Ele pode surgir como brecha real, diante de um governo de horrores, que multiplica atritos com seus próprios aliados. O grave é vê-lo como atalho para o vasto esforço de politização que continua a não ser feito pela esquerda
Por Antonio Martins, em Outras Palavras
Um sonho ronda as noites da esquerda brasileira, produzindo esperanças e sobressaltos: o do possível afastamento de Jair Bolsonaro, por impeachment (após múltiplos crimes de responsabilidade) ou anulação do pleito de 2018 (por financiamento empresarial proscrito pelo STF). Em alguns sites, as polêmicas se multiplicam. O que há algum tempo era incogitável, subitamente tornou-se objeto de debates intensos. Três fatores produziram esta mudança.
Primeiro, a nova guinada do presidente rumo aos confins da extrema direita. Em poucos dias, sua metralhadora giratória verbal vomitou contra os nordestinos, os indígenas, os aprisionados, a resistência à ditadura, a imprensa. Não foram apenas palavras: seus novos atos atingiram as universidades, os imigrantes, a segurança dos trabalhadores, os que lutam contra o trabalho escravo. Sérgio Moro, um de seus ministros mais implicados nas relações com a Casa Branca, ensaiou uma primeira tentativa de virar a mesa no caso Vaza Jato, destruir provas que o incriminam e expulsar do país o jornalista Glenn Greenwald. A empreitada fracassou e as ilegalidades que cometeu ficaram a nu – mas ele continua no posto, o Planalto repete ameaças e não se exclui a possibilidade de que trame uma reedição do Plano Cohen.
O segundo fator foi a consciência ampliada de que o país enfrenta um novo tipo de ameaça. Uma série de textos publicados nas últimas semanas, com repercussão importante nos círculos em que ainda se reflete sobre o país, permitiu compreender melhor certos processos recentes. José Luís Fiori e William Nozaki mostraram, com fartura de dados e fatos históricos, a relação entre o golpe de 2016, a eleição de Bolsonaro e a nova estratégia de Washington – que flerta abertamente com a manipulação eleitoral, a desestabilização de governos e as “guerras híbridas”. Pierre Dardot e Christian Laval chamaram atenção para a grande virada no projeto neoliberal, após a eleição de Trump: agora, sistema visa impor a lei do capital sobre todas as esferas da vida humana – e já se sente forte o suficiente para descartar a democracia e o direito. Dois textos de George Monbiot relacionaram (1 2) a ascensão de tipos claramente psicopáticos (Trump, Bolsonaro, Duterte), com uma fase em que o grande poder econômico mergulhou por completo no rentismo, na rapina, na concentração infinita de riquezas. Constatar o desastre não equivale a ser capaz de revertê-lo – mas tem, às vezes, papel mobilizador. Como diz o próprio Monbiot: agora “ao menos podemos começar a enxergar o tamanho do desafio”.
Os sonhos de afastar Bolsonaro foram alimentados, por fim, pela péssima repercussão dos últimos atos do presidente mesmo entre sua base de apoio. A OAB – inclusive um leque de seus ex-presidentes – defendeu à memória de Felipe Santa Cruz, o militante da resistência política de quem o presidente zombou. João Dória, o ambicioso governador de São Paulo, disfarçou todas as evidências ao dizer que “nunca” teve alinhamento com o ocupante do Planalto. Rodrigo Maia, o presidente da Câmara, defendeu Glenn Greenwald de forma explícita (embora recuasse parcialmente, mais tarde). A impressão negativa atingiu inclusive, ainda que de modo mais lento, o universo do grande poder econômico, que costuma fechar os olhos às brutalidades do presidente, porque espera ganhar muito com ele. Na quarta-feira, os jornais noticiaram, preocupados, a irritação do chanceler francês, que, apesar de encontro marcado há meses, esperou inutilmente por Bolsonaro, enquanto este gravava vídeo em barbearia. O acordo comercial União Europeia-Mercosul, já contestado, pode estar em risco, especulou-se. Pior, para a oligarquia financeira: e se este clima de instabilidade afetar a tramitação da “reforma” da Previdência, que ainda passará por uma votação na Câmara e tramitação sujeita a sobressaltos no Senado?
Se o presidente representa uma ameaça tão grande; se já compreendemos que seu projeto não mantém nenhum vínculo com a democracia; se ele corre risco real de enrascar-se em conflitos com o próprio sistema político, não é o caso de apostar em seu impeachment ou – ainda melhor – na anulação das eleições e convocação de novo pleito?
A resposta exige um exame mais agudo do que nos trouxe ao atual horror – e nos mantém atolados nele. O golpe de 2016 e a vitória de Bolsonaro são, também, o resultado de uma enorme perda de contato da esquerda com as mudanças políticas, econômicas e sociais do “novo capitalismo”. Este déficit produziu, após os breves “anos de ouro” do lulismo, uma paralisia. Por volta de 2010, quando os efeitos da crise internacional bateram forte no país, a esquerda no poder não teve recursos para buscar uma saída – mas também não os tivemos os que apontamos as insuficiências do projeto então instalado em Brasília.
O sonho e a posterior tragédia de 2013-2016 ilustram esta incapacidade. Foi na brecha aberta por ela (e também no recalque de uma sociedade ainda presa às feridas coloniais, é claro) que se ergueu a onda direitista.
Surgem agora as primeiras indicações de como esvaziá-la. A popularidade de Bolsonaro é mais baixa que a de todos os seus antecessores. O país afunda em desocupação e miséria, e o governo resta inerte. A sociedade e o sistema político exibem, apesar das ameaças, capacidade surpreendente de resistir à tendência protofascista. Vamos adquirindo consciência mais clara do desastre que nos atingiu.
É um promissor começo. Há enorme caminho pela frente. Ele exige voltar a tarefas há muito esquecidas. A defesa ativa da dignidade atacada das maiorias – trabalho, moradia, território, cultura, terra, saúde, educação, casa. A luta – indignada e alegre – dos estudantes e educadores, que será retomada dia 13, mostra que é possível. Além da resistência, os projetos. Como vislumbrar a sociedade brasileira, e o lugar do Brasil no mundo, nos próximos 30 anos. O que será da Amazônia, das metrópoles, das periferias, do sistema tributário, da democracia, das ferrovias e das relações afetivas? Além dos dois projetos conhecidos – o protofascista e o ultracapitalista – não há outros? Não seremos capazes de voltar a imaginar e propor o futuro sob outras lógicas?
O impeachment ou a convocação de novas eleições são, nesta perspectiva, algo como um prêmio de loteria. Não se pode descartá-los. Vale fazer uma fé, empenhada e persistente. Num mundo em que todas as velhas certezas ruíram, muitas reviravoltas são possíveis. Desprezar as chances que elas abrem seria tolo.
Mas como viver de loterias? Será trágico se a aposta num afastamento de Bolsonaro descair para mais uma ilusão vazia, nova aposta na sorte salvadora, velha autoilusão de que fomos apenas vítimas – e não temos um projeto a reconstruir.
Sim, o futuro está aberto. Mas não será possível preenchê-lo com saudosismo e melancolia.
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Colagem: Gabriela Leite