Segundo o procurador Rafael de Araújo Gomes, é a primeira vez no mundo que uma ação tenta responsabilizar os bancos pelo financiamento de empresas denunciadas na lista suja
Por Julia Dolce, Agência Pública
O Ministério Público do Trabalho (MPT), no final de maio deste ano, entrou com ações inéditas para responsabilizar os sete maiores bancos do país pela constante concessão de crédito a empresas que comprovadamente fizeram uso de trabalho escravo ou foram denunciadas por sérias violações aos direitos humanos.
Banco do Brasil, Bradesco, Santander, BTG Pactual, Caixa Econômica Federal, Itaú e Safra responderão em primeira instância, na Justiça do Trabalho de São Paulo, por negligenciar o risco socioambiental no financiamento dessas empresas. Com base em uma suspeita e fiscalização do Banco Central, realizada em 2011, Banco do Brasil, Bradesco e Santander tiveram o sigilo de suas transações quebrado durante a investigação do MPT, em 2017.
A quebra identificou uma média de quatro financiamentos por banco a empresas que constavam no Cadastro de Empregadores da União, popularmente chamado de lista suja do trabalho escravo.
De acordo com o MPT, a fiscalização pelo Banco Central das políticas socioambientais de crédito dos demais bancos brasileiros deveria ser corriqueira, mas há pelo menos oito anos não ocorre. Procurado pela Pública, o Banco Central não respondeu.
Já no caso dos outros bancos processados, o que motivou ações do MPT foi a incapacidade de comprovação de métodos utilizados para prevenir e barrar concessões para as empresas denunciadas.
Desde 2014 uma resolução do Conselho Monetário Nacional (CMN), com base em pactos e tratados internacionais, exige dos bancos políticas de responsabilidade socioambiental.
Em entrevista à Pública, Rafael de Araújo Gomes, um dos procuradores do Trabalho responsáveis pelas ações, afirmou que os bancos não demonstraram ter nenhum mecanismo interno de monitoramento dos antecedentes dos clientes. A informação e o perfil das empresas que costumam compor a lista suja – geralmente grandes companhias pertencentes a importantes cadeias produtivas – levantam a suspeita do MPT de que boa parte delas continua recebendo crédito bancário normalmente. “Pela resposta dos bancos, temos a virtual certeza de que as concessões ocorrem permanentemente”, afirma o procurador do Trabalho.
Além do CMN, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), da qual as sete instituições bancárias são membros, lançou em 2014 um ato de autorregulamentação (Normativo Sarb n. 14) que traz regras ainda mais rígidas do que as contempladas pela Resolução n. 4.327. O documento do ato determina, por exemplo, que os contratos firmados pelos bancos devem conter no mínimo cláusulas que estabeleçam a obrigatoriedade de o tomador observar a legislação trabalhista vigente.
Em 2016, o MPT instaurou um procedimento para acompanhar a elaboração das políticas de responsabilidade pelos principais bancos que operam no país. Segundo o procurador, desde 2014 foi verificado que há um abismo entre as ações de fornecimento de crédito e o discurso sobre combate à exploração do trabalho escravo e infantil e violações às normas de saúde e segurança do trabalho, do qual os bancos não apenas são signatários, mas o qual defendem interna e externamente.
De acordo com o MPT, o Bradesco era o único que realmente previa em suas normas internas a possibilidade de continuar a conceder crédito às empresas e pessoas envolvidas com trabalho escravo.
Após diversas audiências entre o MPT e os representantes da Febraban e dos bancos autuados, no ano passado estes apresentaram uma contraproposta que previa realizar muito menos do que suas resoluções e políticas. A partir de então, o MPT começou a elaborar as ações, como explica Gomes.
“Nessa contraproposta, os bancos diziam expressamente que, mesmo diante de citação comprovada judicialmente de trabalho escravo e infantil, não precisaria ser tomada nenhuma providência pelo banco. A contraproposta é a reprodução do que de fato eles fazem no dia a dia”, afirma.
Nas ações, o MPT chega a citar o rompimento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho, no início deste ano, como um exemplo que poderia ter sido evitado. “A adoção de um discurso de absoluta irresponsabilidade pode levar a tragédias. A Vale já estava envolvida no caso de Mariana, o que deveria sugerir um comportamento mais responsável por parte dos agentes financeiros”, afirma o procurador.
As ações pedem a reelaboração das políticas dos bancos citados, identificando os riscos relacionados, além da capacitação de funcionários. Apesar de o MPT ter entrado com uma ação semelhante em 2010 contra o Bradesco e o Banco da Amazônia, vetando exclusivamente o crédito rural para empreendimentos do agronegócio que exploraram a mão de obra escrava, é a primeira vez no mundo, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), que uma ação tão abrangente questiona o financiamento pelos bancos de empresas denunciadas na lista suja, como explicou o procurador na entrevista a seguir.
