O sangue indígena e a hipocrisia europeia. Por Barbara Arisi

No Amazônia Real

Três da tarde do dia 1º de novembro, baixo a chuva, nos encontramos na frente ao palácio na Praça Dam, em Amsterdã, nos Países Baixos, para participar do ato público convocado por lideranças da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Dinaman Tuxá grita: “Sangue Indígena”. Nós, como em uma tragédia grega, em frente ao Palácio do rei da Holanda, em coro, respondemos: “Nenhuma Gota a Mais”.

Para nossa imensa tristeza e enorme raiva, ficamos sabendo mais tarde, naquela noite, que havia sido assassinado Paulino Guajajara, jovem liderança que trabalhava como guardião da Terra Indígena Arariboia, Maranhão. Ou seja, era um membro do grupo “Guardiões da Floresta”, formado por homens e mulheres indígenas que, sem receber nenhuma espécie de ajuda ou salário, colocam em risco suas vidas a fim de prestar serviço como agente florestal para a proteção dos seres da mata e do território indígena. Fazem o trabalho que a Polícia Federal tem o dever de fazer. Mas, como sabemos, o governo brasileiro abandonou os indígenas e a natureza a sua própria sorte e a seu próprio azar.

Enquanto gritávamos na praça holandesa, pedindo atenção para a extrema vulnerabilidade a que estão submetidos os povos indígenas e as florestas no Brasil, Paulino saíra para caçar, mas terminaria sendo assassinado por um tiro disparado por um de cinco madeireiros que ilegalmente cortavam e roubavam árvores da Amazônia. O CIMI emitiu nota responsabilizando o governo brasileiro pela sua morte.

A sensação de que se grita em meio a um deserto de hipocrisia da política europeia tomou conta de mim. Para piorar, a data era véspera de celebrar finados, o dia dos mortos. Ainda ignorantes sobre mais esse assassinato, nossas faixas e cartazes, escritos em inglês, holandês e português, eram exibidos pelo nosso culturalmente diverso grupo de ativistas em frente ao obelisco da Dam, na direção da avenida Rokin e de frente para o Palácio. “Sangue Indígena: Nenhuma Gota a Mais”. 

Duas mulheres levantam uma faixa do grupo ambientalista Extinction Rebellion; outros três jovens seguram outra escrita com letras nas cores do arco-íris: “Não há orgulho num planeta morto”. Algumas pessoas trazem faixas pedindo democracia ao Brasil. Um senhor alto entrega-me um panfleto “Stop Ecocide”, Pare o ecocídio. Ele explica em holandês que o grupo Stop Ecocide é formado por advogados que tentam aprovar no Tribunal Internacional de Haia uma lei que considere ecocídio como um crime atroz, ou seja, crimes contra o meio ambiente cometidos por governos e/ou empresas poderiam ser passíveis de serem julgados e punidos pela corte internacional, junto aos que já são julgados na Corte Internacional como os crimes de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Embora não compreenda português, o advogado procura acompanhar o que está sendo dito pelas lideranças indígenas. Traduzo os discursos de nossas lideranças para ele e outra senhora holandesa. Logo, Kretã Kaingang conta ao advogado holandês que a delegação indígena esteve também essa semana apresentando queixa crime contra o governo brasileiro no tribunal de Haia.

Dinaman Tuxá espanta nosso frio quando começa a chamar uma ciranda: “Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com formiga…”. “Não assanha o formigueiro”, respondemos nós, novamente em coro. Alberto Terena relata que a delegação da APIB organizou essa jornada pela Europa para denunciar o aumento do desmatamento e a violência contra os povos indígenas. Eles começaram pela Itália, onde participaram de atividades relacionadas ao Sínodo da Amazônia, respondendo ao chamamento feito pelo Papa Francisco.

“O incremento do agronegócio e a destruição da floresta que já ocorria nos governos anteriores no centro-oeste, nordeste e sul do país, aumentou muito no governo atual e chegou com mais violência agora na Amazônia. É isso que viemos denunciar na Europa”, explicou. A comitiva vem cumprindo uma agenda lotada de encontros com governantes e com empresárias e empresários a fim de pressionar para que parem de comprar produtos oriundos de áreas de conflito socioambiental. 

No dia anterior a nosso protesto, dois membros da comitiva indígena haviam se reunido com o primeiro-ministro da Holanda, Mark Rutte. Kretã Kaingang apresentou a Rutte a situação de genocídio que os indígenas estão sofrendo no Brasil. O líder indígena informou ao primeiro-ministro que os povos originários repudiam o acordo Mercosul-UE (União Europeia). Kretã foi direto ao ponto e disse a Rutte: “Se você tocar a minha mão, vai estar ajudando a salvar o planeta, se tocar a mão do Bolsonaro vai destruir o planeta”, conforme relato publicado pela APIB. O primeiro-ministro da Holanda teria então dito que assinar qualquer acordo com o presidente Bolsonaro “é arriscado”. 

Além desse encontro, Kretã Kaingang e Alberto Terena estiveram reunidos com empresários da Friesland Campina, maior produtora de laticínios da Holanda e uma das maiores consumidoras de soja brasileira na Europa. Afinal, os Países Baixos são o segundo maior país importador de soja brasileira, fica atrás apenas da China.

