Por Nathalia Passarinho, da BBC News Brasil em Londres
Única integrante do Superior Tribunal Militar (STM) a votar, até o momento, por manter a prisão preventiva dos militares que mataram a tiros um músico e um catador no Rio de Janeiro, a ministra Maria Elizabeth Rocha diz que a decisão que a Corte tomará tem um impacto que vai além do caso específico.
Em entrevista à BBC News Brasil, Elizabeth Rocha diz que a Justiça Militar precisa deixar claro que não é aceitável “o Estado fuzilar civis”.
“Eu compartilho da indignação popular. O que aconteceu realmente não pode ser ignorado. Foi o Estado fuzilando cidadãos. Isso não é possível aceitar.”
Até agora, quatro ministros do STM votaram a favor de conceder habeas corpus aos nove militares que dispararam 257 tiros contra o carro conduzido pelo músico Evaldo dos Santos Rosa, no dia 7 de abril. Apenas Elizabeth Rocha votou, até agora, contra a liberação deles, num julgamento que teve início no dia 8 de maio.
A sessão foi suspensa por um pedido de vista e o caso deve ser retomado nesta semana ou na próxima, quando os outros 10 ministros do tribunal vão votar. Além de Evaldo dos Santos Rosa, outras quatro pessoas estavam no veículo alvejado: a esposa de Evaldo, o filho de sete anos do casal, o sogro dele e uma amiga.
O sogro foi baleado, mas se recuperou. O catador Luciano Macedo, que passava pelo local e tentou socorrer as vítimas, foi atingido por três tiros e morreu dias depois.
Os militares alegaram que foram parados por uma pessoa que disse ter tido o carro roubado. Ao perseguir os criminosos, teriam confundido o veículo, um Ford Ka branco, com o carro da mesma marca e cor usado por Evaldo. Eles alegaram ainda que, durante a perseguição, houve troca de tiros.
Mas, segundo Elizabeth Rocha, a perícia até agora não comprovou os disparos que teriam sido efetuados pelos bandidos. Além disso, a segunda rajada contra o carro do músico foi feita quando o veículo já estava parado, de portas abertas, quando claramente não havia tiroteio.
“Até para a legítima defesa tem que haver proporcionalidade. Se uma pessoa te ameaça com uma faca de cozinha, você não pode reagir dando 20 tiros de revólver”, diz.
“No meu voto, eu mostro que não havia risco nenhum, porque a pessoa que tinha sido assaltada não tinha sido raptada, sequestrada. O Exército acabou agindo para resguardar um bem patrimonial, não foi nem a vida de uma pessoa.”
Na sexta, a Justiça Militar em primeiro grau aceitou denúncia contra os nove militares por homicídio qualificado, tentativa de homicídio qualificado e omissão de socorro. O STM decidirá se eles devem responder presos ou em liberdade.
Este é o primeiro grande julgamento de um crime de homicídio cometido por militares contra civis desde que foi sancionada, em outubro de 2017, uma lei que transferiu da Justiça comum para Justiça militar a prerrogativa de decidir sobre esses casos.
Antes, crimes como o cometido pelos nove militares eram julgados por um tribunal do júri. A lei está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal pela Procuradoria-Geral da República, que afirma que é inconstitucional retirar do tribunal do júri a competência de julgar crimes contra a vida.
Também há questionamentos sobre se não haveria risco de corporativismo nas decisões, já que militares estariam julgando crimes cometidos por outros militares contra civis.
Maria Elizabeth Rocha diz que também enxerga possível inconstitucionalidade na retirada da prerrogativa do tribunal do júri, mas nega que exista corporativismo na Justiça Militar.
“Sou a favor a que a Justiça Militar possa formar tribunais do júri para julgar crimes contra a vida cometidos por militares contra civis. Sem isso, vejo sérios problemas de constitucionalidade na lei. Mas não enxergo corporativismo. Essa desconfiança vem de um preconceito contra a Justiça militar.”
Veja a íntegra da entrevista:
BBC News Brasil – Os ministros que votaram por soltar os militares alegam que eles não oferecem perigo à ordem pública e que o tribunal não deve ceder ao “clamor da mídia”. Mas foi um caso que chocou o país pelas duas mortes e a quantidade de tiros, mais de 200. Comoção popular deve ser levada em consideração nesse tipo de decisão?
Maria Elizabeth Rocha – Foram dois fundamentos que me fizeram entender que deviam continuar presos. O primeiro não é atender o clamor da mídia, mas é o Judiciário ter sensibilidade para o que a sociedade espera dele. Quando a sociedade bate às portas do Judiciário, é porque todos os órgãos falharam.
Só resta agora o juiz para reparar o dano. Temos que ouvir, sim, a sociedade, porque fazemos parte dela. E o clamor da sociedade é o meu clamor. A diferença é que eu estou ali dentro para poder julgar. Eles têm só as redes sociais e a imprensa. Eu compartilho da indignação popular. Acho que o que aconteceu realmente não pode ser ignorado.
Quando a sociedade bate às portas do Judiciário, é porque todos os órgãos falharam
BBC News Brasil – Que resposta a Justiça Militar deve dar para impedir que esse tipo de erro se repita em ações policiais e militares?
Maria Elizabeth Rocha – Esse caso tem que ser apurado, tem que ser julgado com imparcialidade, mas não pode ser ignorado porque foi um fato muito grave. Foi o Estado fuzilando cidadãos. Isso não é possível aceitar.
