A ressignificação da reforma agrária diante da brutalidade e complexidade da economia local

por Claudio Dourado de Oliveira*

Há dez anos a Comissão Pastoral da Terra (CPT) produzia um documento intitulado “Para outra Compreensão e Ressignificação da Reforma Agrária” com uma profunda análise da crise do projeto de reforma agrária do Estado. Naquela carta, a CPT apresentava os processos de violência expropriatória a partir do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC); da Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana (IIRSA); das mineradoras e do serviço dos que produzem para exportação, como os latifúndios empresariais de monocultivo de cana, soja, eucalipto, dentre outros. Para a CPT, estes conflitos com o Estado e com o capital eram os principais fatores de ameaças aos territórios, mas isso também apresentava possibilidades de ressignificação da Reforma Agrária a partir das novas relações socioambientais (gênero, interculturalidade e biocentrismo) e com o sagrado.

Evidentemente que os conflitos atuais são muito mais complexos. O processo colonial fez do ‘boi o seu soldado’, ‘empalmou conflitos com suas boiadas’ e construiu no imaginário do vaqueiro a cultura latifundiária, a exemplo das festas espalhadas pelo país, que inspiram toda a política de conquista e de expansão da relação posse e propriedade, do coronelismo da política de Estado, levantando uma casa coberta quase sempre de palha, instalando uns currais, introduzindo os gados, apossando de três léguas de terra e estabelecendo a fazenda. Essa relação de posse e propriedade produziu um latifúndio arcaico e uma distribuição desigual da terra. Nesse contexto, as montanhas se tornaram o lugar de fuga do povo negro e dos indígenas das garras dos “patrões” e da opressão, formando seus quilombos, aldeias e o que chamamos hoje de comunidades tradicionais. O pé de serra e as margens dos rios se tornaram o refúgio da violência por sua localização estratégica e a possibilidade de produção. Com o tempo, esse povos consolidaram-se em seus territórios sagrados, avançando para a terra prometida, longe dos olhos dos coroneis, e formaram essa grande diversidade do povo brasileiro.

Esses povos estavam sujeitos a fundir no tempo histórico da sociedade ocidental, e a ideia de reforma agrária no Brasil parte desse pacto conciliatório, de modernização e eficiência no campo, entre o capitalismo industrial, o sistema político/jurídico e os sindicalismos. Segundo Ariovaldo Umbelino em entrevista ao IHU, em abril de 2009, os dois princípios básicos ainda se mantinham: a) o país possui os maiores latifúndios que a humanidade já registrou. Então, existe uma questão fundiária não resolvida; b) e o descumprimento da função social, mesmo que não dependemos de importação de alimentos, a produção é injusta, quem produz alimentos são os pequenos proprietários. Entre os grandes, a propriedade privada da terra está submetida à especulação e à produção de commodities, muitas vezes desrespeitando as leis trabalhistas e as leis ambientais, enfim, não só descumpria a função social da terra, como punha em risco a segurança e a soberania alimentar do país. Ariovaldo previa que o país, refém do sistema da dívida pública e com o governo Lula fazendo concessões de recursos.

financeiros públicos para o setor do agronegócio, poderia ter, mais cedo ou mais tarde, um problema de insegurança alimentar.

O certo é que o pacto conciliatório foi corroído pelo capital especulativo. Enquanto o negócio do sistema bancário era vender o dinheiro que o banco tinha, o setor financeiro passou a vender justamente o que não tinha, apropriando dos territórios tradicionais e expulsando as comunidades. Atualmente, o capital especulativo sucumbe os sindicatos, fragiliza os direitos sociais básicos, concentra a riqueza com a extração de recursos locais, intensifica a pobreza e o racismo, deslocando pessoas para locais sem perspectivas de dignidade, nem de retorno e os governos frágeis, agem em privilégio de uma pequena burguesia global. Nesse sistema, as pequenas burguesias e as burguesias nacionais tradicionais deixam de ser importantes para o sistema maior, trabalhadores e consumidores têm desempenhado um papel cada vez menor nos lucros de muitos setores econômicos e os oprimidos, em sua maioria, foram expulsos e sobrevivem a uma grande distância de seus opressores – ser invisível.

Como resistência ressurgem o que Antonio Carlos Walkmer chama de novos sujeitos sociais e a construção plural de direitos. Parte deles são comunidades que se deparam com os conflitos sociais e encontram na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que recomenda aos governos, dos países membros, a assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito à sua integridade. A última esperança em continuar no campo, mas com grande acúmulo de saberes, autonomia e capilaridade política. A partir da auto-afirmação, com base na família ampliada e não com base na família unicelular, no conhecimento tradicional para a reprodução dos biomas – “não há defesa da floresta sem os povos da floresta”-, nas ecologias culturais onde cada ecossistema é visto como culturalmente adaptado pelo modo de vida das comunidades, que revelam condições de segurança alimentar, de dinamização das economias locais e regionais, e de cuidado do meio ambiente com ativos ambientais relacionados aos espaços e tempos da natureza e da ação humana, de forma particular, em cada território.

