Maria do Socorro, quebradeira de coco: “Quando a palmeira é derrubada, é como se morresse uma mãe de família”

Em entrevista ao De Olho nos Ruralistas, a presidente da Rede Cerrado fala sobre sua relação com o babaçu, sobre a perda de companheiras do movimento e sua luta em defesa dos territórios tradicionais: “Nossa luta é forte e a resistência, uma teimosia”

Por Priscilla Arroyo, no De Olho nos Ruralistas

– O babaçu é uma vida feminina. Com 15 anos, muitas palmeiras já têm os cachos cheios de coco. Seus filhos demoram nove meses para se desenvolver e então caem. É o parto da palmeira. São semelhanças como essa que nos aproximam tanto dessas árvores. Se a gente geme, a palmeira geme, se a gente canta, a palmeira canta, se a gente tem bom cheiro, a palmeira é cheirosa. Quando ela é derrubada, é como se uma mãe de família morresse. Ali não vai ter mais aquele leite, aquele carinho. Não vai ter mais nada.

É assim que Dona Socorro explica sua relação ancestral com a palmeira-babaçu (Attalea speciosa), uma planta típica do Cerrado conhecida por seus múltiplos usos, com destaque para o óleo extraído da castanha.

Maria do Socorro Teixeira Lima é uma das principais defensoras dos direitos das quebradeiras de coco do país. Nascida no Maranhão, ela começou a militar em Tocantins, na região do Bico do Papagaio, onde é reconhecida como uma lutadora coerente, firme e sensível.

Filha e neta de quebradeiras de coco, de ascendência indígena e cabocla, ela nasceu no município de Pedreira, no Maranhão. Mudou-se ainda criança com a família para Imperatriz, a segunda maior cidade do estado: “Quando tinha sete anos, comecei a quebrar coco. Minha mãe partia as bandinhas e eu batia com força. Gostava daquilo”. Com as castanhas retiradas, faziam leite, azeite, sabão. “Papai ia vender os nossos preparos e trazia carne, fazia a feira”.

Quando adulta, já casada, mudou-se para o Bico do Papagaio, no norte do Tocantins, onde o babaçu é o principal produto do extrativismo. Lá seguiu os passos dos antepassados e abraçou a profissão. Embora conseguisse com muito esforço garantir o sustento da família com os produtos feitos a partir do coco, lhe inquietava ter de vencer cercas de arame farpado para ter acesso às palmeiras.

“Queríamos ser respeitadas, parar de sofrer ameaça dos fazendeiros. Tivemos companheiras mortas, apanhadas por jagunços, arrastadas por corda com laço de vaca. Por vezes, os funcionários dos fazendeiros pegavam toda a colheita do dia. Era muito sofrimento”. Diante da adversidades, as mulheres  se uniram para melhorar as condições de trabalho.

MÉTODO DE LUTA VEIO DE CHICO MENDES

Foi no começo dos anos 90 que Dona Socorro deu os primeiros passos em sua trajetória de líder, como aprendiz de Raimunda Gomes da Silva. Formada pelo movimento sindical do Acre, Dona Raimunda era uma das principais líderes do Bico do Papagaio. “Ela me carregava para diversas reuniões. No começo, ficava quietinha observando para depois falar coisas com convicção”. Hoje Socorro representa as comunidades tradicionais no Comitê Gestor Nacional do DGM Brasil.

As duas se tornaram amigas e militaram por anos lado a lado no Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), antigo Conselho Nacional dos Seringueiros, fundado no Acre em 1985 pelo líder seringueiro Chico Mendes. “Foi lá que aprendi a discutir, participar e angariar apoio financeiro para defender as nossas reservas de babaçu”, diz Socorro, agora vice-presidente do CNS.

Não por acaso, as principais estratégias que as quebradeiras usaram no embate com latifundiários foram replicadas do Acre. Nos períodos de conflito no Bico do Papagaio, as mulheres davam as mãos e se colocavam com suas crianças à frente dos policiais que iam procurar armas e ameaçavam as suas casas. “A gente mandava o marido para o mato e enfrentava as situações”, conta Socorro. “Foi assim que preservamos a comunidade”.