Qual a importância dessas ações e que jurisprudência podem gerar?
O objetivo é que se alcance um avanço e veja que praticamente qualquer ação no sentido de realmente colocar em prática o que está na resolução do CMN, em realidade, será um avanço, porque praticamente tudo é descumprido pelos bancos.
A distância entre o que está na norma e o que os próprios bancos dizem que fazem e o que eles realmente fazem é muito grande. Há um abismo. Então há muito espaço para avanço. Isso significaria que o banco, que já reconhece os motivos pelos quais não deveria se envolver, por exemplo, em um financiamento de empreendimentos envolvidos com trabalho escravo, seja mais criterioso. Na verdade, o MPT tem a convicção de que o que foi verificado na quebra de sigilo bancário, apesar de pontual e obtido com grande dificuldade, na verdade é um procedimento de concessão que ocorre de forma rotineira.
E um dos principais indicadores disso, dessa naturalidade com a qual as concessões para empresas envolvidas com trabalho escravo ocorre no dia a dia, é a contraproposta apresentada pelos bancos. O MPT ficou mais de um ano discutindo com esses bancos e com a Febraban um acordo, e no final a contraproposta dos bancos previa expressamente a possibilidade de eles concederem créditos para quem eles tenham a confirmação, inclusive a condenação judicial, por trabalho escravo. A confirmação da prática de trabalho escravo, na proposta dos bancos, abriria apenas a possibilidade de analisar a operação de crédito, podendo confirmá-la ou não. Da mesma forma, a constatação de trabalho escravo na constância de um contrato de crédito não levaria ao vencimento antecipado desse contrato, mas só à possibilidade de o banco, se quiser, aplicar ou não alguma providência ou sanção contratual.
Então há uma grande distância daquilo que as políticas de certos bancos que afirmam que “sequer mantêm relacionamento com cliente envolvido com trabalho escravo”.
O senhor acredita que sem o incentivo financeiro desses bancos poderíamos ter uma redução expressiva no trabalho análogo à escravidão no país?
Tenho absoluta certeza. Particularmente no caso do trabalho escravo, a esmagadora maioria dos casos detectados são empreendimentos inseridos em grandes cadeias produtivas, cadeia da carne, cadeia da construção civil, indústria de vestuário, multinacionais, inclusive. Salvo raríssimas exceções em que há algo muito periférico, a constatação é que geralmente é uma cadeia global. Essa operação não funciona sem uma fonte constante de financiamento. O dinheiro que vem, o crédito dos bancos, é o sangue que permite fluir essa economia globalizada. Portanto, não há a menor dúvida que, se o trabalho escravo persiste, em grande parte passa pela possibilidade do escravagista continuar operando nessa cadeia global sem consequências.
Nesse sentido, quando o senhor diz que as concessões de crédito são recorrentes, acha que a maior parte das empresas atualmente na lista suja tenha conseguido crédito bancário mesmo depois de elas terem sido condenadas?
A maior parte, sim. Se não obtiveram por crédito rural, obtiveram sob alguma outra linha de crédito, o que torna ainda mais difícil de descobrir, mesmo com quebra de sigilo bancário. Você vê com frequência na lista empreendimentos de porte e não um produtor pequeno batalhando pela sua sobrevivência. Você tem grandes produtores, usinas, e a busca e obtenção de crédito bancário são rotineiras para sua manutenção.
Enquanto existir a opção de se obter o crédito sem consequências, isso continuará acontecendo. E a consequência poderia ser inclusive não a negação pura e simples ao crédito, mas uma forte mitigação. Uma opção ou outra induziria o empregador envolvido em trabalho escravo ou infantil a fazer as contas e verificar se realmente vai continuar obtendo lucro maior e mais fácil com a manutenção de condições muito ruins de trabalho ou se vale a pena, já que seus custos estão aumentando, regularizar e passar a utilizar a mão de obra como determina a lei.
O senhor afirma que a ação é inédita no mundo…
Isso foi mencionado em um seminário ocorrido neste ano, organizado pelo MPT junto à Universidade da ONU. As ações não haviam sido propostas ainda, estavam perto de ser, e eu mencionei em linhas gerais qual seria o conteúdo das ações, e o representante da Universidade da ONU mencionou que, no conhecimento dele, não existia algo do tipo em outros países. Não chega a ser uma surpresa porque, embora esse assunto seja até mais fortemente discutido no exterior, na Europa por exemplo, ainda são poucos os países que possuem uma norma legal clara tratando do assunto. Na maior parte dos países, mesmo quando existe uma lei, ela é mais colocada em termos de prestação de informação sobre quais providências se tomar em termos de responsabilidade socioambiental, mas não fica muito clara qual seria a consequência e menos ainda quem fiscalizaria se isso ocorre ou não.
