Em assembleia realizada no território Krahô, mais de 390 indígenas de povos do Goiás e Tocantins reuniram-se para debater estratégias de resistência
por Laudovina Pereira, em Cimi
Mais de 390 indígenas reuniram-se na aldeia Kapej, município de Itacajá (TO), para a realização da Assembleia dos Povos Indígenas de Goiás e Tocantins. Com participantes dos povos Krahô, Apinajé, Xerente, Krahô-Kanela, Krahô Takaywrá, Javaé e Kanela do Tocantins, e do povo Tapuia de Goiás, o evento foi de 21 a 25 de maio. Teve como tema “Estratégias de resistência frente às ameaças ao direito originário dos povos indígenas garantido na CF/1988 e a defesa das políticas públicas no contexto atual”.
Com a chegada dos povos indígenas à aldeia Kapej, o território Krahô vestiu-se com a diversidade de pinturas e línguas. O maracá com seu canto e força deu a acolhida a todos os povos e aos aliados. A lua, desde o céu com milhares de estrelas, abençoava este encontro de lutas, sonhos, esperança e resistência.
Durante a assembleia, em meio a cantorias e danças dos povos presentes, foi debatida a conjuntura indigenista nacional, as ameaças aos direitos e territórios, os vários projetos de desenvolvimento, a proposta da reforma da previdência e a política de saúde indígena. Todos os diálogos tiveram o objetivo de informar e esclarecer os diversos ataques que estão em curso contra os direitos garantidos na Constituição, além de buscar estratégias conjuntas para a defesa dos seus direitos e territórios no contexto do governo Bolsonaro.
Destacou-se que estes ataques atuais são, principalmente, porque o artigo 231 da Constituição rompe intensamente com a política de Estado de aculturação. Buscava-se desde a década de 70 a integração dos povos indígenas à comunhão nacional. Na contramão do integracionismo, os artigos 231 e 232 consolidaram as garantias individuais e coletivas dos povos indígenas. Por meio deles, a Constituição reconhece também o direito à diferença dos povos, suas organizações sociais, seus usos, costumes, crenças, tradições, línguas maternas e processos de aprendizagem e saúde diferenciada.
Mas, infelizmente, os direitos territoriais estão sofrendo ataques constantes pela pressão e cobiça dos interesses econômicos do agronegócio, da mineração e pelos grandes projetos de desenvolvimento incentivados pelo governo federal, visando à exploração desenfreada da Mãe Terra. Tais direitos são vistos como obstáculos para o desenvolvimento econômico, acusando os indígenas de impedir o progresso do país. Para isto, atacam o direito originário dos povos sobre suas terras tradicionalmente ocupadas.
Encontra-se no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação do povo Xokleng que representa justamente essa disputa entre direito originário e marco temporal. Esta ação no STF foi caracterizada como de Repercussão Geral, ou seja, o que for definido nela valerá para todos os processos de terras indígenas no Brasil. É o Recurso Extraordinário (RE) n° 1.017.635.
O indigenato reconhece que o direito originário não está vinculado a título, tempo, ou época. E reconhece que os povos indígenas são os originais senhores de suas terras. Este direito às terras tradicionalmente ocupadas é anterior à criação do próprio Estado brasileiro.
Já a tese do marco temporal restringe tal direito à terra, ao uso e ocupação física e temporal dos povos indígenas. Ela propõe silenciar, esquecer e desconhecer os abusos e crimes pelos quais os povos indígenas passaram, as expulsões e os deslocamentos forçados que os impediram de estar em suas terras na data da promulgação da Constituição Federal de 1988.
Outro tema importante foi a MP 870 do governo Bolsonaro, que ataca frontalmente a demarcação das terras ao transferir este poder para os ruralistas, que são inimigos históricos dos povos indígenas. Durante a assembleia foi comunicada uma importante vitória do movimento indígena e dos aliados na Câmara dos Deputados, com as emendas realizadas na Medida Provisória. Após aprovação no Senado, se espera a sanção presidencial para que a Funai volte a ser responsável por demarcar as terras indígenas e retorne definitivamente ao Ministério da Justiça.
A proposta do arrendamento das terras indígenas foi amplamente debatida na Assembleia e foi um dos pontos de preocupação, visto o incentivo que o governo Bolsonaro e o ministério da agricultura estão dando ao tema. As falas das mulheres e dos caciques reforçaram que não deixarão que seus territórios sejam divididos e devastados pelos tratores do latifúndio para implantar suas monoculturas. Não vão permitir que toneladas de agrotóxicos sejam despejadas e matem os animais e poluam os rios e córregos, as pessoas e os animais têm direito de viver sem veneno.
Denunciaram a precariedade do atendimento na saúde indígena e a proposta do governo Bolsonaro do desmonte do subsistema de saúde indígena, construído com muita luta pelo movimento indígena. Há uma preocupação para com os perigos de permitir que os inimigos dos povos nos municípios anti-indígenas sejam gestores dos recursos e da política de atendimento à saúde indígena. Além disso, exigiram a volta de todas as instâncias que fazem possível o controle social.
A proposta da reforma da previdência também foi debatida. Denunciaram a PEC 06/2019 como outra estratégia que o governo Bolsonaro busca para lograr seu objetivo de integração dos povos indígenas à sociedade nacional, e que vão lutar contra a aprovação desta PEC da morte.
Estiveram presentes todos os dias a força do maracá e os cantos entoados no pátio, lugar sagrado onde reanimam a sua luta, fortalecem a união e mantém viva a esperança. Foram momentos fortes de resistência. De relembrar as histórias e contar para os jovens as lutas e sofrimento na conquista dos territórios, reafirmando que devem se unir e valorizar a sabedoria dos anciões e a força da juventude na luta e defesa da Mãe Terra, para garanti-la às atuais e futuras gerações.