Como informa uma reportagem publicada em setembro pelo jornal Volkskrant como parte da grande repercussão internacional por conta das queimadas na Amazônia, dois terços da soja brasileira importada para a Europa entra no continente a partir de portos holandeses e será transportada daqui para outros países da União Européia.

A Holanda ocupa também a quinta posição como mercado “amante da soja brasileira e seus produtos derivados”, ainda segundo a reportagem, cujo título é “Seria a Holanda, junkie por soja, co-responsável pelas queimadas na Amazônia?”. O jornal Volkskrant informa também que, desde 2015, os Países Baixos desejam importar soja que seja produzida de acordo com os padrões de sustentabilidade descritos pela “Round Table on Responsible Soy (RTRS), mas que isso não ocorreu. Apenas a soja e seus derivados que são consumidos no mercado interno da Holanda atendem a esse padrão, mas a soja que entra por seus portos para os demais mercados de outros países europeus não.

De acordo com informações da APIB, nos encontros realizados na Holanda, os representantes da organização indígena “apresentaram aos responsáveis da empresa [Campina] as consequências do agronegócio para as comunidades indígenas e para o meio ambiente: desmatamento ilegal de milhares de hectares e acirramento de conflitos”, além do envenenamento de rios e solos devido aos agrotóxicos usados.

Entre os dias 4 e 6 de novembro, a comitiva participa, em Bruxelas, na Bélgica, de audiências na sede do Parlamento Europeu, com o vice-presidente da Comissão Europeia, Franciscus Timmermans, e com o diretor de Assuntos Internacionais de Agricultura e Desenvolvimento Rural da União Europeia, John Clarke. A intenção, como explica Dinaman Tuxá é perguntar aos membros do Parlmento Europeu se “eles realmente vão financiar mais esse processo genocida que o estado brasileiro está promovendo, pois esse acordo irá promover ainda mais violência contra nós, povos indígenas”.

Em 2017, escrevi para a Amazônia Real, relato um evento no parlamento europeu no qual representantes do povo Guarani Kaiowá denunciavam como no Mato Grosso do Sul a violência do agronegócio já era insuportável, como provocava tantas mortes, e pediam aos deputados europeus para pressionar a fim de que as leis garantam que o bloco econômico não importe produtos de regiões brasileiras onde há conflito socioambiental.

Em Bruxelas, no mesmo Parlamento Europeu, dia 4 de novembro, Ângela Kaxuyana disse que a madeira que os consumidores na Europa compram é a madeira que vem sendo roubada e provoca assassinatos, como o de Paulino Guajajara. Ela falou que os acordos comerciais negociados entre a Europa e o Mercosul são negociações que envolvem o “nosso sangue indígena”.

Ângela alertou os dirigentes europeus sobre a responsabilidade para evitar que os produtos do Brasil possam ser importados sem a garantia de não serem oriundos de regiões onde há crime sendo cometido. Do modo como está redigido, o acordo não garante que os produtos importados não sejam provenientes de áreas de conflitos, de territórios indígenas e de áreas de preservação, “onde nossas mulheres e nossos jovens vêm sendo assassinados, uma responsabilidade direta de quem os consome”.

“Vocês estão negociando nossas almas, nossos espíritos e o nosso sangue quando negociam a importação de soja e madeira. (…) Viemos para fazer um chamado, para que quando vocês olhem para trás, lá não esteja escrito, na história, que vocês participaram da dizimação dos povos indígenas no Brasil”, expôs Ângela aos membros do Parlamento. 

Como bem frisou Sônia Guajajara, no ato público em Amsterdã, se os europeus estão preocupados com ar puro, com comida de qualidade, com o nível do mar e a mudança climática, eles deveriam escutar o que os indígenas estão falando, pois nosso objetivo é o mesmo: evitar a devastação e a poluição do planeta.

Barbara Arisi é jornalista formada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) e antropóloga com mestrado e doutorado pela Universidade Federal de Santa Catarina. Como repórter trabalhou no jornal Zero Hora. Fez estágio doutoral como antropóloga pela Universidade de Oxford, no Reino Unido. Nasceu em Porto Alegre (RS) e morou em Foz do Iguaçu (PR), Florianópolis (SC), São Paulo (SP) e Manaus (AM), Amsterdam, Maastricht e Hoorn (Holanda) e em Londres, no Reino Unido. É professora concursada pela Universidade Federal da Integração-Latino Americana, em Foz do Iguaçu (PR). É também pesquisadora visitante na Vrije Universiteit Amsterdam, onde estuda manejo de resíduos sólidos (plásticos e orgânicos).  Atualmente mora com a filha em Hoorn. No Brasil, trabalhou na campanha do Greenpeace Amazônia pela criação da Reserva Extrativista de Porto de Moz e da Verde para Sempre, no Pará, em 2003. Há 14 anos faz pesquisas na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, sendo que em 2006 e 2009 recebeu financiamento da Capes e do CNPq. Em 2011, produziu um diagnóstico sobre saúde no Vale do Javari para o Instituto Socioambiental (ISA) e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI).

A fotografia que abre este artigo é da manifestação “Nenhuma Gota a Mais” com a lideranças indígenas brasileiras em Amsterdã, Holanda. Foto: MídiaÍndia.

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