Corpo de Demilson Ovelar Mendes foi encontrado na quinta-feira, poucas horas depois do crime em uma plantação de soja, a cinco quilômetros da aldeia Tekoha Jevi, em Guaíra, onde ele vivia com mãe e irmãos; parentes relatam ameaças
Por Priscilla Arroyo, em De Olhos nos Ruralistas
O indígena Demilson Ovelar Mendes, de 28 anos, era considerado uma pessoa tranquila. Vivia com a mãe, dois irmãos e uma irmã na aldeia Tekoha Jevi, uma das quatorze localizadas no município de Guaíra, no oeste do Paraná. São comunidades tradicionais que abrigam famílias da etnia Avá-Guarani.
Na quinta-feira (14), Mendes saiu no fim da tarde com destino à Vila Eletrosul, bairro que fica a um quilômetro e meio da sua casa. De acordo com Anatalio Ortiz, um dos líderes da Tekoha Jevi, ele estava em um bar quando, por volta das 17 horas, foi abordado por dois rapazes de moto. “Demilson foi visto pela última vez conversando com essas pessoas”, diz Ortiz.
A polícia encontrou o corpo cerca de três horas depois, a quinhentos metros do bar, no meio de uma plantação de soja, com marcas de pedradas e pauladas. “Por volta das 20 horas, avistamos viaturas e uma ambulância passar em direção à plantação de soja”, conta Ilson Gonçalves, cacique da Tekoha Y Hovy, aldeia mais próxima do local onde aconteceu o crime. “Não imaginamos que se tratava de um assassinato de um dos nossos”.
Gonçalves ficou sabendo do assassinato na sexta (15) pela manhã, quando a polícia o procurou para pedir ajuda na identificação da vítima. “Mandamos a foto do corpo de Demilson corpo para todos os parentes que tínhamos contato até que, por volta de meio dia, conseguimos identificar”. Ele considera estranho a polícia ter encontrado o corpo muito rápido. Mendes foi morto no fim da tarde e, por volta das 20 horas, já tinha sido localizado. “Podemos entender que alguém chamou a ambulância e a polícia, uma vez que o local do delito não foi na rua, à vista de todos”, avalia. “Ou seja, há testemunhas, embora ninguém tenha dito o que viu”.
De acordo com um indígena que prefere não se identificar, Mendes fora acusado por um branco de ter roubado a sua bicicleta, e por isso tinha sido ameaçado de morte. “No entanto, ele tinha um problema físico, só conseguia andar de muletas ou com a sua própria bicicleta adaptada”, afirma. “Acho difícil que tenha cometido algum roubo”.
Na opinião de Ortiz, não havia motivo aparente para alguém querer fazer mal à vítima. “Era um rapaz tranquilo, que pouco falava, não tinha namorada e nem filhos”, diz. O corpo foi encaminhado no domingo para o Instituto Médico Legal (IML) de Toledo e liberado no mesmo dia para o enterro na aldeia Tekoha Jevi. A família fez um boletim de ocorrência e o caso está sendo investigado. Por enquanto, não há suspeitos.
FAZENDEIRO AMEAÇA PARENTES DA VÍTIMA
Um grupo de indígenas da aldeia Tekoha Y Hovy promoveu uma ocupação no lugar da morte de Mendes. Eles improvisaram uma barraca e colocaram faixas para marcar o lugar do crime e manifestar o desejo de que a justiça seja feita — ou seja, que o assassino seja apontado e punido.
No entanto, houve uma violenta retaliação. Na manhã desta segunda-feira, quando Gilberto Kunomi Reko e seu tio, Wilfrido Benitez Espindola, se aproximaram do local para manter a ocupação, avistaram fumaça. O fazendeiro que arrendou aquela plantação tinha colocado fogo nas faixas e no barraco.
Quando os dois se aproximaram do local, foram recebidos com ameaças. O latifundiário apontou uma pistola para a cabeça de Reko e disse que não tinha ocorrido crime nenhum naquele local, e que se eles insistissem em colocar outra faixa, seriam mortos. O fato foi registrado em um boletim de ocorrência.
INDÍGENAS EVITAM SAIR SOZINHOS À NOITE
O município de Guaíra tem 37 mil habitantes; 2 mil são indígenas da etnia Avá-Guarani. O fato de não terem as terras oficialmente demarcadas os coloca em constante alerta. Eles vivem em catorze aldeias nas margens do Rio Paraná, sem acesso à água potável e à educação. Estão, literalmente, cercados por fazendas de monocultura de soja e milho.
Para ter acesso às políticas públicas, os Guarani precisam ter a posse oficial das terras. O processo de demarcação foi iniciado em 2009 pela Fundação Nacional do Índio (Funai), mas está suspenso. Diante do cenário, os indígenas são hostilizados e recebem constantes ameaças de capangas dos latifundiários da região. “Toda semana somos coagidos de alguma maneira”, afirma Ortiz. “Eles querem nos expulsar daqui”.
Os indígenas não entendem o que motivou Mendes a sair de casa ao entardecer. O cacique da Tekoha Y Hovy, Gonçalves, conta que sofreu um atentado há três semanas:
— Um carro passou e disparou dezenas de tiros em direção à minha casa. Sofremos preconceito e violência constantemente. Por isso, os guarani evitam sair sozinhos à noite.
Não raro, as investidas se traduzem em danos físicos. Em novembro do ano passado, o indígena Ava-Guarani Donecildo Agueiro, de 21 anos, morador da aldeia Tekoha Tatury, sofreu um atentado a tiros quando deixava reunião com a Coordenação Técnica Regional da Funai. O encontro tratava de processos de licenciamento de duas linhas de transmissão que passam em Guaíra. Como consequência do atentado, Agueiro ficou tetraplégico.
“Não podemos chamar o que acontece em Guaíra de conflitos”, afirma Clovis Brighenti, professor de história da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) que acompanha de perto a situação dos indígenas. “Os Guarani estão sendo massacrados pela ação dos fazendeiros”.
As ofensas não se originam somente dos latifundiários. Parte da população também trata os indígenas com antipatia, pois a desinformação em relação ao processo de demarcação faz alguns moradores acreditarem que podem perder suas casas quando o território ancestral for reconhecido.
“Nesse contexto, somente o fato de ser guarani é motivo suficiente para estar vulnerável a violência verbal ou física”, analisa Brighenti. “O conflito fundiário é o pano de fundo para o exercício de racismo e xenofobia”.
Até a condição indígena dos Avá-Guarani é questionada, como relata Brighenti: “Parte da cidade nutre a crença de que eles são paraguaios e invadiram. O que não faz sentido. Seus ancestrais viveram ali. A cidade se chama Guaíra, nome de um antigo cacique Guarani”.