resultado de enfrentamentos armados que ocorrem em territórios urbanos. Você não tem exércitos definidos, mas tem uma guerra permanente. Temos uma média de 29 mortes (por causas externas) por 100 mil habitantes. Segundo a ONU, esses dados são os de uma guerra civil de média intensidade. Então, mesmo que não se tenha uma guerra civil declarada, ela está dada.
Essa guerra civil não declarada é contemporânea da guerra na Chechênia e de outras guerras em outras partes do mundo, cada uma com características particulares, mas que fazem parte do mesmo processo de crise do capitalismo. O que é essa crise? A organização da sociedade por meio da produção de mercadorias e a sua permanente expansão já não é mais possível. Uma parte cada vez maior da população está sobrando. E essas pessoas que sobram são sujeitos monetários sem dinheiro. Todos nós que vivemos no capitalismo precisamos de dinheiro para realizar nossas necessidades. Um contingente cada vez maior de pessoas não tem como acessar esse dinheiro, ficando alijadas da vida econômica. Em várias partes do mundo temos esse mesmo fenômeno, cada um com suas particularidades e manifestando-se com uma crescente letalidade.
Nos Bálcãs, tivemos aquilo que a crítica do valor chama de guerra de ordenamento mundial. Essas guerras de ordenamento mundial têm uma característica diferente das antigas guerras imperialistas, onde havia uma grande potência querendo dominar territórios. A Inglaterra e os Estados Unidos se expandiram dominando territórios. A própria Alemanha nazista tentou se expandir dominando territórios. Na atualidade, a última grande superpotência, os Estados Unidos, não tem interesse em dominar diretamente territórios. Ao invés disso, fazem guerras de intervenção para manter minimamente, em várias regiões do mundo, espaços de possível acumulação no capital. No Oriente Médio, por exemplo, toda acumulação de capital passa pelo petróleo. Nos Bálcãs, a acumulação de capital passa por controlar a população daquela região para não colapsar o resto da Europa ocidental.
Nos anos 90, a imigração da população da região da antiga Iugoslávia chegou a cerca de um milhão de pessoas. Foi o primeiro grande surto de refugiados europeus. Hoje, controlar essas massas de refugiados no mundo é uma questão estratégica para se manter as ilhas ainda possíveis de acumulação de capital. Na América Latina essas questões já estão dadas também. Esses conflitos, em um primeiro nível, se organizam como guerras civis, mas elas tendem a se ampliar e nesta ampliação tendem a ser guerras de outra ordem, guerras abertas que envolvem a intervenção de exércitos de diferentes países. Isso talvez possa nos ajudar a entender um pouco um dos fenômenos que está por detrás da grande presença militar no governo Bolsonaro. Esse fenômeno, na minha leitura, tem uma relação direta com a nova fase que entramos neste processo de guerras imanentes ao colapso do capitalismo. As guerras da década de 90 já são insuficientes para explicarmos as guerras que se iniciam depois de 2008 e que tem uma envergadura mais generalizada e exigem intervenções mais abertas.
Os militares brasileiros, então, já teriam uma formulação sobre esse fenômeno?
Sim. A experiência brasileira no Haiti foi definidora disso. Ela serviu, em um primeiro momento, como controle de um país que tinha colapsado. O medo da ONU em relação ao Haiti não era que a população do país estava morrendo de fome, mas sim que ela iniciasse um processo de migração em massa. Era necessário garantir minimamente a governabilidade dos países da região. A intenção básica da resolução da ONU que decidiu que o Brasil lideraria a missão dos capacetes azuis era fazer com que aquela população permanecesse no Haiti. O Exército brasileiro adquire no Haiti uma experiência de intervenção e de governo que é inédita para ele. O general Augusto Heleno, assim como os demais generais que foram para lá, torna-se praticamente o vice-presidente do Haiti. O presidente era uma figura formal, de fachada. Boa parte do governo estava nas mãos de generais brasileiros, inclusive com verbas da ONU razoáveis. Esses generais também precisavam estar em contato com comandantes dos principais exércitos do Conselho de Segurança da ONU, principalmente com o exército americano. Essa experiência internacional vai definir, para os militares brasileiros, a consciência do papel que deveriam ter no futuro, na América Latina. Na medida em que o capitalismo vai colapsando no mundo inteiro, inclusive na América Latina – veja os casos da Venezuela, da Argentina e, de certo modo, do Brasil – é necessário garantir espaços territoriais onde o capitalismo ainda é capaz de acumular. No Haiti, o Exército brasileiro se capacitou a fazer isso não somente no Brasil, mas na América Latina inteira. A Venezuela, possivelmente, venha a ser uma continuidade dessa experiência.