A ação remete aos “empates”, resistência organizada para impedir a derrubada de árvores protagonizada por seringueiros, que se reuniam à frente dos jagunços e dos tratores contratados por pecuaristas para desmatar, exigindo que recuassem. Mulheres e crianças geralmente estavam à frente dessas ações. As diversas vitórias obtidas nesse tipo de confrontamento pacífico contribuíram para a criação das primeiras Reservas Extrativistas do país, nos anos 90.

No início dessa década, o grupo de mulheres fundou a Associação Regional das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Bico do Papagaio. “Para registrar o estatuto, tivemos de excluir ‘quebradeiras’ do nome, já que a profissão não existia formalmente”, explica Dona Socorro. Foi o primeiro passo institucional na militância. Os laços ultrapassaram a fronteira dos estados. Na sequência, foi criado o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), com representantes de Tocantins, Piauí, Pará e Maranhão.

Como a palmeira do babaçu é nativa, a primeira bandeira da luta foi garantir o direito das quebradeiras de entrar nas fazendas para recolher livremente os cachos de coco. Comemoraram a primeira vitória em 1997, quando Lago do Junco (TO) tornou-se o primeiro município do país a aprovar a lei do babaçu livre. Hoje, outros 14 municípios no Maranhão, Tocantins e Pará contam com a legislação.

No entanto, na prática, a regra não é respeitada. “Embora a legislação tenha contribuído para diminuir a violência contra nós, ela não impede os maus tratos aos babaçuais”, diz Socorro, ao contar que fazendeiros continuam derrubando e envenenando as palmeiras. “A principal arma que temos são as denúncias feitas por rádio, televisão e internet”.

Ao protagonizar ações em defesa dos seus direitos, as quebradeiras tiveram a profissão reconhecida e passaram a se destacar em espaços políticos tradicionalmente ocupados por homens. Isso refletiu em progressos também em suas vidas particulares.

Dona Socorro começou a militar com quase 40 anos, assim como a maioria das suas companheiras. Ela conta que antes dessa idade era difícil contornar o autoritarismo dos parceiros, que impunham a elas uma vida caseira. “Em determinado momento, meu marido quis que escolhesse entre ele e o movimento. Disse que comigo é três palitos. Aceita ou pula fora. Porque o movimento é só um no Brasil, já homem tem de monte. Deixei claro que ele não estava em condições de impor, e sim de decidir”.

A postura firme de Dona Socorro tornou-a reconhecida na militância como uma líder objetiva e assertiva. “Sempre com opiniões fortes, impressiona a sua habilidade de sintetizar ideias e argumentos”, diz Juliana Nascimento Furnari, assessora técnica do MIQCB. “Isso a faz uma grande mobilizadora, especialista em captar recursos e firmar parcerias”. Juliana destaca o protagonismo de Dona Socorro como uma das principais articuladoras do Fundo Babaçu, iniciativa que, desde 2012, promove projetos de fortalecimento em comunidades tradicionais. Em sua quarta edição, o edital tem como foco as áreas de babaçuais do Piauí.

O resultado positivo dessas iniciativas creditou o MIQCB a receber o maior aporte de sua história. Com apoio da União Europeia e da ActionAid, o projeto “Mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu em Defesa dos Povos e Comunidades Tradicionais” destinará mais de R$ 2 milhões em recursos, visando fortalecer a resistência das quebradeiras em territórios ameaçados por empresas ou latifundiários.

Depois de dois mandatos à frente do MIQCB, Dona Socorro assumiu a presidência da Rede Cerrado, uma articulação de mais de cinquenta entidades da sociedade civil em defesa da conservação do Cerrado e dos seus povos. Apesar da nova função, ela continua próxima das companheiras do MIQCB. Por isso, quando está em São Luis (MA), faz questão de dormir na sede da entidade, onde as quebradeiras discutem estratégias para ampliar a visibilidade da causa.

