Liderança do Tapajós, ela abre a série da Amazônia Real sobre mulheres que lutam pela permanência dos direitos conquistados e contra os retrocessos ambientais, pautas da Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília
Por Maria Fernanda Ribeiro, no Amazônia Real
Brasília (DF) – Alessandra Korap, do povo Munduruku, tem chamado a atenção no movimento de mulheres indígenas pela bravura com que defende seu território e o seu povo. Um vídeo seu com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), durante o 15º. Acampamento Terra Livre (ATL), realizado neste ano em Brasília, ganhou as redes sociais ao denunciar a invasão dos territórios indígenas por madeireiros e garimpeiros, exigir a demarcação de terras, questionar a representatividade da ministra Damares Alves, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, denunciar a presença dos evangélicos nas aldeias e pedir respeito à cultura indígena e aos ancestrais.
“Ela [Damares] não representa nós, indígenas, porque os evangélicos estão entrando também na nossa terra para dividir o nosso povo, dividir a nossa cultura, e agora querem tirar a nossa alma. Quer tirar a nossa língua, a nossa alma e entregar para quem? Ela não conhece os indígenas. A Damares não sabe, a Tereza Cristina (ministra da Agricultura) não sabe”, discursa uma Alessandra emocionada. Na ocasião, a demarcação das terras indígenas estava subordinada ao Ministério da Agricultura.
Mas o protagonismo de Alessandra não é de hoje. Reconhecida pelo movimento indígena como uma mulher que se destaca cada vez mais por não esmorecer, é com ela que a agência Amazônia Real abre a série de reportagem Vozes que Não se Calam, que trará depoimentos não só de indígenas, mas de mulheres quilombolas, ribeirinhas e ligadas a movimentos que lutam pela permanência dos direitos conquistados e contra os retrocessos ambientais já anunciados pelo governo Jair Bolsonaro.
São mulheres dos estados do Pará, Maranhão, Mato Grosso e Amazonas, que atuam em suas comunidades pelo empoderamento feminino, pela ocupação dos espaços e pela igualdade e paridade entre os gêneros.
Alessandra está participando do Fórum Nacional das Mulheres Indígenas, que iniciou nesta sexta-feira, 9 de agosto, e estará na Marcha das Mulheres Indígenas, manifestação que acontecerá no próximo dia 13, em Brasília. No dia 14, as mulheres indígenas se unem às mulheres do campo, da floresta e das águas na Marcha das Margaridas. Os dois atos já são considerados a maior manifestação de mulheres da América Latina, com estimativa de reunir mais de 100 mil pessoas. O tema central será “Margaridas na luta por um Brasil com soberania popular, democracia, justiça, igualdade e livre de violência”.
Moradora da aldeia Praia do Índio, em Itaituba, no estado do Pará, a luta de Alessandra Korap é gigante pela garantia dos direitos dos povos indígenas e parece não ter prazo para terminar. O povo Munduruku, ao qual ela pertence, é um dos muitos que têm resistido contra a destruição de seus territórios. Eles lutam pela demarcação da Terra Indígena (TI) Sawre Muybu, no rio Tapajós, no sudoeste do Pará, e contra a instalação de hidrelétricas e outros grandes projetos que atropelam suas vidas e seu futuro, como a Ferrogrão, ferrovia que ligará Sinop (MT) a Mirituba (PA), com investimento inicial estimado em R$ 12,7 bilhões. O projeto visa consolidar o novo corredor ferroviário de exportação do Brasil pelo Arco Norte e segundo os estudos de Viabilidade Técnica publicados pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), o traçado da Ferrogrão impactará mais de 20 áreas protegidas, entre Terras Indígenas e Unidades de Conservação.
Em 2019, Alessandra deixou a aldeia de origem para morar no município de Santarém e cursar a faculdade de Direito na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Na conversa de Alessandra com a Amazônia Real ela fala sobre como é ser uma liderança mulher, as dificuldades em ocupar os espaços, a luta pela demarcação dos territórios e a necessidade de os governos ouvirem os povos indígenas. Confira os principais trechos de seu depoimento.
Mulher Guerreira
Sou uma mulher guerreira. Sempre estou no meio das reuniões dos caciques, dos jovens e gosto muito de estar com as crianças. A gente anda muito com os nossos maridos, com os nossos filhos e, por isso, nos consideramos como mulheres guerreiras e não como feministas. Atualmente a gente atua justamente para acompanhar os caciques, para acompanhar os guerreiros também. Queremos dizer sempre que as mulheres também podem estar à frente, não ultrapassando, não decidindo sozinhas, mas sempre com eles em diálogo para ver o que está acontecendo e onde. As mulheres precisam ter informação, as mulheres precisam estar presentes nas reuniões.
Antigamente não tinha isso. Eram só os caciques, as lideranças no meio da sala, nas conversas, nas assembleias; e a gente ficava só de olho, do lado de fora, ouvindo, sem poder dar opinião. A gente se perguntava por que não podia entrar e nem acompanhar de perto. Uma grande mulher que me incentivou foi a Maria Leusa, que é uma liderança do Alto Tapajós que está a frente do movimento das mulheres e que enfrentou tudo isso para ter respeito, para ser uma liderança. Comecei a acompanhá-la e também a acompanhar outras mulheres.
