O sangue do teu irmão

por Fausto Salvadori, editor e repórter da Ponte Jornalismo

“A pergunta que eu faço é: negro é gente?”

A provocação foi lançada pela advogada, ativista e pesquisadora Dina Alves, coordenadora do Departamento de Justiça e Segurança Pública do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), em uma entrevista à Ponte publicada no final de março.

Não é uma pergunta banal ou sem sentido. Ao contrário. É uma das perguntas mais importantes que os brasileiros precisam responder hoje.

Negro é gente?

Se negro é gente, tão gente como qualquer pessoa branca, não faz sentido que pessoas negras possam ser mortas com tanta facilidade pelo Estado. Se negro é gente, então por que sua morte é incapaz de gerar indignação a ponto de alterar o estado de coisas? Se negro é gente, por que quem manda no País age como se o sangue que escorre da pele preta fosse menos vermelho, um sangue ralo que pudesse ser simplesmente lavado, apagado e esquecido?

Evaldo Rosa dos Santos, morto pelo Exército num carro atingido por 80 tiros, era gente? Luciano Macedo, que tentou ajudá-lo e também foi morto pelo Exército, era gente? Podia falar de muitos outros. Falemos de Evaldo e Luciano, mortes mais emblemática, daquelas que passam no Fantástico. Se negro é mesmo gente, por que, mesmo quando a morte de um negro vai parar no Fantástico, o País não é capaz de agir, um pouco que seja, para evitar novas mortes?

Como disse Emicida: “Se o Brasil tivesse respeito por seus cidadãos, era para o país estar pegando fogo hoje. Oitenta tiros no carro de uma família que tava indo para um chá de bebê. Um pai morreu na frente da filha de 7 anos. O militar que atirou debochou quando a mulher saiu do carro”. E não, o país não está pegando fogo. 

As mortes de pessoas brancas são capazes de provocar cataclismas que mobilizam a mídia e os governantes, fazem os legisladores se movimentar a toque de caixa e provocam alterações até nos sistemas penal, prisional e socioeducativo. Em 1994, a morte da atriz Daniela Perez levou a uma mudança na Lei de Crimes Hediondos, que retirou a progressão de pena para os autores de homicídio qualificado. O assassinato da jovem Liana Friedenbach fez o governo de São Paulo construir, em 2006, uma Unidade Experimental de Saúde para abrigar o seu assassino, Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha, e o crime se tornou um símbolo para os que lutam pela redução da maioridade penal (embora o próprio pai de Liana seja contra a redução e reconheça que mortes como a de sua filha infelizmente são comuns: “Morrem ‘Lianas’ todos os dias, mas não são filhas da classe média”, já declarou). E, em 2015, a morte do médico Jaime Gold, assassinado a facadas enquanto pedalava pela Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, fez o governo carioca proibir o porte de armas brancas e criar um Sistema Estadual de Prevenção ao Roubo ou Furto e ao Comércio Ilegal de Bicicletas no Estado do Rio de Janeiro.

Daniela, Liana e Jaime eram gente. Suas mortes geraram indignação e tiveram consequências. Provocaram mudanças reais. Parece que, na ordem das coisas, Evaldo e Luciano não eram gente como elas. Suas mortes não geraram qualquer mudança. O presidente Jair Bolsonaro, o governador Wilson Witzel e o Exército evitaram ao máximo até mesmo falar sobre o tema. Witzel e os demais governadores mantiveram a escalada na violência de Estado, que atinge principalmente negros pobres como Evaldo e Luciano, e que tem aumentado no país todo, do Ceará governado pelo petista Camilo Santana à São Paulo do tucano bolsonarista João Doria. O ministro Sergio Moro não recuou em uma vírgula do seu projeto antivida, que protege os assassinos do Estado e atinge principalmente negros pobres como Evaldo e Luciano. É como se não fossem gente. Suas mortes nem geram constrangimento político. 

“Ouço o sangue do teu irmão, do solo, clamar para mim.” Segundo o Antigo Testamento, foi o que disse Iahweh, o Deus de judeus e cristãos, após o primeiro assassinato. Num país em que um jovem negro é morto a cada 23 minutos, o sangue de irmãos mortos continua a clamar, sempre, todos os dias. Já passou da hora de o Brasil começar a escutá-lo.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

7 − 2 =