Duas vidas do neoliberalismo na América Latina

Nos anos 70, modelo difundiu-se prometendo mais “liberdade”. Desigualdade evidenciou seu fracasso. Mas voltou e, mesmo esgotado, busca perpetuar-se pelo autoritarismo. Chile e Argentina mostram que nova onda pode ter fôlego curto

por Luiz Filgueiras, em Outras Palavras

1- Origem e difusão do neoliberalismo na América Latina

O neoliberalismo ganhou notoriedade, enquanto doutrina/teoria, logo após a Segunda Guerra Mundial, quando Hayek, Mises, Friedman, Stigler e Popper, entre outros, passaram a se reunir na Sociedade de Mont Pèlerin na Suíça (criada em 1947). Concebido em oposição ao socialismo e, mais diretamente, à socialdemocracia então em construção na Europa e ao New Deal nos EUA (Estado de Bem-Estar Social e políticas neokeynesianas), ficou “hibernando” por quase trinta anos. Durante os chamados “anos gloriosos” do capitalismo (e vigência da Guerra Fria), essa ideologia não orientou politicamente as ações do grande capital, então às voltas com a construção de um pacto social que servia de contenção ao “perigo comunista”.

No início dos anos 1970, com a crise do Fordismo e das políticas neokeynesianas, e com a retirada do grande capital do pacto socialdemocrata, o neoliberalismo saiu do ostracismo e ascendeu à condição de projeto mundial do capitalismo financeirizado e de política de governo (econômica e social). Primeiramente no Chile, quando da deposição do Governo Allende através de um golpe de Estado promovido na época, como de costume, pelos EUA e executado pelos militares com participação ativa de sua grande burguesia (1973).

Portanto, antes mesmo da Inglaterra de Margaret Thatcher (1979) e dos EUA de Ronald Reagan (1980), a primeira experiência neoliberal no mundo se deu na América Latina e já evidenciou o seu caráter autoritário, perverso e regressivo. Assim como Milton Friedman, que atuou diretamente em sua implementação, através dos “Chicago Boys”, Friedrich Hayek também em nome do “livre mercado” apoiou o regime e visitou o Chile duas vezes (1977 e 1981), sendo que na primeira teve uma audiência pessoal com o general-ditador Augusto Pinochet. Além de fazer, posteriormente, através de declarações públicas e cartas publicadas em jornais, a defesa da experiência que estava ocorrendo no Chile, segundo ele, de retorno ao “livre mercado”.

Na verdade, o pensamento político-filosófico de Hayek, um dos principais formuladores da doutrina neoliberal, confronta, no limite, a Democracia e o Estado de Direito. Essa é a razão objetiva do capitalismo contemporâneo, construído a partir da crise do Fordismo e da Socialdemocracia, ter resgatado esse pensamento nos anos 1970; pois o novo padrão de acumulação de capital construído, a partir de então, fica cada vez mais evidente, também confronta a Democracia e o Estado de Direito.

Explicitamente, é um pensamento que reivindica, antes de tudo, a liberdade (do indivíduo), mas que, em seu próprio desenvolvimento, se transmuta em uma ideologia autoritária: a liberdade, do indivíduo, é reduzida, fundamentalmente, à liberdade de empreender e dispor de forma absoluta da propriedade privada dos meios de produção (liberdade irrestrita para o capital); e a Democracia e o Estado de Direito só são efetivos se promoverem o “livre mercado”. Daí a conclusão de Hayek de que a Democracia só tem utilidade (concebida como um meio, um instrumento, e não um fim) se preservar a liberdade (concebida como o verdadeiro fim) conforme definida acima; daí também a sua assertiva de que a Ditadura não leva, inevitavelmente, à abolição da liberdade: “pode haver mais liberdade cultural e espiritual sob regimes autocráticos do que em certas democracias” (O Caminho da Servidão). Em suma, e no limite, para Hayek é o “livre mercado”, e não a democracia, que se constitui na condição essencial da liberdade.

Adicionalmente, e o mais importante, no que concerne ao seu contraste com a socialdemocracia e o socialismo, o neoliberalismo tem por princípio mais geral a crença de que a desigualdade é um valor positivo e imprescindível na constituição de uma sociedade democrática, pois é base da liberdade e da vitalidade da concorrência.

Após a primeira experiência no Chile, o neoliberalismo difundiu-se em toda a América Latina em ondas sucessivas nas décadas de 1980 e 1990: tempos de Menem na Argentina, Fujimori no Peru, Salinas no México e, por último, FHC no Brasil; experiências que, ao aprofundarem a dependência e a vulnerabilidade externa da região, e terminarem em graves crises cambiais e financeiras, promoveram a concentração da riqueza, o aumento da desigualdade e o crescimento da pobreza. Como consequência, durante os anos 2000 a reação contra o neoliberalismo na região se materializou na chamada “onda rosa”: espécie de socialdemocracia/neodesenvolvimentismo tardios e desidratados na periferia -, que se espalhou pela América do Sul: Chaves na Venezuela, Morales na Bolívia, os Kirchner na Argentina, a Frente Ampla no Uruguai, Correa no Equador, Lugo na Paraguai e Lula no Brasil.

