“Não se faz revolução no conforto”, diz liderança do Movimento Negro

Antonieta Luísa Costa, presidente do Instituto de Mulheres Negras de Mato Grosso (Imune), falou à Pública sobre a Amazônia negra, identidade racial e governo Bolsonaro

Por Thiago Domenici, Agência Pública

A quinta filha de Geraldo Henrique Costa e Angela Costa tem hoje 52 anos. De fala firme e contundente, Antonieta Luísa Costa, conhecida como Nieta, é uma das principais vozes do movimento negro em Mato Grosso.

Única mulher entre os irmãos, aprendeu desde cedo a fazer “os enfrentamentos” contra o racismo cotidiano. Nieta atribui ao pai, seu Geraldo, conhecido defensor da causa negra em Cuiabá, a força que a impulsionou na sua trajetória como militante, educadora e feminista negra. “Tive uma sorte de ter em casa esse respaldo pra preservar a minha identidade e me autoconhecer. Mesmo assim, com meu pai falando tudo isso, a sociedade me mostrava outra coisa.”

Numa conversa franca nos intervalos de um evento em Brasília no mês passado em que se discutia ativismo na Amazônia, a presidente do Instituto de Mulheres Negras de Mato Grosso (Imune) falou com a Agência Pública sobre sua trajetória, governo Bolsonaro e a noção de pertencimento do negro em relação à floresta – “A gente não discute essa Amazônia negra. Na verdade, a gente não acha que pertence a ela”, diz.

Para Nieta, não basta ser negro, tem que ter consciência negra. Não basta ser negro, tem que ir para a luta. “Não tem como eu, Antonieta, uma mulher preta, cabelo pixaim e nariz chato, passar despercebida porque todo mundo sabe que sou preta. E, se eu não sei, a sociedade sabe. E ela sabe e escolheu o meu lugar nessa sociedade; e é um lugar que não quero. Porque o meu lugar é o lugar que eu escolher. O meu turbante é a minha coroa.” A seguir, os principais trechos da entrevista.

Conte um pouco sobre a sua trajetória.

Cursei o ensino fundamental na escola pública. Conclui o fundamental até o ensino médio e, como sou muito falante, gosto das palavras, fui fazer magistério, mas eu não tinha pensado no processo educacional. Não tinha pensado em ser professora. Quando a gente é criança, a primeira coisa que a gente falava: “O que você vai querer fazer? Ser professora”.

Como você chegou lá?

Como mulher adolescente, negra, a minha adolescência sempre foi muito complicada, vivia na linha abaixo da pobreza, mas com os meus pais hiperconscientes. O meu pai era um superpai. A trajetória da educação na minha família começou desde antes com os meus avós. Meu pai foi da primeira turma de ciências contábeis da Universidade Federal de Mato Grosso [UFMT], e o meu tio se formou em letras. E eu vivia nesse clima. O meu pai dizia: “Estou dando o caderno, o lápis e vocês podem fazer disso muita coisa. É o que tenho para oferecer porque o meu pai não tinha isso para oferecer para mim. E eu cheguei à universidade. Vocês já têm muito mais do que eu”. Eu convivia diariamente com a discriminação, e tem coisas que marcam a vida da gente.

Como o quê?

Em Cuiabá, lembro que o ser negra entrou em contato comigo aos 7 anos. Fui com o meu irmão comprar pão perto da minha casa. Pedimos leite e uma quantidade de pão francês. E uma mulher falou pra mim e pro meu irmão: “Sai daqui. Xô. Sai daqui, negro. Eu não vendo pão para negro”. E foi batendo com a mão e botando a gente pra fora. Meu irmão, que sempre foi muito sensato, sério, saiu segurando a minha mão enquanto eu chorava. O meu pai perguntou quando chegamos em casa. Ele contou. Meu pai pegou a gente e voltamos lá. E essa senhora, mulher do dono da mercearia, correu e se escondeu quando o meu pai chegou. O marido dela falou: “Ah, Geraldo desculpa. Ela faz essas coisas. Eu não gosto”. O meu pai falou: “Chama ela pra entregar o pão na mão dos meus filhos”. Ela apareceu: “Ah, eu tava brincando”. E entregou o pão e o leite pra gente.

