Por João Vitor Santos e Patricia Fachin, em IHU On-Line
A vistoria realizada na Volta Grande do Xingu pelo Ministério Público Federal e pelo Ministério Público do Pará, dez anos depois do licenciamento ambiental que autorizou a construção da hidrelétrica de Belo Monte, “permite observar uma contínua precarização dos modos de vida na região”, diz Sadi Machado, procurador da República em Altamira. A vistoria deu origem ao Relatório de Vistoria Interinstitucional na Volta Grande do Xingu, que constata e confirma as denúncias e críticas feitas a Belo Monte, que foi construída na bacia do Rio Xingu, próximo ao município de Altamira, no sudoeste do estado do Pará.
De acordo com o procurador, a análise conjunta de documentos, audiências públicas, ações judiciais e a própria vistoria da região do Xingu dez anos depois permitem afirmar que existem “impactos evidentes sobre o meio ambiente e as condições de vida, muitas situações de penúria e carência material”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Machado frisa que “ao contrário do que se prometia durante o licenciamento, as comunidades vivem hoje grandes dificuldades decorrentes das consequências ecológicas, econômicas e sociais do empreendimento. A escassez de peixes, as dificuldades de navegação, a precariedade das estradas, escolas e postos de saúde são problemas que foram constatados por todas as equipes de vistoria”.
Segundo ele, a construção de Belo Monte gerou uma “drástica alteração no volume de águas” do Rio Xingu e a instalação de um hidrograma de consenso, prevista para este ano, o qual irá controlar o volume de água que passa pela Volta Grande do Xingu, cria dúvidas sobre a possibilidade de reprodução e manutenção da vida das comunidades que vivem na região. “O que preocupa todas as instituições que participaram da vistoria é que, embora o hidrograma ainda não esteja sendo aplicado (a previsão é que ele entre em vigor no final de 2019), já se constata, por exemplo, a redução no volume e na variedade de peixes à disposição de comunidades que vivem da pesca, o que pode gerar um quadro de insegurança alimentar. Dessa dúvida, derivam outras, a exemplo das consequências decorrentes da alteração do ritmo histórico do rio, que vai impactar a vida das pessoas que se organizavam a partir de seu fluxo”.
Entre as consequências sociais identificadas pela vistoria, Machado também menciona o quadro de insegurança alimentar. “A primeira consequência social, que salta aos olhos, é a insegurança alimentar, seja pela redução do volume de peixes, seja pelas dificuldades de navegação e locomoção, que afetam o escoamento de produtos da região, como o cacau e a farinha. Também há impactos na geração de renda, decorrentes da alteração dos modos tradicionais de produção. Comunidades cujas práticas anteriores estavam associadas à pesca e à colheita tradicional, hoje apresentam hábitos alimentares fundamentalmente baseados em produtos industrializados. À insegurança alimentar se soma a dificuldade de acesso à água potável”.
Sadi Machado é mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Atualmente é procurador da República em Altamira, Pará.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais foram as principais surpresas na vistoria realizada na Volta Grande do Xingu, que deu origem ao Relatório de Vistoria Interinstitucional na Volta Grande do Xingu? O que mais lhe chamou a atenção em comparação com vistorias, relatórios e estudos anteriores?
Sadi Machado – Não há propriamente surpresa nas constatações da vistoria, porque o Ministério Público Federal, sobretudo a Procuradoria da República em Altamira, tem constatado e reagido desde o início aos impactos da Usina de Belo Monte. Uma análise conjunta dos documentos, vistorias, audiências públicas e reuniões já realizadas sobre o tema, somadas às ações judiciais já propostas, permite observar uma contínua precarização dos modos de vida na região da Volta Grande do Xingu. A vistoria ocorreu dez anos após ter se iniciado o licenciamento, e através dela observamos impactos evidentes sobre o meio ambiente e as condições de vida, muitas situações de penúria e carência material. Ao contrário do que se prometia durante o licenciamento, as comunidades vivem hoje grandes dificuldades decorrentes das consequências ecológicas, econômicas e sociais do empreendimento. A escassez de peixes, as dificuldades de navegação, a precariedade das estradas, escolas e postos de saúde são problemas que foram constatados por todas as equipes de vistoria.
IHU On-Line – O Relatório de Vistoria Interinstitucional aponta uma série de dúvidas acerca do cumprimento do que determinam as concessões e licenciamentos para a implantação do empreendimento. No que consistem essas dúvidas?
