A 1ª Romaria da Terra e das Águas pela Agricultura Familiar Agroecológica ocorreu nos municípios de Belterra, Mojuí dos Campos, Alenquer e Santarém, no Pará, nos dias 27 e 28 de julho. “Nossa peregrinação não se encerra nesta romaria, mas segue a cada dia, somando-se a novas pessoas sempre em busca da vitória e da liberdade para viver em paz”, afirmam, em trecho da Carta, os romeiros e as romeiras. Confira o documento final na íntegra:
Nos dias 27 e 28 de julho de 2019 realizamos a primeira Romaria da Terra e das Águas pela Agricultura Familiar Agroecológica, que envolveu trabalhadores rurais, agricultores e agricultoras familiares dos municípios de Belterra, Mojuí dos Campos, Alenquer e Santarém. Foram meses de preparação e construção desta Romaria que teve como objetivo valorizar a agricultura familiar agroecológica, mostrar sua importância histórica nestes municípios para a conservação da vida e da saúde das pessoas do campo e da cidade. Também denunciamos as ameaças pelas quais passa a agricultura familiar agroecológica em nossa região devido ao avanço agressivo do monocultivo da soja para dentro das comunidades na região.
Agricultores, agricultoras, indígenas, quilombolas, pescadores, extrativistas, lideranças dos movimentos sociais estiveram presentes nesta primeira Romaria da Terra e das Águas para expressar a dignidade de seu trabalho, a vocação de agricultor e agricultora, seu estilo de vida próprio, celebrar a memória de tantos e tantas que foram tombados dando as suas vidas para defender Amazônia. Esta presença também traz a indignação destes trabalhadores e trabalhadoras diante dos ataques às suas terras e exigir do Estado brasileiro a garantia de seus direitos de permanecer em suas terras e territórios.
Os romeiros fizeram a caminhada pela BR-163, principal corredor terrestre da soja até seu embarque no porto graneleiro da Cargill em Santarém. Neste trecho estão as marcas da violência que a terra, a floresta, as águas e as comunidades locais sofrem com o processo voraz da consolidação do monocultivo da soja no bioma amazônico. As aberturas feitas pelos tratores e correntões expõem a terra, que fica desprotegida pela sua floresta e sem a presença das comunidades. As águas dos Igarapés, antes abundantes e cheias de vida, agora regozijam doentes pelo acúmulo de dezenas de agrotóxicos nelas jogados.
As famílias que antes viviam dispersas dentro das inúmeras comunidades distribuídas pelos vários lugares resistem em seus pequenos terrenos às margens das estradas espremidas em recentes aglomerados, após sua expulsão direta e indireta de suas antigas comunidades para que os donos das fazendas de soja passassem a ocupar as terras usadas pelos comunitários.
No mesmo percurso se observa a ausência quase total da Agricultura Familiar. Toda aquela exuberante produção agroecológica das comunidades, comuns em anos não muito distantes, hoje foi destruída devido a chegada de forasteiros que se arvoraram a desenvolver monocultivos extensos. A vegetação comum e necessária para a vida nas comunidades e dos animais foi dizimada, são quilômetros de aberturas, sem nenhuma vegetação, apenas terra nuas, ou agredidas pelas plantas exóticas produzidas apenas com a utilização das incessantes aplicações dos “venenos”.
Em depoimento de uma moradora de uma das comunidades por onde passamos foram relatadas cenas absurdas que acontecem com os moradores que estão cercados pela soja, segundo o depoimento: “no período da plantação sofremos com a falta de ar com a pulverização do veneno de até 17 dias com nossos idosos, crianças e mulheres gestantes”. Acrescenta ainda que, “cada dia que passa a comunidade fica espremida e os que ainda têm seus lotes sofrem com a oferta de dinheiro para a compra de seus lotes”.
A concentração fundiária é a cena mais comum em todo o percurso dos romeiros, retrato de uma realidade cruel onde os antigos moradores são expulsos de suas terras para dar lugar ao latifúndio. Tudo que era coletivo para os roçados, as caças, as estradas, as diversões nas águas dos igarapés se transforma em “propriedade privada”. Moradores intimidados e ameaçados por aqueles que pretendem tomar conta das suas terras, muitas lideranças têm medo de denunciar e até mesmo de exigir seus direitos por represália dos latifundiários.
Neste processo de ocupação da Amazônia, o Estado brasileiro tem papel importante, já que atuou e atua em favor do agronegócio exportador e ao mesmo tempo criando chamarizes ideológicos para iludir aquelas pessoas que ingenuamente ou desavisadas acabaram entregando suas terras por valores vis, acreditando conseguir melhores condições de vida na cidade. Acabando, portanto sem suas terras e sem condições de uma vida digna na cidade.
O discurso ideológico da produtividade em atendimento às demandas do capital tem como consequência a destruição do modo de vida das populações nativas, mas não só isto, também agride e destrói a floresta amazônica sem nenhum pudor. Estes mesmos agentes da destruição sempre buscam desfigurar sem limites as normas criadas para regrar condições mais adequadas de uso, sempre na perspectiva de ampliar seus lucros pessoais. Lucros alcançados nos grandes negócios com países estrangeiros, já que a grande maioria da soja vendida segue para outros países, sejam da Europa ou da Ásia. Consumidores estrangeiros que quase nada sabem dos crimes e violências cometidas na Amazônia para que sejam ampliadas as áreas de soja, pois a produção da soja no bioma amazônico MATA e DESMATA.
Mas a Romaria também é uma oportunidade magnífica para se ver a RESISTÊNCIA do povo. Resistência que se agiganta e se revela de várias formas. Romeiros de vários lugares esbravejam indignados que sempre resistirão a qualquer investida contra nossa vida e nossa floresta. NOSSO LUGAR É AQUI! Toda e qualquer tentativa de continuar nos colonizando será combatida. Estaremos alertas e alertando aqueles que condicionados ou ingenuamente se submetem aos desmandos daqueles que tomaram nossas terras.
Nossa peregrinação não se encerra nesta romaria, mas segue a cada dia, somando-se a novas pessoas sempre em busca da vitória e da liberdade para viver em paz. A Agricultura Familiar produzida agroecologicamente pelas centenas de trabalhadores e trabalhadoras por si só já é uma das grandes resistências ao modelo do agronegócio predador.
Cada homem e cada mulher destas comunidades carregam consigo as marcas da resistência, que não só estão com suas mãos marcadas pelo trabalho na terra, mas principalmente por aquilo que carregam nos seus sonhos de permanecer produzindo e cuidando da Terra, como cuidado com a mãe, a Mãe Terra.
A confraternização dos peregrinos com as comunidades durante as diversas paradas da Romaria simbolizam a fé no Deus da Vida e a aliança contínua da resistência e defesa da Agricultura Familiar Agroecológica. Nossa Romaria foi marcada pelas palavras de ordem, faixas, bandeiras, celebrações, cantos e depoimentos que demonstram a objetividade dos peregrinos em defesa da VIDA e da CRIAÇÃO. Sempre ordeiros e pacíficos caminhamos e marchamos dispostos a denunciar toda a agressão que os povos da Amazônia vêm sofrendo, mas também em nenhum momento deixamos de anunciar e demonstrar a importância não só econômica e sustentável da produção agroecológica praticadas pelas famílias, mas também sua importância para a qualidade de vida de todos os moradores em harmonia perfeita com a natureza, pois como afirma o ensino social da Igreja este é o “destino universal de todos os bens da Criação”.
Baixo Amazonas – Pará, 28 de julho de 2019.
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Imagem: Gilson Rego / CPT Santarém