Como os PMs são formados para a incivilidade

Obrigados à disciplina militar, eles aprendem a valorizar hierarquia e submissão, em vez do diálogo. Muitos empregam a mesma lógica contra a população. Maus tratos e humilhações, nos quartéis, produzem brutalidade nas ruas

Por Almir Felitte*, em Outras Palavras

A estrutura fortemente hierarquizada dessa sociedade militar “mapeada” é uma de suas características mais marcantes, bem como um dos grandes motivos do conflito entre o militar e o mundo civil. Pode-se dizer que tal característica está presente durante toda a vida do militar, esteja ele em plena atividade ou momentaneamente fora de serviço.

Inicialmente, importante frisar que o caráter fundamental da hierarquia do corpo de oficiais militares é o de fracionamento de um grupo de pares. Isso quer dizer que, ainda que em posições diferentes, todos seus membros são oficiais e compartilham do espírito militar. Por isso, tal hierarquia pode ser classificada como “quantitativa”, vez que possibilita a ascensão para todos seus membros, a partir de uma igualdade inicial de condições, considerando que o alto escalão da instituição tenha passado pelo mesmo processo de formação dos oficiais em posições inferiores.

Tal conceito se opõe ao modelo “qualitativo”, no qual não há possibilidade de ascensão nem uma situação inicial de igualdade de condições. Por tais características, o aspecto quantitativo na hierarquia militar demonstra que, apesar de os oficiais serem aqueles que pressionam e punem os cadetes em seu processo de formação, eles constituem, também, um modelo do que os cadetes pretendem se tornar1.

Esta lógica hierárquica militar é repassada aos aspirantes ao oficialato desde o início de sua formação. Na Diretriz Geral de Ensino da Polícia Militar de São Paulo, por exemplo, no artigo que define os fundamentos da política de ensino, seu parágrafo 3º determina que “a disciplina, a hierarquia, e a divulgação dos valores éticos e deontológicos devem ser revigorados nos cursos, estágios e nos treinamentos”. Nesse mesmo sentido, o Regulamento da Academia da PM paulista, aprovado pelo Decreto Estadual nº 52575/70, regula que “o corpo discente fica sujeito ao regime disciplinar da Corporação e ao regime disciplinar escolar estabelecido no R.I.A.P.M”.

Assim, a formação dos oficiais militares segue a mesma rigidez dos regimes disciplinares a que estão submetidos os oficiais já formados, incluindo sanções aplicadas aos casos de faltas caracterizadas por indisciplina ou insubordinação.

Wright Mills2 considera a rigidez dessa formação uma tentativa de romper os laços que o então aspirante a militar tem com a sociedade civil, viabilizando a implantação de uma nova estrutura de caráter neste indivíduo. Para o autor, esse rompimento possibilita um processo que ele chama de “domesticação” do recruta, sendo atribuída a ele uma posição de inferioridade no mundo militar ao qual ele acaba de ser inserido. Neste contexto, isolado da antiga vida civil, o recruta não só passa a associar mais facilmente a realidade e a perspectiva militares, como, também, projeta uma trajetória de sucesso dentro de sua hierarquia. Assim, dentro desta nova concepção de sucesso, Mills afirma que até mesmo o amor-próprio do recruta passa a ser dependente do reconhecimento que ele recebe de seus pares e, principalmente, de seus superioresEle aponta, ainda, para certa glamorização do mundo militar, que é apresentado ao recruta como “um dos mais altos círculos nacionais”.

Dessa forma, o isolamento da sociedade civil facilita a inserção do recruta nessa nova sociedade, altamente hierarquizada e norteada por valores novos e, muitas vezes, contraditórios com sua vida antiga. Este aspecto, para Mills, traz como consequência negativa um embate entre estes dois mundos distintos. Isso por que, através da ótica civil, os militares são definidos como “peritos na organização e utilização da violência” e o militarismo como um meio para a realização de políticas públicas de finalidades civis. Esta definição, por outro lado, denota a tendência que têm os militares de deixarem de ser apenas meios, para buscarem suas próprias finalidades.

Essa pretensão de prestígio não constitui uma ameaça de domínio militar em si, podendo ser, inclusive, uma forma de compensação pela renúncia ao poder político, se limitada à própria hierarquia militar. Nesse contexto, aliás, ela é característica importante da disciplina militar e, até mesmo, fonte de satisfação para os que seguem tal carreira. Quando exercida fora desse limite, porém, Mills assevera que tal pretensão se torna uma ameaça e um indício do crescente poder da elite militar, constituindo-se na base de sua política. Assim, o autor conclui que “a chave para a compreensão da posição de prestígio é o poder. Os militares não podem prever uma situação de relevo entre os civis, se não tiverem, ou pelo menos não aparentarem ter, poder”3.