Sadi Machado – Podemos apontar como questão primordial a viabilidade socioambiental do chamado hidrograma de consenso, um termo cunhado durante o licenciamento e que traz consequências à vazão do rio Xingu destinada à Volta Grande, gerando uma drástica alteração no volume de águas. A principal dúvida diz respeito às condições de reprodução e manutenção da vida das comunidades e também aos impactos ao meio ambiente diante da implantação do hidrograma. O que preocupa todas as instituições que participaram da vistoria é que, embora o hidrograma ainda não esteja sendo aplicado (a previsão é que ele entre em vigor no final de 2019), já se constata, por exemplo, a redução no volume e na variedade de peixes à disposição de comunidades que vivem da pesca, o que pode gerar um quadro de insegurança alimentar. Dessa dúvida, derivam outras, a exemplo das consequências decorrentes da alteração do ritmo histórico do rio, que vai impactar a vida das pessoas que se organizavam a partir de seu fluxo. Algumas comunidades chegaram a se referir à Volta Grande do Xingu como “cemitério de peixes”. Também é fundamental a questão dos planos de emergência e segurança de barragens da usina. O tema foi mencionado pelos moradores de todas as comunidades visitadas, que demonstraram preocupação quanto às medidas que deveriam ser tomadas diante de qualquer imprevisto. Embora seja clara a diferenciação técnica e de segurança entre as barragens hídricas de Belo Monte e as barragens de rejeitos de minérios, a participação social de potenciais impactados deve ser garantida em todos os casos.
IHU On-Line – Como a instalação do complexo de Belo Monte tem impactado os ecossistemas locais?
Sadi Machado – O principal impacto sobre os ecossistemas está relacionado à alteração do ritmo hídrico do rio Xingu. Na Região Amazônica, o Xingu, dentre os rios de pulso (que têm variação significativa entre a cheia e a seca), historicamente é um daqueles com a maior variação. E os ciclos de reprodução e alimentação das espécies dependem desse pulso, desse tempo próprio natural do ciclo hidrológico. Os peixes dependem do alagamento das florestas nas várzeas, para se alimentarem e se reproduzirem. Segundo especialistas independentes, em muitos trechos da Volta Grande, desde a instalação da usina o alagamento necessário para que as espécies alcançassem certos frutos não se repetiu. As próprias comunidades, a exemplo dos Juruna, da Terra Indígena Paquiçamba, têm realizado monitoramentos das condições ecológicas, cujos dados apresentam discrepâncias em relação ao monitoramento realizado pela concessionária da usina.
IHU On-Line – De que forma a população local tem sido impactada pelas alterações ambientais causadas pelo complexo de Belo Monte? Como o poder público tem agido nesses casos?
Sadi Machado – A primeira consequência social, que salta aos olhos, é a insegurança alimentar, seja pela redução do volume de peixes, seja pelas dificuldades de navegação e locomoção, que afetam o escoamento de produtos da região, como o cacau e a farinha. Também há impactos na geração de renda, decorrentes da alteração dos modos tradicionais de produção. Comunidades cujas práticas anteriores estavam associadas à pesca e à colheita tradicional, hoje apresentam hábitos alimentares fundamentalmente baseados em produtos industrializados. À insegurança alimentar se soma a dificuldade de acesso à água potável. A redução de vazão do rio também atinge os lençóis freáticos, com influência sobre os poços artesianos dos quais algumas comunidades coletam água. Na Ilha da Fazenda, por exemplo, que abriga uma das comunidades mais antigas e tradicionais da Volta Grande, o acesso à água é extremamente precário. Foi ainda constatada a precariedade dos atendimentos de saúde, escolas em péssimo estado estrutural, transporte escolar sem a necessária segurança ou mesmo inexistente. Há, portanto, uma precarização dos serviços públicos que se soma aos impactos socioambientais.
IHU On-Line – O Relatório também aponta um esvaziamento populacional na Volta Grande do Xingu. Como compreende esse processo? É possível e desejável reverter esse quadro?
Sadi Machado – Pudemos observar que a precarização das condições de vida tem levado algumas comunidades da Volta Grande do Xingu a deixar para trás sua história, suas relações familiares e de vizinhança, e com isso suas tradições, seus vínculos de afeto e de referência, como um mecanismo de sobrevivência. Algumas comunidades vivem um estrangulamento econômico e, sobretudo, no caso dos indígenas, dependem hoje fundamentalmente de subsídios externos, tendo perdido grande parte de sua autonomia. Os planos de mitigação de impactos previam o fomento de atividades produtivas para as comunidades indígenas na região da Volta Grande, mas o que se observa é a precariedade de sua execução, objeto inclusive de ação judicial do MPF. Além disso, diversas comunidades sequer foram consideradas impactadas e não receberam qualquer tratamento. Por isso a reversão desse quadro é um imperativo, sob pena de agravamento da situação, gerando uma violação de direitos sem precedentes, dada a magnitude da área impactada pela redução da vazão do rio Xingu e do número de pessoas que nela habitam.
IHU On-Line – Que tipo de intervenção deve ser feita na Volta Grande do Xingu para estancar e, quem sabe, até reverter as graves violações de direitos e riscos aos ecossistemas e moradores apontados no Relatório?