Um exemplo disso ocorreu durante a Marcha das Margaridas de 2015. Embora as quebradeiras tivessem participado das quatro edições anteriores do evento, Dona Socorro se incomodava com o fato delas não serem consideradas como uma categoria independente de luta entre as camponesas. “A gente somava ao volumão, mas não aparecia. Então tivemos a ideia de pregar um coco no chapéu. Foi a coisa mais linda, e conseguimos nos destacar”.

PERDA DAS COMPANHEIRAS E NOVAS LÍDERES

O ano de 2018 foi marcado por perdas dolorosas para Dona Socorro. Em novembro, morreu Dona Raimunda, sua mestra, vítima de diabetes aos 78 anos. “Não conseguimos passagens para chegar a tempo no velório. Estávamos em Belém em um encontro da Rede Cerrado. Foi duro, mas tenho certeza que Raimunda entendeu a nossa ausência”. À época, ela ainda estava se recuperando de outra perda irremediável, que enfrentara dois meses antes.

Uma das suas melhores amigas e companheiras de luta do MIQCB, a quilombola Maria de Jesus Ferreira Bringelo — Dona Dijé — havia falecido vítima de um infarto fulminante. Depois de muitos lamentos, a proximidade das duas provou existir além das fronteiras racionais. Em 11 de setembro de 2018, Dijé estava em Brasília para ser empossada como líder do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. “Foi a última noite que estivemos juntas. Antes de ir para o evento, ela já não estava bem. Fiquei passando a mão no seu rosto, fazendo massagem. Nesse momento, senti que ela estava morrendo”.

Três dias depois, Dona Dijé morreu em casa, no Quilombo de Monte Alegre, em São Luís Gonzaga do Maranhão. “Ela continuou ao meu lado depois disso”, diz Socorro. “Ficou no meu pé para incentivar a organização do encontrão das quebradeiras, que aconteceu em setembro. Parece que emprestei o meu corpo para ela fazer o discurso de abertura. Todo mundo percebeu que não era eu quem estava falando”. Embora a amiga ainda faça falta no dia a dia, ela segue com as boas lembranças da parceira e confidente, inspirando suas companheiras no movimento.

“Ela não tem medo de falar o que pensa e sempre nos apoiou”, afirma Dona Francisca Pereira Vieira, quebradeira da Comunidade Ouro Verde, na zona rural de Araguatins (TO) e uma das coordenadoras do MIQCB. “Sempre teve o cuidado de nos manter esclarecidas. Agradeço pela sua atenção e cuidado todos esses anos. A considero como uma mãe, embora seja um pouco mais velha que ela”.

Ao mesmo tempo em que está próxima das líderes da velha guarda, Dona Socorro se preocupa com a continuidade do movimento. Um dos maiores desafios é manter o interesse das jovens das comunidades extrativistas, uma vez que muitas escolhem viver na cidade.  Por isso, ela acompanha de perto as meninas que se identificam com a causa e têm habilidade de falar em público. As candidatas são submetidas ao mesmo método com o qual Dona Raimunda a treinou, que consiste em colocá-las para participar de eventos e pedir relatório sobre as atividades. “Se a pessoa está em um encontro e se inscreve para dizer alguma coisa, vejo potencial”, conta, sem citar o nome de nenhuma pupila.

Em sua avaliação, a sua geração deixa para as sucessoras um processo de luta já edificado. “Conseguimos que a nossa matéria-prima fosse respeitada. Tivemos a profissão reconhecida. Mas a batalha para o acesso livre ao babaçu continua”, diz. Outra bandeira é a criação de um selo que facilite a exportação dos produtos produzidos a partir das amêndoas. Além dessas demandas, as estratégias de defesa também devem ser mantidas. A preocupa, por exemplo, uma eventual modificação genética da semente do babaçu, o que já foi proposto pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e rechaçado por ela. “A palmeira é muito linda do jeito que é. Queremos mantê-las assim”, afirma.

