Pautada o dia 27 de junho, ação rescisória foi movida pelos Guarani Kaiowá, que não foram ouvidos no processo que anulou sua terra indígena
por Tiago Miotto, em Cimi
Dia 27 de junho poderá ser uma data decisiva para a comunidade Guarani Kaiowá do tekoha Guyraroka, localizado no município de Caarapó, no Mato Grosso do Sul. Está marcado para este dia no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) o julgamento da Ação Rescisória (AR) 2686, por meio da qual a comunidade indígena busca que a Corte reverta a decisão que, em 2014, invalidou a demarcação de sua terra.
Tomada pela Segunda Turma do STF, a decisão que anulou a demarcação da Terra Indígena (TI) Guyraroka foi permeada por uma série de violações à Constituição Federal e a tratados internacionais. Entre elas, destaca-se o fato de que os Guarani Kaiowá não foram ouvidos em nenhuma etapa do processo.
“Como podem dizer que o Guyraroka não existe sem nem nos ouvirem?”, questiona a Guarani Kaiowá Erileide Domingues, do tekoha Guyraroka. “Não ouviram a liderança, nem o nhanderu [rezador], nem sequer mesmo a juventude. Então, pedimos que os ministros ouçam a gente, que ouçam a voz da comunidade Guyraroka”.
Inicialmente, a ação rescisória foi negada pelo relator, ministro Luiz Fux. Os Guarani Kaiowá e a Procuradoria-Geral da República (PGR) recorreram da decisão e o recurso chegou a ser pautado no plenário virtual do STF. Com votos negativos de Fux e Cármen Lúcia, a votação digital foi interrompida após pedido de vistas do ministro Edson Fachin.
Agora, o recurso – que discute a admissibilidade da ação – será julgado presencialmente pelo plenário do Supremo, em sessão marcada para iniciar às 14 horas do dia 27 de junho.
A Aty Guasu, a grande assembleia Guarani e Kaiowá, tem afirmado que o destino do tekoha Guyraroka diz respeito à vida de todo o povo.
“A decisão de anulação do Território de Guyraroka é um atestado de genocídio e de massacre por parte do Estado não só contra as famílias de Guyraroka, mas também contra todo nosso povo”, declarou a Aty Guasu no ano passado. “Se suspenderem nossos territórios no papel, nós os defenderemos com nossas vidas”.
Ainda a tutela
A falta de participação dos indígenas no processo é um dos principais pontos questionados na Ação Rescisória. Os Guarani Kaiowá não só não foram intimados no processo, como tiveram, duas vezes, sua admissão negada com base no “regime tutelar do índio”, evocado pelo relator Gilmar Mendes.
O ministro baseou-se na lei de criação da Fundação Nacional do Índio (Funai), de 1967, a qual estabelece que uma das funções do órgão era atuar em nome dos indígenas na Justiça. Na época, os indígenas eram tratados como “relativamente incapazes” e deveriam ser representados na Justiça pelo Estado – que, muitas vezes, era o responsável por expulsá-los de suas terras.
“A perspectiva da tutela foi superada pela Constituição de 1988, que reconheceu os povos indígenas como sujeitos coletivos de direito, aptos a ingressar em juízo para defender seus interesses”, explica Adelar Cupsinski, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e advogado dos indígenas no processo.
A comunidade do Guyraroka reivindica ser admitida como litisconsorte passivo necessário– ou seja, como parte diretamente afetada pelo julgamento em questão.
Em manifestação no processo, a PGR afirma que é “correta a alegação de nulidade” do julgado porque, apesar da decisão ter atingido a comunidade do Guyraroka “direta e concretamente”, os indígenas não foram ouvidos.
“O Poder Judiciário ainda não assimilou as inovações da Constituição e vem tratando os povos indígenas como tutelados na maioria das ações”, avalia Cupsinski.
Nos últimos anos, contudo, os tribunais superiores vêm tomando decisões positivas acerca do tema e sinalizando com a superação, a conta-gotas, do paradigma da tutela. É o caso do povo Xokleng, recentemente admitido como parte em processo de repercussão geral no STF.