Em um debate realizado em Porto Alegre, em janeiro, Paulo Arantes disse que os militares brasileiros consideram a Venezuela uma Síria em potencial. É por aí mesmo?
Exatamente. O colapso da Venezuela já gerou uma massa de refugiados de aproximadamente três milhões de pessoas, que foram para Colômbia, Equador, Brasil e, uma parte menor, para os Estados Unidos e a Europa. Os desdobramentos futuros envolvendo a Venezuela estão claramente articulados com o cenário que descrevi anteriormente. A América Latina está entrando em uma nova fase neste processo de colapso do capitalismo. As fronteiras nacionais, na medida em que vão colapsando, vão produzindo um movimento de massas humanas assombrosas. O capitalismo brasileiro é o mais organizado da América do Sul e tem setores com capacidade de sobreviver um pouco melhor a essa avalanche. Portanto, é natural que boa parte dessa população seja atraída para o Brasil. Para os militares, definir melhor o controle dessas fronteiras e a capacidade de intervir no interior destes países para controlar suas populações tornou-se uma questão fundamental.
No contexto da análise que faz sobre a situação da América Latina no atual estágio de crise do capitalismo, a eleição de Bolsonaro seria uma espécie de expressão política desse colapso em curso?
Sim. É perfeita a sua observação. Os governos do PT se deram em meio a esse processo de colapso que vem desde os anos 80. Nos últimos 40 anos, nós tivemos três das quatro piores crises da nossa história. A primeira dessas quatro foi a de 29, que, curiosamente, foi a mais suave das quatro. Depois, tivemos a de 1981-1982, que foi violentíssima e definiu o fim da ditadura militar. Em seguida veio a do período Collor. E, por último, a crise de 2014-2017. Considerando essa nossa história, consciente ou inconscientemente, o debate político se resume a como administrar essas crises que já são sintomas de um colapso. Não nos recuperamos bem de nenhuma delas.
Um bom critério para observar isso é o peso da indústria no PIB brasileiro que vem caindo desde os anos 80. Somos um país em desindustrialização, processo aliás que é uma marca do mundo hoje. Tirando a China, a desindustrialização é uma realidade no mundo inteiro, inclusive nos Estados Unidos onde é um problema grave.
Os quatorze anos de governos do PT foram uma forma de gestão dessa crise. Como eu associo esse colapso do capitalismo a uma regressão permanente à barbárie, cabe dizer que os governos do PT foram formas de gestão da barbárie. Como é que o PT faz essa gestão da barbárie? Ele tem um know how que foi acumulando nas suas experiências municipais em prefeituras. Nestas prefeituras, ele desenvolve o conceito de governabilidade social, que é tornar viáveis pessoas que, do ponto de vista social e econômico, eram inviáveis. Na medida em que a economia deixa de absorver os “inviáveis”, monetarizar esses indivíduos é uma questão fundamental para garantir a continuidade da sua existência. O PT faz isso numa baixa intensidade por meio de um conjunto de programas sociais, o que permite que essas pessoas possam comer, se vestir, ter acesso à escola para seus filhos, ou seja, um mínimo de condições de existência social segundo um padrão civilizatório muito rebaixado.
O PT conseguiu realizar isso no governo federal também por um grande acaso e esse acaso ajuda a explicar o conceito de crise que eu mencionei anteriormente. O capitalismo, desde os anos 70, já não consegue mais se expandir de forma vigorosa, produzindo valor novo. Ele se expande, então fazendo uma acumulação de valor fictícia , que é o processo especulativo. Por meio desse processo, você projeta para agora e consome agora o valor que acha que vai produzir no futuro. Ou seja, consome no presente um futuro que pensa que vai ter, mas não necessariamente vai realizar. Seguindo essa lógica, desde os anos 70, foram se produzindo grandes bolhas globais que vão segurando a economia. Esse mecanismo retarda uma crise mais brutal e cria a ilusão de que a economia está funcionando. É o giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto.
No final dos anos 90, tivemos a grande bolha ponto.com, quando assistimos ao crescimento de empresas com Microsoft e Apple. No início do século 21, essa bolha estoura. Em abril de 2001, a bola de Nova York despenca, um sinal claro de que esse mecanismo tinha dificuldades para continuar se reproduzindo. Esvaziada essa bolha da alta tecnologia, criam-se duas novas grandes bolhas, da construção civil e de commodities. A bolha da construção civil envolve Estados Unidos, Espanha, Inglaterra e vários outros países do mundo, enquanto que a bolha de commodities pega a China e boa parte da América Latina. Essas bolhas estão articuladas e constituem um mesmo movimento de realização de um capital que não encontra valor real. É um capital que tem apenas uma forma contábil e precisa seguir se reproduzindo de uma forma contábil.