Qual o papel do seu pai na sua educação?

Ele sempre foi muito envolvido com as lutas populares e, num encontro sindical em São Paulo, ele conheceu uma galera do movimento negro. Ele ficou apaixonado pela causa. Quando ele chegou desse encontro, a primeira coisa que fez foi tentar reunir os grupos locais e fazer discussão. A própria Igreja Católica do Mato Grosso criou a Pastoral do Negro. Nesse processo a gente sempre o acompanhou.

Você começa a adquirir consciência política logo jovem…

Bem jovem. A gente sempre sofreu todas as formas de discriminação. Eu, por ser mulher negra e gorda. Nunca tinha ouvido falar de gordofobia. Então, ser mulher negra, gorda, de família empobrecida era uma dificuldade para mim. Porque, assim, o que era belo pra mim? O belo para mim era o branco. As pessoas de cabelo liso eram bonitas.

O racismo é interessante: ele entra nas famílias negras e não se percebe a porta na qual ele entrou. O que aconteceu na minha família não é diferente das outras – tinha um histórico de casar com branco para melhorar a raça. Tem aquela coisa de “você não pode usar muita roupa colorida que não fica bom”. Aqueles tipos de preconceitos que a sociedade vai colocando pra você e, principalmente, de ser o negro pacífico, bonzinho, de passar a ideia de que você é bom, de que você é calmo. Eu não aceitava. Eles falavam: “Aquela filha do Geraldo é danada”. Então, dessa frase da criança danada, passei pra adolescência danada. Meu pai estimulava a autoestima e o conhecimento. “Você pode, vai lá e faça. O seu cabelo não é ruim, ele fez mal pra quem? Seu cabelo é diferente. Você é bonita, sim.” Tive uma sorte de ter em casa esse respaldo pra preservar a minha identidade e me autoconhecer. Mesmo assim, com meu pai falando tudo isso, a sociedade me mostrava outra coisa.

Você chegou a ter contato em que momento com as histórias do movimento negro fora do Brasil?

Pra mim chegou mais ou menos na década de 1980. Lembro que nós, no Mato Grosso, fizemos milhares de assinaturas para a liberdade do Mandela. Contra o apartheid. Então a gente participou desse movimento. Foi a partir da luta de Mandela que a gente também começou a entender nossa luta. Mas tinha outros, o Martin Luther King, o Malcolm X… Eu sempre fui pro enfrentamento nessa coisa da discriminação. Nunca fui de silenciar. E aí você ganha fama de bocuda. O processo de desqualificação das pessoas que estão no movimento social é muito forte e começa cedo – “Não vamos levar em consideração o que ela fala” –, tirando o seu lugar de fala.

Mas você diz a sociedade ou…?

A sociedade de um modo geral… Enquanto você falava tudo aquilo que eles concordavam, era legal. Mas quando você mexia nas feridas… E falar de racismo é mexer na ferida.

O Instituto de Mulheres Negras de Mato Grosso significa o que para você?

O nosso foco é no Mato Grosso. Lá, nós fazemos as nossas atividades, as nossas rodas de conversa. Surgimos porque não somos nós que resolvemos dizer que as mulheres negras sofrem mais violência. O Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] aponta que as mulheres negras na região Centro-Oeste é que estão em pior estado de exclusão. O Mato Grosso é um estado onde 62% da população é negra e afrodescendente. Então, o Imune tem papel de poder lutar em prol de uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais inclusiva. Mas, principalmente, a gente quer poder mostrar que não é na igualdade que a gente cresce, e sim nas diferenças. E viva a diferença!

Entender que o ser diferente é um ser que contribui na construção de uma sociedade que vai poder se reconhecer; e hoje a nossa sociedade não se reconhece porque, quando eu não reconheço os pares, não me reconheço. Então, é nessa perspectiva o nosso trabalho.

