Com distorções que chegam a 245%, “linha divisória” adotada pelo IBGE fez o Cerradão, região de florestas, ser enquadrado com grau de proteção inferior ao correto; estudo propõe reposicionar os territórios para proteger a biodiversidade
Por Bruno Stankevicius Bassi, em De Olho nos Ruralistas
Como definir a separação entre dois biomas? As implicações deste questionamento vão muito além da cartografia e da biologia e afetam diretamente os índices de desmatamento na zona de transição entre a Amazônia e o Cerrado, no norte do Mato Grosso, um dos principais focos de biodiversidade do mundo. Essa é a conclusão de um estudo assinado por um grupo de pesquisadores brasileiros e publicado na última edição da revista Biodiversity and Conservation.
Segundo o artigo, a metodologia tradicionalmente utilizada para definir a separação entre os biomas, baseada em uma simples linha divisória, gerou distorções que alcançam 245,5% de erro em alguns pontos da região estudada. Como resultado, 75.700 km² de florestas estacionais localizadas além dos “limites” do bioma amazônico foram mapeados erroneamente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como vegetação de savana (ou cerrado denso).
Isso fez essa formação florestal, conhecida como Cerradão, ser enquadrada pelo Código Florestal de 2012 com um grau de proteção inferior ao estabelecido pela legislação. Isso porque na Amazônia Legal – que engloba também as áreas de transição para o bioma Cerrado – o tamanho da reserva legal a ser preservada dentro das propriedades rurais varia em função do tipo de vegetação: 80% para florestas e 35% para savana.
Mesmo sendo floresta, o Cerradão não foi considerado como tal, sendo desmatado até sua quase extinção. Utilizando imagens de satélite cedidas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), os pesquisadores identificaram que num período de 30 anos, entre 1984 e 2014, essa formação florestal perdeu 5,2 milhões de hectares, cerca de 41,2% da cobertura inicial dentro da área abrangida pelo estudo.
Mas não para por aí. Enquanto a atividade agropecuária ganhou espaço, passando de apenas 9,4% do uso do solo em 1984 para 46% em 2014, as regiões de savana perderam, no mesmo período, 7,8 milhões de hectares. Com as florestas densas não foi diferente: 9,3 milhões de hectares extirpados. Somando as três classes de vegetação analisadas no estudo (o Cerradão, a floresta densa e úmida e o Cerrado stricto senso), o desmatamento na zona de transição entre a Amazônia e o Cerrado – epicentro do Arco do Desmatamento – levou embora, em apenas três décadas, uma área equivalente ao estado de Roraima.
ESTUDO PROPÕE NOVA ABORDAGEM
A linha demarcatória mais aceita na literatura científica, que corta o estado de Mato Grosso e sobe pela divisa do Tocantins em direção ao Maranhão, foi elaborada em 1981 a partir do Projeto RadamBrasil – uma iniciativa do Ministério de Minas e Energia que visava o mapeamento de recursos naturais, depois incorporada ao IBGE.
Essa abordagem, no entanto, desconsidera a heterogeneidade e a complexidade dos mosaicos de vegetação que marcam a transição entre a Amazônia e o Cerrado. Liderado por Ben Hur Marimon Junior, da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), o grupo de pesquisadores identificou, nos mapas de 1984, 719 fragmentos de floresta densa em meio ao bioma Cerrado e 151 fragmentos de cerrado stricto sensu em meio ao bioma amazônico, considerando apenas os trechos superiores a 5 km². Com isso, o estudo comprovou que a Amazônia é maior e está mais ao Sul do que os mapas estabeleciam.
Como resposta às distorções geradas pela metodologia antiga – cartográficas e de políticas públicas – os pesquisadores propõem uma nova abordagem para classificar as fronteiras entre Amazônia e Cerrado: em vez da linha divisória, a consolidação ecológica e jurídica de uma “faixa de transição”, visando proteger a frágil biodiversidade daquela que é a maior transição floresta-savana do planeta.