Defesa do território x grandes empreendimentos
Minha atuação sempre foi pelo território, pela demarcação da terra. Se o governo não demarca nosso território somos nós mesmos que temos que fazer a nossa defesa e fazemos isso incentivando os jovens a trabalhar com audiovisual, a manusear GPS e buscar autonomia para sempre decidir o que queremos. A gente busca muitos parceiros também, mas a decisão sempre foi do povo Munduruku e a nossa luta é muito contra as usinas hidrelétricas, a São Manoel e a Teles Pires, que ficam na divisa do Mato Grosso com o Pará.
A gente mora no sudoeste do Pará e vimos que os impactos não seriam só lá, que ia nos afetar também, mesmo que longe. E o projeto para a Bacia do Tapajós são 41 usinas hidrelétricas. E ainda tem a construção da Ferrogrão. E tudo ligado ao agronegócio. Mas a gente vê que essa é uma luta de todos, é uma luta dos índios, dos quilombolas, dos ribeirinhos e até mesmo quem mora nas cidades vai sentir os impactos. Mas nós é que vamos sentir diretamente.
“Precisamos ser ouvidos”
A gente briga muito, a gente ocupa, a gente faz manifestação, a gente cancela audiências quando elas acontecem na cidade, a gente vai lá e diz que queremos ser ouvidos. E isso porque as audiências que as empresas fazem duram praticamente oito horas e pronto, termina. Não é assim que funciona com a gente. Nossas reuniões têm que ser dentro da aldeia e as empresas precisam estar preparadas para ouvir o ‘não’ porque muitas vezes quando elas recebem o ‘não’ o que fazem é ultrapassar e massacrar os povos indígenas.
E a consulta dentro das aldeias não é só falar com os caciques. É consultar todo mundo: as crianças, as mulheres, os idosos, os pajés, os guerreiros, as guerreiras, os professores, os enfermeiros. Só na nossa região somos 14 mil Munduruku em mais de 140 aldeias. Então, as reuniões para as decisões desses mega empreendimentos não pode ser só de associação. A consulta não é só uma associação. O povo tem que ser ouvido. A associação é só um meio jurídico que está ali para nos representar. É isso que o governo não entende. Eles acham que é só chegar na minha casa e querer me ouvir, mas não vai adiantar. Tem que ouvir o povo e se o povo não entendeu, explica de novo.
Também tem que ter uma pessoa que vai traduzir e alguém que seja da nossa confiança, porque muitas vezes o governo quer enganar os povos indígenas e a gente não aceita. Enquanto nós não entendermos a reunião, não vai adiantar nada. Então, tem que fazer uma coisa que a gente compreenda e que eles nos ouçam quando dissermos que não. Quando a gente disser ‘não’ é para parar e pronto e não para querer enfrentar a gente.
Ameaça sempre sofro, mas nunca muito forte porque eu sou dessas pessoas que se me ameaça eu vou atrás. Então, é uma coisa que outros parentes já sofreram e eu vivo rodeada de pessoas que são ameaçadas o tempo todo.
Ocupar os espaços
A dificuldade que temos como mulher em ocupar os espaços são muitas. Começa desde o momento que a gente sai da aldeia, deixa nossas casas, deixa nossos filhos para falar em outros lugares, até em outros países. Muitas vezes, a gente sai sem deixar nada em casa porque é a mulher que pesca, que vai para a roça. Aí a gente deixa nossas casas e nossos filhos para ir falar sobre território, sobre os empreendimentos, falar da gente. Temos sim muitas dificuldades.
No começo, eu como mulher, ninguém acreditava que eu ia ser uma liderança e eu hoje sou muito respeitada por ter minha decisão; quando eu falo uma coisa eu sempre peço diálogo com meu povo. Se tenho dúvidas, me sento com eles, converso com eles, peço opinião, e isso eles viram que eu nunca vou ser sozinha, que sempre vou ouvi-los. Quando eu saí da aldeia para morar em Santarém e estudar, conversei com o cacique e avisei que ia morar na cidade e perguntei se poderia falar sobre território, sobre os empreendimentos ou deveria parar por aqui e só voltar a falar sobre isso quando eu voltasse para a aldeia. Ele olhou pra mim e disse que eu não podia parar de falar da nossa luta, do que está acontecendo.
“Você tem que continuar sendo do jeito que você é, seja forte. A gente vai entender que você saiu daqui não à toa, mas para estudar e ajudar a gente. Nunca mude, mesmo que vá para a universidade”, ele disse. E essa decisão do cacique foi muito importante para mim porque eu mesmo saindo teria dúvidas de como agir porque eu respeito muito a decisão deles. E eles me deram essa autonomia de falar um pouco. E eu estou aqui falando.
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Esta reportagem de Maria Fernanda Ribeiro faz parte da cobertura exclusiva da agênciaAmazônia Real da Marcha das Mulheres Indígenas e da Marcha das Margaridas, que acontecem dias 13 e 14 de agosto, respectivamente, em Brasília.
Alessandra Korap Munduruku. Foto: Alberto César Araújo /Amazônia Real