ÁRVORES TRAZEM INSPIRAÇÃO E RESPOSTAS

É na natureza que Dona Socorro encontra respostas para dúvidas e recebe instruções sobre vida e militância, além de lampejos artísticos. “As palmeiras conversam com a gente, dão conselhos pelo balançar das palhas, movidas pelo vento”, conta.

Essa é uma das suas maneiras de rezar. A outra, mais tradicional, se dá na igreja católica. Professora da catequese desde os 16 anos, ela encontra na floresta fonte inesgotável de inspiração para escrever peças de teatro, uma das suas ferramentas para ensinar as histórias bíblicas aos alunos. “É na mata que recebo o poder de imaginar. Entendo também qual aluno é melhor para fazer determinado personagem. Volto para a casa e só coloco as coisas no papel”, diz. Foi na mata que dona Socorro “recebeu” a Ave Maria das Quebradeiras, oração oficial das quebradeiras, que se emocionam quando a dizem em voz alta.

“Ave Palmeira, que sofre desgraça,

Malditos derrubam, queimam e devastam.

Bendito é teu fruto que serve de alimento

E no leito da morte ainda nos dá sustento.

Santa mãe palmeira,

Mãe de leite verdadeiro.

Em sua hora derradeira,

Rogai por nós quebradeiras”.

Os primeiros sinais de sua facilidade em liderar foram percebidos nas comunidades eclesiais de base. Além de se dedicar a ensinar na catequese, ela regularmente participava de pastorais da criança e da juventude. “Notaram minha aptidão em lidar com as pessoas e me envolveram no movimento”, conta. Em 1995, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) lhe deu uma importante missão: organizar um grupo para ir ao Primeiro Grito da Terra Brasil, em Brasília, uma das maiores mobilizações da agenda do movimento sindical. Foi um momento importante, que marcou sua jornada de combate fora da comunidade.

Quase três décadas depois, aos 67 anos, Dona Socorro continua na luta, em uma rotina permeada por viagens. Ela se faz presente nos principais encontros e mobilizações como presidente da Rede Cerrado, reeleita em abril. “Contribuí bastante para a nossa causa. Mas por vezes tenho vontade de ficar um pouco mais em casa, quietinha”. Ela mora com o marido, a filha e o genro na comunidade Jatobá, em Praia Norte (TO). Com disposição jovial, continua quebrando coco, mas agora só para o consumo dos parentes, o que não significa que seja em pouca quantidade. Chega a tirar 24 litros de azeite em um dia.

“Não só amo, como tenho muito respeito por essa profissão. Criei uma filha minha, dois filhos do meu marido, dois irmãos e dois sobrinhos dentro da roça quebrando coco”. De semblante sério, quando fala das palmeiras e das bisnetinhas, Alana Raissa e Ana Alice, um sorriso se faz inevitavelmente em seu rosto.  “Elas já brincam de quebrar coco”, diz, com os olhos úmidos.

Sua trajetória de luta pelos direitos acarretou em dificuldades na relação com a família por ser a única militante do grupo. Por isso, Dona Socorro lamenta ter sido cobrada por pessoas próximas. Evitar esse desconforto é um dos motivos que a faz querer diminuir o ritmo de trabalho. “Sempre me disseram que não tinha tempo para eles. Por um lado, têm razão. Raramente estive nos almoços de domingo, e quase não faço visitas”. À parte esses aborrecimentos, para ela, o verbo resistir sempre teve a maior ressonância no peito.

— É preciso ser uma mulher porreta. Resistimos às cercas elétricas do Maranhão, que queimam e matam. Resistimos aos criadores de búfalos, que seguem querendo acabar com as florestas de babaçu para criar os animais. Resistimos às empresas, que sempre tentam — sem nunca conseguir — cooptar as lideranças. A nossa luta é forte e a resistência, uma teimosia. Se não fosse assim, teríamos sido vencidas.

Treinada por Dona Raimunda, Socorro tornou-se uma das principais líderes entre as quebradeiras. Foto: Acervo MICQB

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