O risco ao qual o autor aqui se refere seria o do contexto hierárquico ultrapassar os limites da estrutura militar, repassando este conceito ao resto da sociedade, tal qual houvesse uma hierarquia, também, entre as sociedades civil e militar. Assim, as instituições militaristas seriam mais que meios para a construção de uma finalidade pública, passando a ter papel decisório na política de um Estado. Este é um processo que ocorreu com muita força na América do Sul, a partir da segunda metade do século XX, e impulsionou as ditaduras militares que controlaram países como Brasil, Argentina, Chile e Uruguai nesse período.

Apesar da redemocratização, no Brasil, este processo ainda é facilmente percebido nas instituições estatais, conforme demonstrado anteriormente. Maior prova de sua ocorrência é a incumbência de parte da Segurança Pública, qual seja o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, a um órgão de caráter militar. Aliás, analisando-se o quadro nacional, pode-se perceber que o distanciamento e a rígida hierarquia, típicas do militarismo, têm como consequência diversos atritos entre policiais militares e a sociedade civil.

Isso porque a ideologia militar afeta não só o comportamento do indivíduo dentro da própria instituição, mas, também, o modo como ele se relaciona com outras instituições e a população de um modo geral. É o que ensina Mills, ao analisar que, no mundo militar, “debate e persuasão não são premiados: obedece-se ou ordena-se, e os assuntos, mesmo sem importância, não devem ser resolvidos pelo voto. A vida no mundo militar, portanto, influencia o espírito na apreciação de outras instituições, bem como da sua” 4.

Ao passar por um processo de reformulação de seu caráter em um contexto de isolamento, o policial militar sofre com o supracitado processo de “desmapeamento” ao ser reinserido na sociedade civil, agora como profissional. Por conta desse processo, o policial militar acaba reproduzindo conceitos tidos como corretos e naturais dentro de sua instituição em uma sociedade que não está subordinada a esses valores.

Nesse sentido, conforme afirma Túlio Vianna5, “o policial aprende que o valor máximo não é o respeito aos direitos, à lei, e sim a hierarquia, a obediência”. O professor aponta, ainda, para a violência presente no treinamento dos policiais, atentando para a prática de rituais típicos do militarismo que retiram a individualidade de quem a ele se submete através da humilhação. O policial que sofre esta violência simbólica por parte de seus superiores, então, acaba por reproduzir essas mesmas violências contra a sociedade civil, a qual, agora, seguindo sua lógica hierárquica, está a ele subordinada. Abaixo do civil, dentro desse conceito construído pelo miliciano, somente mesmo os ‘bandidos’, os ‘subversivos’ e os ‘manifestantes’, vistos, em sua visão maniqueísta, como inimigos.

Assim, o perigo preconizado por Mills, concernente à extrapolação dos valores militares para a sociedade civil, resultando em um crescimento do poder militar sobre esta, pode ser claramente constatado nas políticas de segurança pública do país, através das quais os responsáveis pela preservação da ordem pública atuam como se estivessem em posição hierárquica superior à sociedade civil. Tal comportamento é evidenciado não só nos números da violência policial na repressão ao crime, já demonstrados anteriormente, como também nas recentes atuações repressivas por parte da polícia militar contra as manifestações de movimentos sociais.


* Este texto foi originalmente publicado como capítulo de artigo científico de minha autoria na Revista Brasileira de Ciências Criminais:
FELITTE, Almir Valente; PONZILACQUA, Marcio Henrique Pereira. O impacto social da organização militar da polícia. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 132. ano. 25. p. 193-217. São Paulo: Ed. RT, jun 2017.

1 CASTRO, C. O Espírito Militar: um antropólogo na caverna. 2 ed. rev. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2004.

2 MILLS, W. A Elite do Poder. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1962.

3 MILLS, op. cit., p. 269-270.

4 Ibidem, p. 286-287.

5 ROUSSELET, F. Túlio Vianna. A militarização não é boa para o policial e é péssima para o cidadão. Revista Fórum, 2 jul. 2013. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/07/tulio-vianna-a-militarizacao-da-policia-nao-traz-beneficio-nenhum-nao-e-boa-para-o-policial-e-pessima-para-o-cidadao>. Acesso em: 05 jun. 2014.

*Advogado e membro dos Policiais Antifascismo

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