Os indígenas reiteraram no documento final da assembleia suas estratégias de resistência, o fortalecimento de suas organizações, sua incansável luta e sua fé de que não estão sozinhos: “Deus deixou para nós a borduna, a flecha e a raiz para nos proteger e defender nossos direitos e territórios”, diz com firmeza e sem medo Elza Namnãndi Xerente.
Leia o documento final da assembleia na íntegra abaixo:
DOCUMENTO FINAL DA ASSEMBLEIA DOS POVOS INDÍGENAS DE GOIÁS E TOCANTINS
Nós povos Indígenas dos estados de Goiás e Tocantins, Apinajé, Xerente, Krahô, Javaé, Krahô – Kanela, Krahô Takaywrá, Kanela do Tocantins e Tapuia de Goiás, reunidos em Assembleia entre os dias 21 a 25 de maio de 2019 na aldeia Kapej, Terra indígena Krahô, município de Itacajá, estado do Tocantins, viemos manifestar nossas preocupações em relação aos nossos direitos e nossos territórios.
Estamos reunidos aqui, para debater sobre os nossos direitos, pela nossa Mãe Terra, para defendê-la das ameaças do governo Bolsonaro, que fere e ataca nossos direitos garantidos na Constituição Federal de 1988, nos Art. 231 e 232.
Nós povos indígenas de Goiás e Tocantins, repudiamos a medida provisória 870/2019, que ameaça a existência dos povos indígenas e ameaça a garantia dos nossos territórios e de todos os povos indígenas do Brasil.
Não aceitamos que os nossos inimigos históricos, os produtores rurais, agronegócio e os latifundiários assumam a demarcação dos nossos territórios.
Por isso, exigimos que a FUNAI volte para fazer parte do Ministério da Justiça com todas as suas atribuições, principalmente a demarcação, delimitação, proteção e fiscalização dos territórios indígenas; assim como, a competência do licenciamento ambiental.
A Constituição Federal de 1988 no Art. 231 e 232 garante o direito originário dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas, o direito originário é anterior ao estado brasileiro. Nós existimos antes de 05 de outubro de 1988, e não vamos permitir que o chamado marco temporal acabe com os nossos direitos e com a nossa história.
Estamos muito preocupados com o Recurso Extraordinário 1.017.635 que tramita no Supremo Tribunal Federal para ser julgado e terá repercussão geral para todos os povos indígenas e em todos os processos de demarcação das terras indígenas.
Por isso, pedimos respeitosamente que os onze ministros do Supremo Tribunal Federal votem, para garantir o nosso direito originário, que está amparado constitucionalmente no artigo 231 e 232, para que acabem definindo de uma vez por todas, que não existe nenhum marco temporal e nenhuma data para definir o nosso direito às terras indígenas, porque nós somos os povos originários destas terras, e existimos antes mesmo que o estado brasileiro.
Queremos deixar bem claro para todos, que as nossas terras não estão postas para venda, e para nenhum tipo de arrendamento. Queremos e exigimos que se respeite a Constituição, ela no artigo 231 § 4°, diz que as “terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis”.
Por isso, não permitiremos que nossas terras sejam arrendadas, nem divididas. Não aceitaremos plantio de monoculturas de soja, arroz, cana-de-açúcar, eucalipto, melancia em nossos territórios; assim como também, não deixaremos que sejam construídos os grandes projetos nas nossas terras, como o MATOPIBA, barragens, asfaltamento de estradas, hidrovias e não queremos a transposição do rio Tocantins para o rio São Francisco, que vai matar nosso rio, matar a natureza e a Mãe Terra.
A nossa vida e saúde dos povos de Goiás e Tocantins está em jogo e correndo grave perigo. Por isso, não aceitamos a proposta do governo federal de municipalizar a política de saúde indígena. Queremos também que seja respeitado o controle social das políticas públicas, queremos a volta de todos os conselhos locais, distrital e federais, como o Fórum de presidentes dos CONDISI e o Conselho Nacional de Política Indigenista – CNPI.
A educação escolar indígena precisa ser respeitada e garantir que seja específica e diferenciada de acordo a realidade de cada povo e cultura. Tem mas de 120 dias que indígenas que trabalham como professores, Assistentes de serviços gerais e merendeiras, estão sem contrato em 2019.
Também exigimos que as cotas e a política de permanência nas universidades públicas federais sejam garantidas para os indígenas, quilombolas e para todos os brasileiros, pois a educação não pode ser privilégio de uns poucos.
Queremos viver em paz, tranquilos nas nossas terras, sem medo, sem violência e sem preconceito. Mas, para isso é preciso demarcar todas as terras indígenas, principalmente de aqueles povos que estão fora da terra indígena.
Queremos que seja concluída a demarcação da terra indígena Taego Awá do povo Avá-Canoeiro, que seja garantida a terra para o povo Kanela do Tocantins, do povo Krahô Takaywrá e concluído o processo fundiário do povo Krahô-Kanela. Assim como, seja feita a revisão de limites da terra indígena Apinajé e Tapuia, que parte de sua terra ficou fora da demarcação.
Não deixaremos que destruam a nossa Mãe Terra, queremos nosso bem viver para nossos filhos, netos e bisnetos, não deixaremos que destruam a nossa terra, ela é sagrada, e se preciso for, vamos morrer por ela!
Aldeia Kapej, 25 de maio de 2019.
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Assembleia realizada no território Krahô com povos de Goiás e Tocantins. Foto por Cimi – Regional Goiás/Tocantins