“Heliópolis quer ser tratada como bairro, não somos gueto”, diz líder comunitária

Cleide Alves, presidente de entidade de moradores de Heliópolis, diz que violência é recorrente e que os bailes têm que ser tratados no âmbito da Cultura e não da Segurança Pública

Por Rute Pina, Agência Pública

No mesmo dia em que nove pessoas morreram em uma operação da Polícia Militar em Paraisópolis, outra ação policial, quase simultânea, resultou na morte de um homem em Heliópolis, zona sul de São Paulo. Além da data – a madrugada do dia 1º de dezembro –, os casos ocorridos nas duas maiores favelas da capital paulista têm a mesma origem: a dispersão e repressão a bailes funk pela Polícia Militar (PM).

Em ambos os casos, os policiais sustentam que tentavam localizar supostos criminosos quando agrediram e encurralaram jovens em vielas estreitas. Em Heliópolis, Alberto Góis, de 38 anos, morreu por choque hemorrágico após ter sido atingido por dois tiros, um no peito e outro na barriga, segundo o laudo do Instituto Médico Legal (IML). Por conta do ocorrido, o tradicional Baile do Helipa, que ocorre todos os sábados, foi suspenso no último fim de semana.

A liderança comunitária Antônia Cleide Alves, presidente da União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas), diz que ações policiais violentas contra as festas são corriqueiras. “Essa violência já se naturalizou tanto que esse jovem que morreu só foi visto porque aconteceram nove execuções em Paraisópolis”, disse em entrevista à Agência Pública. “O que estou querendo dizer é que isso acontece sempre. Em todos os finais de semana, a abordagem da polícia é dessa forma na nossa comunidade.”

A organização sem fins lucrativos encabeçada por Cleide, nome pelo qual ela é mais conhecida, é uma das principais representações de moradores e aglutina projetos sociais na comunidade. A entidade criou, por exemplo, o Observatório De Olho na Quebrada para produzir dados sobre e para a comunidade.

O que começou como ideia de mapear dados gerais sobre a favela, como a estimativa da população, resultou em números importantes sobre violência policial e a perseguição aos bailes funk. Segundo o Observatório, 75% dos jovens que frequentam as festas já presenciaram agressões ou outro tipo de violência cometidas por agentes em bailes.

Moradora do bairro desde 1972, Cleide afirma que bailes alvos das operações que deixaram dez mortos no mesmo dia devem ser reconhecidos como expressões culturais. “Nós, das favelas, queremos o poder público junto, mas não queremos ser criminalizados e jogados de lado. Não trabalhamos para ser gueto. Nós fazemos parte da cidade”, afirmou. Confira a entrevista na íntegra.

No mesmo dia em que nove pessoas foram assassinadas em um baile funk de Paraisópolis, uma pessoa foi morta em circunstâncias muito parecidas no Baile do Helipa. O que se sabe até agora sobre isso?

O que a gente sabe é que ele foi assassinado sem chances de se defender. E o relato de quem testemunhou foi que o sangue foi limpado. Não foi cano estourado, nada disso. Policiais limparam o sangue para limpar os vestígios [de] que ele foi assassinado.

E o que aconteceu é o que acontece todo final de semana: a polícia entra e, em vez de cumprir a lei [do silêncio] e falar com quem está organizando ou com quem está com som alto, eles vão para bater em quem está no baile. E isso é uma loucura. É uma aglomeração de 5 mil pessoas. Como você entra atirando? A gente não pode ser tratado com essa discriminação; uma atividade de expressão cultural não pode ser tratada com essa forma de discriminação.

Jovens vêm da região de Osasco, de Francisco Morato, não é somente de Heliópolis. Pelo levantamento que a gente fez aqui através de um projeto que temos com a Open Society, que é o Observatório De Olho na Quebrada, a gente descobriu que uma porcentagem de mais de 50% dos que vêm aos bailes são de fora da comunidade. E eles vêm porque querem dançar, se divertir.