De 2002 pra cá, o grande avanço do Imune foi fazer com que as mulheres negras tivessem voz. E hoje a gente tem uma discussão efetiva no estado sobre a questão das mulheres negras.

Mato Grosso faz parte dos chamados estados Amazônia Legal. Como é a relação da mulher negra com esse pertencimento?

A minha leitura é de que o Brasil precisa conhecer a Amazônia. Essa questão de pertencimento tem que vir por meio do conhecimento. Dentro dos estados – e no Mato Grosso – a gente não discute essa Amazônia negra. Na verdade, a gente não acha que pertence a ela. A gente acha que só o indígena está dentro da Amazônia. Eu sempre gosto de discutir o lugar… e a Marcela Bonfim foi muito feliz em retratar a Amazônia negra em suas fotos. Eu fui saber desse meu pertencimento à Amazônia há uns dez anos. E essa falta de informação ainda permeia dentro do nosso espaço. No nosso estado, por exemplo, a gente precisa dizer que fazemos parte da Amazônia a todo momento. É hipocrisia a gente achar que todo mundo sabe a nossa história. As pessoas não conhecem, as pessoas falam do lugar delas pra mim; e elas precisam conhecer o meu lugar. Eu conheço a história indígena? Não conheço totalmente, porque só no meu estado existem 43 etnias indígenas. As pessoas ficam falando a todo momento como se conhecessem, como se a Amazônia fosse uma coisa só. O meu pai sempre dizia pra mim: “Nunca fale do que você não sabe”.

Você falou, numa conversa anterior, que “a gente precisa trazer a Amazônia pro Brasil. Que a Amazônia está distante no Brasil”. O que você quer dizer com isso?

Quero dizer que, se os brasileiros conhecessem a Amazônia, isso não estaria acontecendo – toda essa invasão, essa violência contra a natureza, contra os povos da floresta. Não estaria acontecendo porque eu saberia da importância que aquilo tem pra minha vida como brasileira. O brasileiro precisa conhecer a Amazônia, saber da importância da Amazônia, para não ser massa de manobra, não ser manipulado por um processo político que quer destruir, que só pensa em ganhar dinheiro, em explorar o outro.

Você acredita em alguma mudança real nesse sentido?

Não dá para fazer revolução no conforto. Fico pensando que as pessoas entram em um ar condicionado, sentam, colocam uma mesa. Ele tem telefone, ele tem celular, e fica ali. Estou tirando dessa minha fala os pesquisadores, as pessoas que estão lutando para uma melhoria. Essa minha fala são para as pessoas que assumem os cargos políticos e ficam dizendo: “Ó, vamos fazer isso. Ah, vai dar certo”. Como é o caso do governo federal. Falo também das pessoas que “ah, vou só postar aqui, vou colocar ali e pronto”. Mas não vem pra luta, não sai na rua. Não dá pra gente ficar só postando e dizendo que não está bom. Às vezes, a gente tem que ir lá e falar; no seu espaço de trabalho fazer uma fala. Ir pro seu espaço de diversão e fazer uma fala, porque a mudança não se dá sozinha, ela se dá no coletivo. A gente é partícula. Faça alguma coisa.

Gostaria que você falasse sobre a questão da identidade e da estética da mulher negra no processo de conhecimento da sua própria história?

É o que a gente diz para o nosso povo: “Você tem que saber quem você é porque o outro sabe quem você é”. Então, quando a gente fala de identidade, não tem como eu falar só de estética. Porque o turbante, para mim, tem uma história. O meu turbante é a minha coroa. Então, eu não posso falar que vou colocar um turbante, sair por aí e pronto. Não. O turbante tem representatividade. Então, quando a gente fala de identidade negra, vem a questão da estética afro. Não, pra mim não basta ser negro. Tem que ter consciência negra. Não basta ser negro, tem que vir pra luta. E ter consciência negra é isso. É mais que um tom de pele. E a identidade é o nosso portal. Não tem como eu, Antonieta, uma mulher preta, cabelo pixaim e nariz chato, passar despercebida porque todo mundo sabe que sou preta. E, se eu não sei, a sociedade sabe. E ela sabe e ela escolheu o meu lugar nessa sociedade; e é um lugar que não quero. Porque o meu lugar é o lugar que eu escolher. Preciso entender o meu papel enquanto mulher, enquanto negra, enquanto trabalhadora em uma sociedade racista, excludente, machista e que tem todas as formas de preconceito. Como vou me posicionar?