Os movimentos sociais de luta pela Reforma Agrária e pelo acesso à terra que sempre  tiveram uma importância política no Brasil forçando o Estado a colocar na agenda política a realização da Reforma Agrária, da educação, da saúde e de tudo aquilo que qualquer cidadão por direitos sociais também vem perdendo sua capilaridade, mas a reforma agrária continua atualíssima e faz parte do processo de redução da violência no campo, exatamente porque não está resolvida a questão agrária. A distribuição de terras, mesmo que significativa em termos numéricos, não foi suficiente para mudar a mentalidade latifundiária do povo. Necessita-se de uma reforma agrária estrutural e decolonial com a decapitação desse imaginário – patriarcal, machista, etnocida, homofóbico, genocida e mercantilista.

Segundo a publicação da CPT Conflitos no Campo Brasil 2018, nos anos de 2015 e 2016 tiveram 69 Projetos de Lei (PL) que ferem os povos do campo. As ameaças mais frequentes nos últimos anos são, contra a reforma agrária, com 49 PL’s; a regularização dos territórios indígenas e quilombolas, com 37; 18 projetos para liberação dos agrotóxicos e transgênicos; 16 ameaças à soberania do território nacional e 14 propostas de repressão aos movimentos

sociais. Só em 2015 tivemos 35 Projetos de Lei contra a natureza; 44 de ameaças às Terras Indígenas; 40 de flexibilização aos licenciamentos ambientais; 36 de liberação de agrotóxicos e 24 propostas em benefício da mineração. Só nos anos de 2014 e 2015 foram 33 PL’s contra os povos indígenas.

Diante disso, exige-se um novo olhar, uma ressignificação da luta pela terra, a partir das territorialidades, das teias, das redes, das questões de gênero, da ancestralidade, das cosmovisões e do sagrado. Estes elementos formam a unidade do povo brasileiro. Uma nação plural de mãos dadas com as grandes Deusas (Terra e Água), negadas pelo patriarcado justamente por ser incorrompível e inegociável, que configuram, nessas novas identidades, em territórios sagrados geradores de vida e que movimentam as forças místicas transformadoras mais que qualquer ação humana, seja ela política e/ou jurídica.

Esse contexto obriga as organizações de apoio a perceberem as ações de Resistências, Retomadas e Reassentamentos (RRRs), tão presentes nas comunidades, como as últimas trincheiras territoriais contra a brutalidade e a complexidade da economia global assegurada justamente na propriedade privada e em um único modelo de família.

*Antropólogo, pós-graduado em Direito Agrário e agente da Comissão Pastoral da Terra na Bahia (CPT-BA).

Referências:

Walter, Carlos Porto-Gonçalves, Amazônia, encruzilhada civilizatória. Tensões territoriais em curso. 2018.

Cristo, Alvori dos Santos e Walter, Carlos Porto-Gonçalves. Estudo sobre a aplicação do conceito de fundo e fecho de pasto e das estratégias econômico-produtivas acompanhantes, Estado da Bahia – Brasil. 2019.

Imobiliárias agrícolas transnacionais e as especulação com terras na região do MATOPIBA, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. 2018.

Os custos ambientais e humanos do negócio de terras. O caso do MATOPIBA, Brasil. 2018.

Walkmer, Antonio Carlos. Conflitos agrários: seus sujeitos, seus direitos. Novos sujeitos sociais e a construção plural de direitos, 2015.

Quintero, J. Angel. Fazer comunidade. 2018.

SENA, Edilberto Francisco Moura. Uma revolução que ainda não aconteceu. A revolução da Cabanagem, um primeiro movimento popular exemplar, 2014.

Sassen, Saskia. Expulsões: Brutalidade e complexidade na economia global. 2016.

Para outra Compreensão e Ressignificação da Reforma Agrária, Racismo Ambiental, 2009. Disponível em: https://acervo.racismoambiental.net.br/2009/12/03/para-outra-compreensao- e-ressignificacao-da-reforma-agraria/. Acessado em: 05/11/2019.

Entrevista especial com Ariovaldo Umbelino, Instituto Humanitas Unisinos, 2019. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/21484-1-5-das-terras-no- brasil-sao-de-pessoas-que-nao-tem-documentos-habeis-legais-entrevista-especial-com- ariovaldo-umbelino. Acessado em: 05/11/2019.

NEVES, Juliana Brainer Barroso. COLONIZAÇÃO E RESISTÊNCIA NO PARAGUAÇU – BAHIA, 1530 – 1678, Recife. 2018.

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A       Corrupção       e        o       Sistema        da       Dívida,       2015.       Disponível        em: https://www.youtube.com/watch?v=rRQHG5kd-Q0. Acessado em: 05/11/2019.

Conflitos             no             Campo             Brasil             2018.             Disponivel              em: https://www.cptnacional.org.br/downloads/summary/41-conflitos-no-campo-brasil- publicacao/14154-conflitos-no-campo-brasil-2018. Acessado em: 18/11/2019.

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