E essa violência já se naturalizou tanto que esse jovem que morreu só foi visto porque aconteceram nove execuções em Paraisópolis. Ele não estava sendo visto aqui. O que estou querendo dizer é que isso acontece sempre. Em todos os finais de semana, a abordagem da polícia é dessa forma na nossa comunidade.

A gente quer discutir outras saídas para não precisar chegar da forma de criminalização, opressão, jogando bomba.

O governador João Doria afirmou que as ações policiais nos bailes iriam continuar, independentemente do caso de Paraisópolis, mas depois voltou atrás no discurso. E agora os 38 policiais envolvidos na operação serão retirados das ruas. Em Heliópolis, os três policiais envolvidos serão afastados…

O policial que vem aqui não vem da cabeça dele. Não é ele, ele tem um comando. Tem uma pessoa que deu ordem para ele entrar dessa forma. Então, claro que tem que punir quem faz a ação, mas também tem que responsabilizar quem mandou vir, quem são os comandantes responsáveis. Eu acho positivo que o governador tenha voltado atrás no discurso porque seria um absurdo ele compactuar com isso. Seria uma tragédia.

Você acredita que essa é uma resposta adequada ao ocorrido?

Eu quero que mude a política e o olhar para as comunidades. Temos que utilizar a lei para garantir os direitos das pessoas, não para criminalizar os jovens da periferia, jovens negros, e as ações culturais que temos. Espaços onde o funk e essas atividades possam acontecer têm que ser criados de uma forma que os meninos possam ir se divertir, e não arriscar sua vida. São jovens, às vezes menores de idade, que estão correndo riscos de todas as formas, da violência, do acesso ao álcool e drogas. Então, cabe à sociedade, ao Poder Público e à Justiça garantir um ambiente acolhedor, que não venha trazer consequência a esses jovens. Temos que propiciar um espaço de divertimento que seja de cultura. É necessário punir quem precisa ser punido, mas a questão é uma mudança de política.

Eu moro em Heliópolis desde 1972 e, para os moradores, [o baile] também é uma questão de reclamação. Tem gente que precisa dormir, ter um momento de descanso, assistir uma televisão. Às vezes a polícia pode até ir porque alguém ligou, mas, quando vai para lá, já vai como repressão. O que estou falando, então, é de um passo antes que precisa ser dado para não atrapalhar nem moradores que querem silêncio nem os meninos que têm direito de se divertir. A polícia já vem para violar os direitos daquelas pessoas e para bater.

Temos que sentar todo mundo e pensar em espaços destinados a esses bailes e atividades. Foi importante o Doria voltar atrás, mas a gente precisa que a prefeitura, governador, as pessoas que organizam os bailes funk, os movimentos de cultura pensem em saídas sem o olhar de criminalização e desdém. Inclusive, a polícia. A gente não está contra a polícia, que tem uma função importante na sociedade. Não é que estamos dizendo que não queremos mais polícia, mas contra a forma como ela aborda, criminaliza e olha para as pessoas locais [da comunidade] como bandidos. Por que, em outros bairros, também se faz isso [bailes] e é na favela que a PM entra dessa forma? Heliópolis quer ser tratada como um bairro.

Queremos ser vistos como parte da cidade. Somos 220 mil pessoas morando aqui, é a população de uma grande cidade do interior. Nós, das favelas, queremos o poder público junto, mas não queremos ser criminalizados e jogados de lado. Não trabalhamos para ser gueto. Nós fazemos parte da cidade.