Essa última bolha coincidiu com o período em que o PT havia vencido as eleições. Neste período, temos uma grande expansão na produção de commodities como ferro, petróleo, soja, milho, entre outros produtos. Com isso foi possível reequilibrar uma economia que já estava na lona, o que permite ao PT reestruturar minimamente algumas funções do Estado e garantir recursos para fazer política públicas que, como eu disse, são políticas de gestão da barbárie. Quando essa bolha estoura, em 2008, já começam a se produzir crises no governo do PT. A partir de 2008, Lula vai ter que fazer uma política contra-cíclica, aumentando o endividamento do Estado. Em um primeiro momento, a economia responde bem e cresce mais de 7%. Temos um período de rearticulação da economia. A bolha internacional também se reequilibra em 2008-2009 até que, em 2012, estoura e desaparece completamente. É neste período que começam as crises dos governos da Dilma.
Aquilo que permitiu ao PT fazer a gestão da barbárie não está mais presente, mas a gestão da barbárie é necessária. A via da governabilidade social, adotada pelo PT, não é mais possível, mas é preciso gerir essas massas humanas sem função nenhuma para o sistema. A minha hipótese é que a gestão da barbárie agora será assumida por formas de violência militar, seja por meio do Exército, seja pelas polícias militares ou pelas milícias. A disseminação de milícias, de norte a sul, é um fenômeno assustador e assombroso no Brasil. Entramos numa nova fase dessa imensa degradação social, onde o bolsonarismo se mostra como a forma agressiva mais capaz de interpretar as necessidades daqueles que ainda têm algum papel na acumulação de capital em nosso país.
Em seu livro, você defende a necessidade de uma profunda transformação teórica, por parte da esquerda, para dar conta desse cenário de degradação social. A partir de que categorias essa mudança deve acontecer, na sua avaliação? Em que medida a obra de Marx é importante para essa tarefa?
Marx ainda é uma obra obrigatória, mas ele não pode ser lido de uma forma fundamentalista. Como toda obra histórica, ela carece de um trabalho de atualização e carrega algumas armadilhas do tempo histórico em que foi elaborada. Os marxistas, de forma geral, são forças modernizadoras e não anti-capitalistas. O marxista mais tradicional que todos conhecemos, que militam em partidos e movimentos sociais, tem como horizonte histórico a ideia de que o capitalismo é um modo de produção que é capaz de produzir um nível de bem estar para a humanidade. Essa ideia é absolutamente insustentável. Durante todo o século 20, nós conhecemos as elaborações de Marx mais adequadas aos momentos de modernização. Nós, brasileiros, durante muito tempo nos pautamos pela ideia de que produzir um parque industrial soberano era o supra-sumo da modernidade.
As categorias do pensamento de Marx precisam ser colocadas em movimento, sob o ponto de vista de uma análise crítica. Uma das ideias que precisa ser debatida é a de que o trabalho é um elemento ontológico da vida social. O trabalho, na verdade, não é uma categoria fundamental da vida humana porque, na sociedade moderna, ele é uma atividade abstrata. Você chama de trabalho tanto o seu trabalho de fim de curso como aluno de universidade quanto o trabalho de alguém que varre a rua. Ambos estão trabalhando. O que é a abstração do trabalho? É uma atividade medida no tempo. Essa atividade medida no tempo produz um valor e recebe um valor de troca, mas ela não tem nada de emancipatória. É apenas uma atividade necessária para a acumulação de valor e acumulação de capital.
Trabalho, mercadoria e dinheiro não são formas eternas, mas sim formas de uma sociedade determinada. E são formas abstratas e irracionais. Para continuarmos mantendo o trabalho, produção de mercadorias e circulação de dinheiro como fundamentos desta sociedade nós temos que destruir a humanidade e a natureza. É um absurdo, mas essa é a lógica posta em curso socialmente. Se não fizermos uma crítica radical a esses fundamentos que nos movem socialmente, vamos nos deparar com uma situação muito estranha que é a de não termos saída. A humanidade, apesar de tudo o que ela acumulou, terá que aceitar sua autodestruição. É uma loucura, não?
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Foto: Joana Berwanger/Sul21