2- Neoliberalismo, democracia e Estado de Exceção

Mais recentemente, após a crise geral do capitalismo de 2008 e, principalmente, a partir dos anos 2010 (a crise da Zona do Euro), o neoliberalismo, em uma versão mais fundamentalista, voltou com força total, apoiado agora no plano mundial e nas Américas em forças políticas neofascistas (mobilizadoras) e, quando necessário, cavalgando ações e golpes de Estado de novo tipo: executados através de “guerras híbridas” silenciosas, que desestabilizaram os países alvos a partir de dentro, com o uso de redes sociais na internet e tendo por protagonistas o Poder Judiciário, o próprio Legislativo e a mídia corporativa, com apoio direto dos EUA e de Igrejas Evangélicas fundamentalistas e internacionalizadas.

Essa nova modalidade de golpe de Estado, que consolidou o casamento entre neoliberalismo e Estado de Exceção (no limite o neofascismo), se evidenciou na tentativa (Venezuela em 2002) ou derrubada efetiva de governos eleitos democraticamente em vários países da América Latina: Honduras (2009), Paraguai (2012), Brasil (2016) e, agora, recentemente, Bolívia. Em todos os casos o elemento mobilizador, que catalisou em especial as classes médias, foram nossos velhos conhecidos, reiteradamente presentes em golpes de Estado na América Latina: a denúncia e o combate à corrupção e ao comunismo.

No entanto, essa nova onda neoliberal na região parece ter fôlego curto, em razão dos estragos cumulativos (concentração de renda, aumento da pobreza, desemprego, precarização do trabalho, insegurança etc.) que promoveu desde os anos 1980. A reação a ela iniciou-se no México em 2018, com a vitória eleitoral de Lopez Obrador; seguida de vitórias das forças democráticas nas eleições deste ano para Presidente na Argentina, Uruguai e Bolívia; além de eleições municipais na Colômbia. Adicionalmente, explodiram revoltas populares no Haiti, Honduras, Equador e Chile; todas contra governos de direita e as reformas e políticas neoliberais.

Os exemplos do Chile e da Argentina são paradigmáticos. No primeiro, 1% da população detém 33% da riqueza nacional; os sistemas de saúde, água e serviços básicos foram privatizados, assim como a previdência – transformada em um sistema de capitalização que resultou em aposentadorias, para os seguimentos mais pobres da população, com valores abaixo do salário mínimo do país. O objetivo da revolta em andamento, cujo estopim foi o aumento das passagens de metrô, evoluiu para a derrubada do governo, novas eleições e instalação de uma Assembleia Constituinte para a elaboração de uma nova Constituição – em substituição a atual promulgada em 1980, ainda sob o regime militar e a Ditadura de Pinochet.

Na Argentina, o fracasso do programa econômico neoliberal em curto período de tempo – queda do PIB, aumento da inflação, crescimento do desemprego e da pobreza absoluta – pavimentou a vitória eleitoral peronista. Como no Chile, a razão fundamental, e mais profunda, da oposição ao neoliberalismo é a extrema e vergonhosa concentração de renda promovida por suas reformas, privatizações e políticas econômicas e sociais. Tornou-se cada vez mais claro que os seus beneficiários são o imperialismo e o grande capital, em especial o capital financeiro e uma diminuta “classe média alta” – que constituem uma pequena minoria da população.

3- Conclusão

Depois de mais de quatro décadas, desde a sua primeira experiência no Chile, está evidente que o neoliberalismo não tem nada a oferecer à esmagadora maioria da população em qualquer parte do mundo, em especial na América Latina. A sua obra é sempre mais do mesmo e com as mesmas consequências econômicas e políticas: mais desigualdade, pobreza e instabilidade. Essa é a razão fundamental de sua associação, agora explícita, com forças políticas de extrema-direita e o neofascismo, cujo exemplo maior, na atualidade, é o Brasil; evidenciando claramente a sua necessidade de um Estado de Exceção para ser viabilizado. Portanto, a potencial tensão e oposição entre neoliberalismo e democracia, presente desde o início dessa utopia regressiva, se concretiza claramente na atualidade.

Em particular, nos países da América Latina, de capitalismo dependente, as suas burguesias cosmopolitas associadas ao imperialismo não conseguem e nem aceitam conviver com uma melhor distribuição de renda; a necessidade de superexploração do trabalho está entranhada, historicamente, em seu ethos de classe e na subjetividade de seus integrantes. Daí a sua vocação para o golpismo e o autoritarismo, que a história da América Latina não desmente e nem deixa esconder.

Em suma, o combate ao neoliberalismo pelas forças político-sociais democráticas e socialistas (no sentido amplo) passa hoje, necessariamente, pelo combate à extrema-direita, ao fundamentalismo religioso e ao neofascismo. Portanto, esse combate tornou-se mais difícil e complicado mas, em compensação, está-se combatendo um projeto já desgastado para amplas parcelas da população – que o vê como regressivo do ponto de vista econômico, social, cultural e moral. Um verdadeiro retrocesso civilizatório.

Foto: Augusto Pinochet e os “Chicago Boys” que assessoraram sua política econômica

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