Sadi Machado – A vistoria foi importante porque pudemos listar distintos problemas sob o olhar multidisciplinar de vários pesquisadores e especialistas, de diversas instituições. A partir da análise do Relatório, o Conselho Nacional de Direitos Humanos expediu uma Recomendação à concessionária Norte Energia S.A., para que realize o custeio de uma auditoria externa (due diligence) capaz de aferir, com independência, os impactos da atuação da empresa sobre os direitos humanos dos moradores da Volta Grande do Xingu. Trata-se de uma medida em conformidade com as normas que regem a relação entre as empresas e os direitos humanos, e bastante oportuna, vez que, conforme apontado no Relatório, a empresa resiste em assumir, perante os moradores da Volta Grande, a responsabilidade pelos impactos decorrentes de suas atividades.
IHU On-Line – Depois de concluído o relatório, quais devem ser os próximos passos? Que ações o MPF planeja para intervenção na área?
Sadi Machado – Cada uma das instituições participantes da vistoria se comprometeu, na esfera de suas atribuições, a adotar medidas voltadas à apuração e reparação das violações de direitos apontadas no relatório. Também serão articulados esforços para garantir a proteção do ambiente natural e socioambiental da Volta Grande do Xingu, considerando todos os atributos singulares da região. No tocante às deficiências na execução de políticas públicas, pretende-se adotar medidas de responsabilização aos gestores públicos, caso persista a omissão em relação às constatações da vistoria. No final de maio, o MPF promoveu, na sede da Procuradoria-Geral da República, em Brasília, um Seminário Técnico para avaliar os potenciais impactos da implementação do hidrograma de consenso. Estiveram presentes representantes do governo federal, da concessionária Norte Energia S.A., indígenas e especialistas da área ambiental para discutir os impactos socioambientais causados pelo barramento e consequente diminuição do fluxo hídrico do rio Xingu. Também entendemos imprescindível o cumprimento da Recomendação nº 8 do Conselho Nacional de Direitos Humanos, especificamente o custeio, pelo empreendedor, de auditoria externa e independente (due diligence), voltada a identificar, prevenir, mitigar e reparar os impactos de suas atividades sobre os direitos humanos na região da Volta Grande do Xingu.
IHU On-Line – Quais tem sido os maiores desafios dos órgãos ambientais e do Ministério Público na atuação nessa região atingida pelo complexo de Belo Monte?
Sadi Machado – A região atingida pelo complexo de Belo Monte corresponde a um mosaico bastante complexo, formado por unidades de conservação, terras indígenas, assentamentos rurais e realidades socioeconômicas muito diversas. Nesse cenário, o avanço do desmatamento na Região Amazônica e a recorrência de conflitos agrários e fundiários potencializam esses desafios, que se somam ao incremento da violência nos últimos anos nas regiões impactadas pelo empreendimento, sobretudo em detrimento de defensores de direitos humanos no campo.
IHU On-Line – Como evitar que essa experiência de violações de direitos e de riscos aos ecossistemas decorrentes da instalação e operação de Belo Monte se repita na concepção e implementação de outros empreendimentos?
Sadi Machado – O desenvolvimento econômico deveria levar em conta, em todos os casos, as repercussões sociais de tais empreendimentos, sob pena de agravar quadros históricos de exclusão e acirrar as violações de direitos. Isso porque as populações em situação de maior vulnerabilidade são as mais intensamente atingidas. Daí surge um paradoxo: os que sofrem os impactos mais diretos são os moradores de comunidades pobres, povos indígenas, povos das florestas, ribeirinhos, pequenos agricultores e pescadores, entre tantos outros, sem que se efetivem mecanismos de consulta prévia e de participação desses indivíduos na concepção e implementação de tais empreendimentos. É importante reforçar e aprimorar instrumentos e marcos jurídicos para a proteção e promoção dos direitos humanos por parte das empresas, diante da ausência de uma política pública abrangente sobre o tema.
Além dos direitos de participação e informação, a experiência de Belo Monte revela a necessidade de se considerar, em todos os casos, as dimensões de acesso à justiça e tratamento isonômico, conforme critérios transparentes e coletivamente acordados; de reparação prévia e justa de todos os impactados; de garantia das condições de vida e de proteção ao meio ambiente; de apoio psicológico às populações atingidas; de fiscalização contínua quanto à execução dos recursos destinados ao empreendimento, dentre tantas outras. Durante a vistoria, uma das lideranças com quem conversamos lançou uma pergunta inquietante: “quando é que esse desenvolvimento vai chegar para nós?”. A ausência, até o momento, de resposta segura a tal questão me parece fundamental para compreender esse processo.
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Foto: Letícia Leite | ISA