Tanto em Heliópolis quanto em Paraisópolis, os moradores e testemunhas relatam versões bastante diferentes das versões oficiais, dadas pela polícia…

São desculpas. Eles acham maneiras, formas e histórias para culpabilizar as pessoas. Tanto em um caso como em outro. De novo, vou ressaltar: não é um caso isolado. Infelizmente foram nove jovens executados [em Paraisópolis]. Mas tanto aqui como em outras comunidades é dessa forma que somos tratados… Tem muitos casos aqui. Por exemplo, um menino negro que trabalha em um dos projetos nossos saiu com um dos nossos notebooks para ir em outro setor, dentro de Heliópolis mesmo, e ele foi abordado. A primeira coisa que a polícia achou é que ele, negro e com computador, era ladrão, que teria roubado. Ele teve que ligar o computador e mostrar senhas. Será que isso teria acontecido com uma pessoa branca com um notebook na mão? Eu acho que isso que não cabe mais.

Os dados produzidos por vocês sobre a perseguição aos bailes não foram reconhecidos pela Secretaria da Segurança Pública, que disse que “não comenta pesquisas cuja metodologia desconhece”. E a própria imprensa, a priori, comprou a versão oficial logo que ocorreram os dois casos naquele fim de semana. O que vocês têm feito para que essas versões de testemunhas e moradores sejam de fato ouvidas com o mesmo peso que as oficiais?

A gente teve que criar o projeto do Observatório De Olho na Quebrada exatamente por causa disso. Para saber o número de habitantes aqui. Alguns uns falam 220 mil, outros em 180… Ou, por exemplo, quantas mulheres são chefes de família aqui?

Essa morte só apareceu [nos jornais] porque foram nove em Paraisópolis. Se lá tivesse sido uma e aqui uma, não teria visibilidade. Não é nem nossa tarefa como organização sem fins lucrativos, como uma associação de moradores que nasceu para lutar e garantir que as pessoas tivessem onde morar aqui em Heliópolis. A gente não deveria ter a necessidade de ir atrás e montar um observatório para mostrar os números do que está acontecendo aqui. É uma forma que a gente tem para ser enxergados porque, sem isso, não somos nem vistos nem contados.

Muito se fala em “falta de espaços de lazer” para os jovens de favelas e periferias. Mas, ao mesmo tempo, o funk é uma expressão cultural que tem sido bastante perseguida, como você mesma contou, e não tem essa dimensão cultural reconhecida. Qual sua avaliação dessa escalada de perseguição aos bailes funk?

Na verdade, a história dessa perseguição aos bailes funk é longa. É muito discriminatório mesmo, mas a gente sempre teve essa questão, não é nova. Quando jovens se juntavam, na minha época, era com o hip hop, por exemplo. E também era criminalizado. Parece que o que nasce do povo só tem valor quando a classe média alta assume isso como cultura. Temos que deixar pessoas morrerem para sermos reconhecidos.

Tendo dito isso, não tem como negar que o funk é uma expressão cultural e nem podemos criminalizar. Eu acho que tem que se conversar para ver quais são as saídas utilizando o que já tem na lei e dando sentido, considerando as pessoas que organizam, a juventude que gosta. Aqui, por exemplo, não tem outro lugar para eles fazerem esses bailes que não na rua. E essa que é a questão, ocupar as ruas mesmo. Então tem que se pensar mesmo nesses espaços.

O funk aqui dentro também gera renda para as pessoas, incomoda alguns também. É preciso conversar para chegar num meio-termo. Mas entrar e achar que no funk só tem usuário de drogas também não é verdade. O ritmo toca muito com a juventude, a criançada. O que a gente acha, na verdade, com essa questão é a forma como se aborda. Isso não tinha que ser tratado no âmbito da Secretaria da Segurança Pública. Para nós, quem tem que estar junto é a [Secretaria da] Cultura.

Como tem sido a resposta e reação dos moradores sobre essa questão? Vocês têm se articulado com outras lideranças de outros bairros?

A gente tem uma boa comunicação com Paraisópolis porque os problemas são muito semelhantes, como também com outras comunidades como o Jardim São Savério. A gente está junto porque precisamos. E também fez uma marcha aqui dentro de Heliópolis por conta da morte [de Alberto Góis] e a forma como a polícia entra na comunidade.

Imagem: Antônia Cleide Alves é presidente da União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas)

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