Pensando na Organização Internacional do Trabalho (OIT), embora haja resoluções internacionais, não há medidas de fiscalizações tão fortes?
Sim, há algum tempo a OIT dá ênfase mais em normas principiológicas do que em regras concretas que você aplique nas relações de trabalho de forma imediata. Isso se dá por vários motivos, a conjuntura política econômica de décadas já. Mas realmente houve um afastamento dessa linha [da fiscalização].
O MPT negociava, há anos, um acordo com os bancos. Como se deu a mudança de comportamento de seus representantes, que levou à contraproposta nas últimas audiências?
Enquanto estávamos discutindo com as pessoas que trabalham nos departamentos de responsabilidade socioambiental dos bancos, as conversas eram produtivas e havia a perspectiva de algum avanços. Mas para o fim dessas discussões, quando a Febraban chegou a apresentar a contraproposta mais concreta, chamou muito atenção que, em certo momento, o discurso de defesa apresentado não era sequer o do banco, mas do cliente do banco. Por exemplo, justificativas como “a empresa tal está na lista suja, mas isso é injusto porque ela não fez, foi assim ou assado”. Isso é algo bastante estranho. É um argumento de defesa legítimo da empresa cliente do banco, mas não faz sentido que seja a perspectiva do banco, porque para ele importa o risco. Quando ele nega crédito porque alguém está na Serasa ou no SPC Brasil, o banco só está tomando a informação e levando em conta que não é obrigado a conceder crédito. Os bancos avaliam o risco para si e tomam a decisão, eles não levam em conta a situação do cliente, se o cliente foi incluído na Serasa de forma injusta etc. O banco não iria endossar e dizer que “a princípio não poderiam tomar a Serasa e o SPC como fontes de informação confiáveis porque o caso é injusto”. Simplesmente não acontece. Então é estranho que, no caso da lista suja do trabalho escravo, a perspectiva de repente mude e o banco passe a assumir a defesa não do seu interesse em relação ao risco, e sim do seu próprio cliente. Se o cliente representa algum risco, não interessa ao banco confirmar a concessão.
Qual seria o motivo de os bancos estarem assumindo essa posição?
Analisando a documentação, parte dela protegida por sigilo, vimos que, em alguns casos, os bancos forneceram inclusive trocas de e-mail com as empresas. É interessante ver como existe praticamente um cabo de guerra dentro do banco, com, de um lado, o setor socioambiental tentando puxar para o reconhecimento do risco, tentando identificar e dizendo que é uma operação não recomendada, e, do outro lado, o setor comercial, o gerente que atende o cliente, a instância superior que efetivamente decide, tentando uma perspectiva de fechar a maior quantidade de contratos possível, obter o maior lucro, bater meta, visando à importância do cliente, os investimentos dos sócios. Nisso, o setor de responsabilidade socioambiental tenta fazer seu trabalho e aplicar as políticas do próprio banco. O que se constata em tudo isso é que o que prevalece é a perspectiva do comercial e do lucro imediato, e não a do socioambiental. Isso é um conflito que existe. Os bancos criaram esses setores porque sabem que existe esse risco e uma cobrança social e política em nível planetário, principalmente depois da crise de 2008. Mas eles não empoderam esses setores e departamentos. Então incorporou-se aspectos dessas preocupações, mas isso não é repercutido no dia a dia dos negócios.
Os representantes dos bancos chegaram, em algum momento, a desconsiderar a legitimidade da lista suja?
Sim, a contraproposta na verdade acaba de forma expressa descaracterizando a lista suja. Dizendo, por exemplo, que ela só vale para crédito rural, crédito com subsídio do governo e financiamentos do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social]. Como se não tivesse nenhuma outra relevância para qualquer outra linha de crédito. Então, sim, chegou-se a esse ponto.
A maior parte das transações comerciais encontradas com a quebra de sigilo realizada em 2011 foram de empresas do agronegócio. O senhor acredita que, no atual governo, mais próximo à bancada ruralista e às flexibilizações trabalhistas, o trabalho dos auditores do MPT está ameaçado?
Não tenho como lhe dizer sobre aspectos políticos, porque o MPT não atua na esfera política. O que posso dizer é que, para o mundo do trabalho, os tempos atuais estão com enormes desafios e um risco de retrocessos que já vem há vários anos, na verdade. O MPT deve continuar fazendo seu trabalho, evitando a precarização e buscar outras formas, inclusive, além das tradicionais, de se obter o cumprimento da legislação, e, nesse caso específico, de direitos humanos fundamentais. Nesse sentido, esse caminho da responsabilização de instituições financeiras merece ser encorajado porque tem a capacidade de reduzir comportamentos socialmente indesejáveis, compatibilizando isso com o lucro dos bancos.
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Imagem: Rafael de Araújo Gomes é procurador do Ministério Público do Trabalho – Divulgação