A gente não pode ter o pensamento do colonizador. Eu não tenho que ser uma negra pacífica. Eu não posso ser uma negra consciente porque a consciência me deixa reflexiva, me torna uma pessoa cheia de porquês e isso incomoda e eu não posso incomodar. Não! Toda minha história de resgate é através da minha memória preta. É a minha memória preta que me faz estar na luta, acordar todo dia e, mesmo cansada, mesmo cheia de problemas de saúde, mesmo não tendo grana, digo: “Não, eu preciso e hoje eu vou fazer diferença como a cada dia eu faço a diferença”. Se cada um de nós acordar nessa perspectiva de fazer a diferença para a mudança, a gente cresce. É por isso que eu gosto de discutir a identidade.

Como é que você tem visto o governo Bolsonaro?

Bom, Bolsonaro… sempre aprendi com a minha família que a gente não deve dar ibope a encardido, né? Mas, enfim… Se temos que falar do presidente do país, porque não é o meu, não foi a minha escolha. Mas falar do governo atual do Bolsonaro é falar de desgoverno. E o que é um desgoverno? É tudo aquilo que quer desconstruir todas as formas de luta e inclusão dos povos. Aquela coisa antiga da política do mando. Bolsonaro implementa uma política do medo, do medo dele. Entendeu? Porque todas as pessoas aliadas a esse governo são pessoas medrosas. E nós não somos pessoas medrosas. A gente não tem medo. Quando falo do medo, é o medo do conhecimento. Quando a pessoa aponta uma ideia de conhecimento, mandam matar. “Vou mandar matar, vou exterminar, silenciar.” E o silêncio é a morte. Então assim: o medo da fala é a morte de uma sociedade mais justa. É a morte dos direitos humanos. Tem muita gente em sono profundo nessa política implementada pelo governo Bolsonaro. E qual o impacto disso para o meu povo? Para a minha sociedade?

Qual é? Me diga.

O impacto dessa política é: dou 80 tiros e depois vejo quem é. O genocídio da população negra. O genocídio da juventude negra. A violência ampliada contra mulheres negras. O processo de aumento do racismo no Brasil. É a liberdade que o governo deu para as pessoas nos matar. A fala de um líder de governo dizendo que o quilombola pesa uma arroba? A fala de um líder de governo dizendo que o meu filho é tão bem-educado que não vai casar com uma negra? Eu vejo uma sociedade hipócrita que não percebe isso. Como nós chegamos a esse nível? Como diz o Martin Luther King: “O que incomoda não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. E é isso que me incomoda no governo Bolsonaro. Vêm pessoas dizendo que são evangélicos, que são de Jesus. Mas que Jesus é esse? Eu ouso falar: que porra de Jesus é esse? Eu cresci no berço da religião católica e conheci o Jesus que tinha os dez mandamentos. E o primeiro é amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a si mesmo. Eu cresci com um Jesus que a Bíblia pregava que ele dava a outra face, sabe? Eu cresci vendo um Jesus que pregava, que lavava o pé de uma prostituta. Eu cresci vendo um Jesus que pregava, em todos os momentos, não matarás, no testamento. Entendeu? Não roubarás. É um governo que rouba a nossa dignidade. Que rouba a nossa luta. Que rouba a nossa história. Que rouba a nossa paz. É um governo de sangue porque é um governo que mata. É um governo que permite a morte. E permite o pior: a morte cultural de um povo.

Imagem: Antonieta Luísa Costa, conhecida como Nieta, é presidente do Instituto de Mulheres Negras de Mato Grosso – Marcela Bonfim/Agência Pública

Comments (1)

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

11 − dez =