A segunda questão que me impressionou muito foi o fato de aqueles militares terem articulado uma história inverídica para aquele comando. O Comando Militar do Leste acreditou neles e até se pronunciou nesse sentido (O Comando Militar do Leste inicialmente soltou uma nota dizendo que as vítimas eram criminosos que haviam aberto fogo contra os militares).
Foi o Estado fuzilando cidadãos. Isso não é possível aceitar
As Forças Armadas são consideradas a instituição do Estado mais confiável em pesquisas de opinião. O comandante tentou justificar o ato dos militares e quando se foi ver não era bem assim. Se eles faltaram com a verdade uma primeira vez, eles podem faltar uma segunda e comprometer a instrução penal.
BBC News Brasil – Mas a denúncia já foi feita e aceita pela Justiça. Como acabou a fase de investigação, de que forma eles poderiam atrapalhar o processo?
Maria Elizabeth Rocha – Ainda há perícias que devem ser feitas na instrução do processo. Teve militar, entre os nove, que não atirou. E teve réu que deu um só tiro, mas pode ser que esse tiro tenha sido determinante para a morte da vítima.
Tudo isso tem que ser apurado durante o processo. É preciso que essas perícias sejam produzidas, para julgar com justiça. Não se pode deixar passar em branco uma ação assim de tamanha gravidade.
Vejo risco de comprometerem (a instrução processual) coagindo testemunhas, articulando entre eles versões inverídicas. O réu tem todo o direito de mentir, tem o direito ao silêncio como garantia constitucional. Eu respeito isso, agora, o réu não tem o direito de prejudicar o andamento das instruções processuais.
Além desses motivos, há a insensibilidade dos militares, que restou demonstrada. A própria denúncia fala em omissão de socorro.
BBC News Brasil – Quando o julgamento do habeas corpus começou, a denúncia contra os militares não tinha sido feita. Agora, eles viraram réus. Que impacto isso pode ter nos votos dos ministros do STM?
Maria Elizabeth Rocha – O advogado dos militares, na tribuna, ao defender seus assistidos, disse que a manutenção da prisão causaria o risco de o encarceramento provisório ser maior que a pena. Agora esse risco não existe mais, porque a denúncia já foi oferecida e a pena para os crimes ultrapassaria seguramente o período da prisão preventiva. A preocupação do tribunal era que esses réus, ainda sem ação penal e denúncia, ficassem indefinidamente encarcerados.
BBC News Brasil – Que mensagem o STM passará se soltar os nove militares?
Maria Elizabeth Rocha – Eu quero aguardar para ver qual vai ser a nova postura que o tribunal vai adotar, porque acredito que a situação fática mudou. Até para a legítima defesa tem que haver proporcionalidade. Se uma pessoa te ameaça com uma faca de cozinha, você não pode reagir dando 20 tiros de revólver.
No meu voto, eu mostro que não havia risco nenhum (para a vida dos militares ou de terceiros), porque a pessoa que tinha sido assaltada não tinha sido raptada, sequestrada. O Exército acabou resguardando um bem patrimonial, não foi nem a vida de uma pessoa. A vítima do furto estava em segurança, do lado de fora.
BBC News Brasil – Um dos principais argumentos dos militares é o de que houve troca de tiros no início da perseguição ao carro…
Maria Elizabeth Rocha – Tem muito “parece” na história. “Parece” que houve troca de tiros, mas o carro militar não sofreu nenhum tiro. E, da parte dos militares, foram disparados 240 tiros para defender um furto de automóvel? Tem que verificar se houve troca de tiros, porque, se teve, é preciso identificar onde estão esses projéteis.
Os projéteis disparados pelos militares foram encontrados e atingiram não só o veículo do músico, mas também outros dois carros estacionados que não tinham nada a ver com a ação, o gradeado de um piscinão e o muro de um bar.
Eles agiram com falta de cautela absoluta, porque colocaram em risco a vida de civis e transeuntes que estavam no local.
BBC News Brasil – A gente tem visto no Brasil, inclusive por parte do governo e de agentes públicos, movimentos de defesa da violência policial, do uso de snipers e helicópteros em áreas densamente povoadas, como forma de combate ao crime organizado. Qual a sua opinião sobre isso?
O próprio júri, formado por civis, absolve sistematicamente policiais que matam. A sociedade brasileira está doente, não aguenta mais tanta violência. Então, passa a adotar a teoria de que bandido bom é bandido morto. E muitas vezes nem é bandido, como é o caso desse pobre moço e o catador de resíduos. Dois homens de bem, pais de família.
A sociedade brasileira está doente, não aguenta mais tanta violência. Então, passa a adotar a teoria de que bandido bom é bandido morto
O catador de resíduos foi praticar um ato heroico, foi tentar salvar uma vida e acabou perdendo a dele. E o músico, cujo filho de sete anos viu o pai ser morto sem qualquer razão, sem qualquer explicação. Isso é muito trágico. Mas a sociedade começa a ser leniente com esse tipo de tragédia. Começa-se a adotar a prática do extermínio.
O Brasil e a sociedade brasileira como está, vitimizada, tem carecido de racionalidade para valorar direitos e garantias para o bandido e o mocinho. Mas o risco disso é ferir o próprio estado democrático de direito.
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