Um ciclo vicioso está matando a Amazônia para que você possa ir ao shopping no domingo

A Amazônia e o Cerrado não estão sendo incendiados sozinhos. Tem muito latifundiário por trás das queimadas. E tem muito consumidor por trás dos latifundiários

Por Guilherme Israel Kochi Silva*, em Justificando

É curiosa essa comoção com o que já vem acontecendo há décadas aqui na Amazônia.

O Pará registrou recorde no número de queimadas esse semestre. Em Rondônia, as queimadas em 2019 já começaram há meses e crianças e adolescentes estão sem poder ir às aulas em várias cidades por conta da fumaça, mas a mobilização nacional (e mundial) só surgiu quando o dia foi trocado pela noite na capital do consumo no Brasil. 

A Amazônia e o Cerrado não estão sendo incendiados sozinhos. Tem muito latifundiário por trás das queimadas. E tem muito consumidor por trás dos latifundiários. 

Hoje, no Brasil, mais de 90% da produção de soja é destinada à fabricação de ração para a criação de gado e para a pecuária. Sim, os animais que alimentam humanos precisam comer. E muito. Além disso, estima-se que para produzir um quilo de carne bovina são necessários 15 mil litros de água.[1]

Além da questão ética (que já deveria ser suficiente pra inibir qualquer ser pensante de ingerir restos mortais de outro animal), a produção e o consumo de carne são insustentáveis, ambiental e socialmente.

O carnismo, contudo, é só o canudinho de plástico no ambientalismo. A sociedade tem consumido cada vez mais e pior. Produtos ultraprocessados facilitam a vida de quem não tem tempo para outra coisa que não o trabalho. Roupas descartáveis satisfazem a ânsia de consumidores que não podem repetir um “look” na semana. Aparelhos eletrônicos previamente programados para se tornarem obsoletos garantem a produção e consumo contínuos de um bem que deveria durar uma vida inteira.

Do ano de 1500 para os dias atuais, “a população humana aumentou 14 vezes; a produção, 240 vezes; e o consumo de energia, 115 vezes”. [2]

Não são só as queimadas que estão sufocando a Amazônia. Para que se possa produzir tanto e cada vez mais, é necessário um aumento constante no fornecimento de energia elétrica e matéria-prima.

A construção da Usina Hidroelétrica de Belo Monte, em Altamira, no Pará, é diretamente responsável pelo desequilíbrio ecológico e social que ocorreu na região. O relatório apresentado pelo Ministério Público Federal, após Vistoria Interinstitucional realizada na Volta Grande do Xingu, na qual participaram, dentre outros, a Defensoria Pública do Estado do Pará, o Ministério Público do Estado do Pará, a Defensoria Pública da União, o Conselho Nacional de Direitos Humanos, o Fundo de Populações das Nações Unidas (ONU), a Embaixada da União Europeia no Brasil (EUR), o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Ambientais Renováveis (IBAMA), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o Movimento Xingu Vivo para Sempre, além de professores e pesquisadores, chegou a conclusões estarrecedoras. [3]

Segundo o documento, para a construção da usina foi necessário o desvio de 80% do curso da água do rio, afetando as comunidades locais, pertencentes a povos tradicionais, como ribeirinhos, pescadores artesanais, pequenos produtores de farinha, extrativistas e indígenas. Sem fonte de seu sustento e sobrevivência e ilhados pela impossibilidade de locomoção, as populações locais viram-se suprimidas de dignidade tão somente para a construção de um empreendimento que serviria para abastecer uma demanda crescente por consumo de bens e serviços variados, a milhares de quilômetros dali.

Para que as grandes cidades possam desfrutar de um agradável final de semana no shopping center, comunidades tradicionais inteiras tiveram que ser expulsas de casa.

Os crimes ambientais de Mariana (2015) e Brumadinho (2019) também seguem a mesma lógica. Os minérios extraídos pela Vale são tão demandados, porque há quem os consuma. Os setores industrial e da aviação civil são exemplos disso.

Não há almoço em churrascaria, nem viagem para o exterior que sejam inofensivos. Alguém tá pagando caro por isso tudo, mas infelizmente não poderá parcelar a conta no cartão de crédito.

Para HARARI, o capitalismo é como uma religião, com suas crenças, dogmas e venerações próprios. “Pouco a pouco, o capitalismo se tornou muito mais do que uma doutrina econômica. Hoje engloba uma ética – um conjunto de ensinamentos sobre como as pessoas devem se comportar, educar seus filhos e até mesmo pensar. Sua doutrina fundamental é que o crescimento econômico é o bem supremo, ou pelo menos uma via para o bem supremo, porque a justiça, a liberdade e até mesmo a felicidade dependem do crescimento econômico”. [4]

A ideia desse sistema está tão cativa na mente das pessoas, que muitos conseguem pensar num mundo sem florestas, mas não suportam imaginar viver outra forma de economia que não a capitalista.

Contudo, não é só a ganância do agronegócio, das mineradoras ou das hidrelétricas que está consumindo os recursos humanos e naturais do planeta. A indiferença da maioria quanto aos efeitos que seus estilos de vida geram no meio ambiente também é sintomática e já é hora de cada um assumir sua responsabilidade nos desmandos ambientais. Só assim será possível a reversão do atual cenário.

É urgente não só a modificação na forma como pensado o consumo, mas a criação de alternativas ao modelo atual, que sejam econômica, social e ambientalmente sustentáveis.

Condutas naturalizadas como o consumo excessivo de produtos e serviços, consumo não pautado pela ética (seja de natureza ambiental, seja de natureza social), incentivo a grandes corporações ou setores, seja através do consumo direto de seus bens, seja pelo aporte financeiro (aquisição de ações em bolsas de valores, investimentos em Letra de Crédito Imobiliário, investimentos em Letra de Crédito do Agronegócio etc) favorecem a concentração de riquezas, que por sua vez permitem o exercício, por tais setores, de influência política nas mais diversas áreas do Estado, alcançando os três Poderes (Judiciário, Legislativo e Executivo), permitindo o sufocamento de pequenos produtores e que crimes e desastres ambientais – como os que vêm se sucedendo na Amazônia – ocorram.

É um ciclo vicioso que precisa ser quebrado. Estado, grandes empresas e consumidores, cada um tem a sua parcela de culpa neste círculo.

Por essas razões é que o veganismo como movimento político, o ecossocialismo, a agroecologia e outras alternativas ao atual sistema, devem ganhar espaço no debate político e social, a fim de que possam ser vistos como modelos saudáveis e necessários à preservação do meio ambiente.

Indignar-se é bom, mas não é o suficiente. É preciso que todos percebam o quão responsáveis são nas modificações ambientais que o globo vem sofrendo. Há dinheiro de todos nós nas queimadas, nos desmatamentos e nos conflitos do campo.

Uma mudança profunda é necessária, não só na forma como é pensado o consumo na atualidade, mas na maneira como é concebido o estilo de vida moderno e em como a existência de cada um de nós pode impactar positiva ou negativamente na vida de todos. Diz-se que tudo na vida é uma questão de escolha. Hoje podemos escolher salvar a Amazônia.

*Defensor Público do Estado do Pará, com atuação na mesorregião do Marajó.

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