“O caso Guyraroka poderá ser importante para que se firme uma jurisprudência em que se rompa com os resquícios do regime tutelar”, avalia Rafael Modesto dos Santos, também assessor jurídico do Cimi e advogado dos Guarani Kaiowá na ação.
Marco temporal
Outro ponto central dos questionamentos à decisão da Segunda Turma é o fato de que a TI Guyraroka foi anulada com base na tese do marco temporal. Segundo essa interpretação, os indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse física em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
Além de destacar a inconstitucionalidade da tese, os advogados da comunidade apontam um erro grave do processo: o relatório de identificação e delimitação da TI Guyraroka, produzido pela Funai, foi ignorado pela Segunda Turma do STF.
Passagens que indicam a continuidade da presença indígena no território acabaram não sendo consideradas no julgamento. O laudo aponta que, durante anos, famílias Kaiowá permaneceram trabalhando como peões ou frequentando as matas da região para a caça e a pesca, numa estratégia silenciosa de resistência.
“Fomos expulsos de nosso Guyraroka. Hoje dizem que ele não é nosso. Como não, se eu nasci e caminhei toda minha vida lá? Morava lá antes mesmo de falar português”, afirma o ancião Tito Vilhalva, de aproximadamente um século de vida.
Seu Tito recita de cabeça os nomes dos fazendeiros que chegaram ao seu Guyraroka e as datas das idas e vindas entre a terra tradicional e as reservas da região, para onde as famílias expulsas do tekoha eram levadas – e de onde nunca desistiram de retornar.
Há vinte anos, lideranças como Tito Vilhalva e sua companheira Miguela conduziram o povo Guarani e Kaiowá de volta para sua terra tradicional, quando estabeleceram a pequena retomada nos fundos de uma fazenda, onde hoje vivem.
Apesar da trégua na violência direta contra os indígenas, as famílias do Guyraroka vivem cercadas pelas fazendas que incidem sobre sua terra e sofrem com a aplicação de veneno nas lavouras, que contamina a água e vem gerando intoxicações em crianças e adolescentes.
Caso emblemático
Além do marco temporal e da falta de participação dos indígenas no processo, outros pontos graves que são questionados na decisão. Um deles é a via utilizada para o pedido de anulação da demarcação, chamada de Mandado de Segurança.
Trata-se, explica Cupsinski, de uma via bastante limitada, que não permite a produção de provas ou mesmo o agendamento de audiências.
“Isso já foi superado nos tribunais superiores e a jurisprudência do STF definiu que não é possível utilizar mandado de segurança para discutir questões complexas, como demarcação de terras indígenas”, explica o advogado.
Além disso, há outra ilegalidade: cerca de um ano antes, o STF já havia tomado uma decisão sobre outro Mandado de Segurança movido pelo mesmo fazendeiro, Avelino Donatti, e visando a anulação da mesma terra indígena – pedido que, na ocasião, foi negado. Segundo os advogados, a legislação brasileira proíbe que se julgue mais de uma ação com o mesmo objeto.
“As violações são diversas no caso e todas elas são muito graves”, resume Rafael. “Esse processo é um dos mais importantes no STF, porque foi o primeiro em que a tese do marco temporal foi aplicada. Depois dele, vieram Limão Verde e Porquinhos”, referindo-se às demarcações dos povos Terena e Kanela-Apanjekra que também foram anuladas pela Segunda Turma em 2014.
As três decisões da Segunda Turma foram utilizadas, em 2017, como base do Parecer 001 da Advocacia-Geral da União (AGU), assinado por Michel Temer. O Parecer, que segue vigente, obriga toda a administração pública a aplicar o marco temporal, e vem sendo questionado desde então pelos povos indígenas.
Em 2017, o caso Guyraroka também foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).Em 2019, Erileide Domingues também denunciou a situação de seu povo na Organização das Nações Unidas (ONU).
“Queremos ser ouvidos. É a nossa vida em jogo, não tem como dizer que esta não é uma terra tradicional do povo Guarani e Kaiowá. Não vamos desistir de lutar pelo que é nosso”, afirma Erileide Domingues.
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Manifestação Guarani e Kaiowá em frente ao STF. Foto: Michelle Calazans/Cimi