Dezoito membros do MPF também recomendam que a Sesai não se intrometa em decisões sobre controle de ingresso de terceiros em terras indígenas, o que é atribuição da Funai
Ministério Público Federal no Pará
O Ministério Público Federal (MPF) enviou, nesta quarta-feira (6), recomendação a autoridades responsáveis pelo atendimento à saúde do povo indígena Zo’é, no oeste do Pará, para que não promovam qualquer alteração na forma de implementação da política diferenciada de saúde a esse povo e para que não substituam profissionais das equipes multidisciplinares sem antes proceder à consulta livre, prévia, informada e culturalmente adequada aos indígenas, nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Assinado por 18 membros do MPF de todo o Pará e endereçado à titular da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, Silvia Nobre Waiãpi, e ao coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena Guamá-Tocantins (Dsei-Guatoc), Stanney Everton Nunes, o documento também contém recomendação para que a Sesai não se intrometa na tarefa de controlar, monitorar ou impedir os ingressos e permanências de pessoas no interior das terras indígenas inseridas na área de circunscrição da Justiça Federal de Santarém. A intromissão da Sesai nessa área representa usurpação de competência legal da Fundação Nacional do Índio (Funai), destaca o MPF.
Assim que receberem oficialmente o documento, os destinatários terão dez dias para cumprirem a recomendação e informarem o MPF sobre o cumprimento. Se essas medidas não forem adotadas, ou se forem respondidas de modo insatisfatório, o MPF poderá levar o caso à Justiça Federal, por meio de ação civil pública com pedido judicial de cumprimento das providências obrigatórias, e de punição civil, penal e por improbidade administrativa dos agentes públicos responsáveis pela omissão.
Risco a trabalho aprovado pelos indígenas – No fim de outubro, a Sesai e do Dsei-Gatoc publicaram ofícios com alteração da escala de atendimento de profissional médico aos Zo’é sem que os indígenas tenham sido consultados de forma livre, prévia e informada. Para os 18 membros do MPF em todo o Pará que assinam a recomendação, essa determinação ignora as manifestações dos indígenas sobre o atendimento à saúde que vinham recebendo, e “poderá representar o desmantelamento da equipe de saúde, bem como o desmonte de uma longa e exitosa prestação de assistência à saúde dos Zo’é, de forma injustificada”.
O sucesso do atendimento à saúde dos Zo’é nas últimas duas décadas resultou não apenas na retomada do crescimento demográfico (177 pessoas em 2003 para 310 pessoas em 2019), mas em indicadores de saúde exemplares, se comparados aos de outros povos da região e até mesmo do Brasil, ressaltam os membros do MPF.
Segundo o MPF, entre esses indicadores exemplares está o reduzido número de mortalidade nos últimos 20 anos (30 óbitos, média de 1,5 óbito por ano); a reduzida mortalidade infantil (quatro óbitos em 19 anos, sendo dois desses óbitos decorrentes de malformações cardiopulmonares incuráveis); o ínfimo número de mortalidade materna; a inexistência de desnutrição, doenças sexualmente transmissíveis, diabetes e hipertensão arterial; o baixo número de remoções para saída pela primeira vez ou por tratamento único (3,6 referências por ano).
O sucesso da política de assistência à saúde dos Zo’é, segundo os membros do MPF, também se manifesta na realização de procedimentos de média/alta complexidade na própria Terra Indígena (dados entre 2015 e 2019), a exemplo da realização de 69 cirurgias, 43 ultrassonografias, 422 exames de sangue e de urina, 111 tratamentos, 754 consultas médicas e especializadas. A realização desses procedimentos na própria Terra Indígena evita a exposição dos Zo’é a doenças infectocontagiosas na cidade, e representa significativa economia de recursos com remoções, aponta o MPF.
O documento registra, ainda, que a política de assistência à saúde dos Zo’é também tem sido reconhecida por respeitar as práticas tradicionais de saúde desse povo indígena, em plena concordância com os objetivos do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena e respeitando os usos, costumes e tradições dos indígenas, nos termos do artigo 231 da Constituição Federal.
Equipe com experiência reconhecida – O MPF considera que entre os fatores que contribuem para o êxito dos indicadores de saúde dos Zo’é estão a estabilidade e o preparo da equipe de saúde que presta assistência aos indígenas, cujos membros falam a língua dos Zo’é e tiveram a escala de trabalho pactuada entre a antiga Fundação Nacional de Saúde (Funasa), a Funai e o próprio povo Zo’é, tendo em vista não apenas a efetividade do atendimento à saúde, mas também a perspectiva da “intervenção mínima”, de modo a respeitar, na maior medida possível, as práticas tradicionais de saúde dos próprios indígenas. “O médico que atua na Terra Indígena (TI) Zo’é trabalha no local há 17 anos, longevidade rara na saúde indígena, considerando a rotatividade e as dificuldades na lotação de médicos in loco em outras áreas, inclusive atendidas pelo mesmo Distrito Sanitário Especial Indígena Guamá-Tocantins, o que vem sendo acompanhado por este Ministério Público Federal”, ressaltam os procuradores da República.
Os próprios Zo’é, em seu Plano de Gestão Territorial e Ambiental, registraram que “quando os profissionais da saúde já se acostumaram ao trabalho conosco, não queremos que sejam trocados. Aqueles que já sabem falar a língua Zo’é não devem ir embora”, informa o documento do MPF. A recomendação também registra que, a convite da Funai e dos indígenas, equipe do MPF esteve na TI Zo’é nos últimos dias 28 e 29 de outubro, ocasião em que os indígenas afirmaram e reafirmaram aos representantes da Procuradoria da República em Santarém, com veemência, a satisfação deles com a equipe multidisciplinar de saúde e a escala por ela executada. Nessa ocasião “os indígenas afirmaram, na própria língua, que ‘a equipe cuida muito bem deles e não aceitam qualquer troca dos profissionais, que já trabalham com eles há muito tempo, falam a língua Zo’é, sabem como vivem os Zo’é, são amigos dos Zo’é. E que ficarão muito bravos se houver mudança’”, informa o MPF na recomendação.
Durante essa mesma visita do MPF à TI, os indígenas foram enfáticos em afirmar que qualquer proposta de mudança precisa ser conversada com eles antes, e que a equipe multidisciplinar de saúde nunca falhou no atendimento, inclusive nas ocasiões em que o médico coordenador da equipe não se encontra em área, situação em que as enfermeiras e técnicas de enfermagem se comunicam, via internet, com o médico, que prontamente as orienta, e, se a demanda não for facilmente solucionável, o médico imediatamente se desloca para a TI. Segundo os relatos dos indígenas ao MPF, eles estão contentes com a conduta da equipe multidisciplinar de só retirar os pacientes da TI em situações excepcionais, e de possibilitar que os pacientes retornem de Santarém para as aldeias logo que essas situações são resolvidas.
Usurpação de atribuições da Funai – Além de alertar para a necessidade de manutenção do atendimento à saúde indígena de acordo com os padrões e com a equipe responsável, o MPF aponta, na recomendação, a obrigação de a Sesai não usurpar atribuições que não são de competência da secretaria. Segundo o MPF, o Dsei-Guatoc publicou ofício em que anunciou a adoção de medidas de monitoramento dos fluxos de não-indígenas em aldeias. “Tal determinação não se insere dentre as atribuições legais da Secretaria Especial de Saúde Indígena – que restringe-se à assistência de saúde – e, cumulativamente, representa usurpação da competência legal da Fundação Nacional do Índio, no que diz respeito à proteção e fiscalização territorial, bem como controle do ingresso de terceiros às terras indígenas”, adverte o MPF.