Combate ao racismo começa por reconhecer que somos todos racistas

O racismo é um sistema de opressão engendrado em todos os espaços da sociedade brasileira, que se materializa na negação de direitos dos negros e no inconsciente dos brasileiros

Por Paulo Edison de Oliveira*, do Observatório do Racismo, na RBA

Somos todos racistas. A expressão soa forte e imperativa, mas assim se configura a possibilidade de ação e reflexão contra o racismo. Para propor essa afirmação, pressuponho que o racismo é um sistema de opressão engendrado em todos os espaços da sociedade brasileira, que se materializa na negação de direitos dos negros e no inconsciente dos brasileiros que não reconhecem a humanidade dos afro-brasileiros.

O século 21 marca o desmoronamento do mito da democracia racial. A pesquisa da Oxfam e do Instituto Datafolha, denominada Percepções sobre desigualdades no Brasil de 2019, constatou que, para 72% da população brasileira, a cor da pele define as chances de contratação por parte das empresas; para 81%, a raça define o nível de abordagem policial; para 71%, a justiça é mais dura para os negros; e, para 81%, os pobres negros sofrem mais do que pobres brancos, isto é, presenciamos a demolição do mito e a saída do racismo do armário.

Não que estivesse escondido, ao contrário, sempre esteve presente, mas, com as novas tecnologias da informação e a possibilidade de denúncia e viralização do fato nas redes sociais, percebemos a amplitude dos atos racistas.

Não obstante, os não negros acostumados aos privilégios cristalizados historicamente “gritaram” quando conquistamos as cotas raciais e sociais. Podemos inferir ainda que o “berro” ecoou tão forte por veículos que representam a classe dominante que a resistência à equidade de direitos era ouvida nas periferias. Não é por acaso que, apesar das declarações racistas, Bolsonaro recebeu votos das classes populares, em sua maioria negros e negras. 

A pergunta que devemos fazer é por que a reação foi tão forte e imediata? Além do racismo incrustado em nosso imaginário, nos últimos 30 anos, houve ampliação das conquistas por políticas de ações afirmativas e luta contra o racismo. Depois de 400 anos de luta, acessamos o Estado.  

A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), com base em dados de 2018, demonstra que ocorreu uma alteração significativa no perfil dos estudantes. Nas instituições federais, 51,2% são negros, 64% são oriundos de escolas públicas e 70,2% derivam de famílias com renda mensal per capita de até um salário mínimo e meio.

A mudança nos espaços públicos, antes considerados de privilégio exclusivo dos não negros, alterou uma paisagem normatizada. Há um horror conscientizado de uma hegemonia dos corpos negros como destituídos de direitos e igualdade de ação.  

Neste carnaval, notei como as pessoas não percebem o quanto seus discursos são racistas. No domingo (23), entrei no avião à 19h com destino ao Rio de Janeiro, o meu objetivo era ir à Sapucaí vivenciar pela primeira vez essa catarse coletiva e etnograficamente identificar as representações construídas socialmente dos corpos negros.

Como queria vivenciar essa experiência, dediquei-me a ouvir, durante o voo, o samba enredo de algumas escolas de samba, em especial da Estação Primeira de Mangueira, cuja previsão era entrar na avenida às 23h. Estava tão imerso na letra da música que nem percebi que, ao meu lado, havia um casal vestindo camisetas de apoio à Mangueira.

Assim que pousamos, o senhor perguntou-me: “Percebi que você estava concentrado na música, você vai tocar na Mangueira?” Fiquei tão surpreso com essa pergunta que não tive reação, minha companheira que presenciou minha paralisação disse: “Ele estaria um pouco atrasado se fosse tocar na Mangueira”.

Alguns talvez não consigam perceber nas entrelinhas dessa pergunta, até então inocente e amistosa, o racismo estrutural.

Não é comum no imaginário da sociedade brasileira negros irem de uma ponte aérea à Sapucaí assistir ao desfile do grupo especial das escolas de samba. Aos corpos negros, o lugar destinado são a dança ou a música expressa nas escolas; a servidão nos espaços de comida, limpeza e transporte; o trabalho esporádico de “babás” para os casais se divertirem enquanto seus filhos são cuidados, enfim, nunca de um lugar de lazer e fruição. É estranho a cidadania e humanidade negra na prática cotidiana.

Nesse mesmo carnaval, ouvi de uma amiga, progressiva e extremamente sensível e solidária às causas sociais, que ninguém merece trabalhar no carnaval, enquanto um casal de negros trabalhava na casa que estávamos hospedados.

Acredito que sua fala não era, em hipótese alguma, de não reconhecimento da humanidade daqueles trabalhadores negros, mas a sua condição de mundo, de pessoa branca, que não vivencia o racismo, tudo isso a impossibilita de enxergar o discurso racista ao compreender o carnaval como momento de lazer e, para alguns, os corpos de negros e pobres que necessitam de trabalho nessa sociedade marcada pela desigualdade.

Esses relatos não se constituem num discurso moral ou particular, mas em exemplos de que olhar e perceber o racismo é extremamente difícil. Por isso, propomos um movimento de administração da alteridade na luta contra o racismo.

Assim como somos seres que se constituíram na relação com a cultura brasileira, também somos constituídos na relação com o racismo, já que a sociedade brasileira é racista na sua origem.

Para combatermos o racismo, são necessárias algumas ações tais como perceber que o racismo está presente em todas as práticas sociais; que a luta contra o racismo é responsabilidade de todos, inclusive dos não negros; que é necessário compreender o lugar de privilégio que se ocupa e se posicionar contra isso; que não se deve discriminar, nem calar aqueles que sistematicamente denunciam as práticas racistas; que não podemos calar diante da opressão; não atribuir aos negros as responsabilidade de perceber o racismo; não “objetificar” os corpos negros; rever a afirmativa que não é racista porque tem amigos negros e, por fim, reconhecer o racismo imanente em você e agir contra.

*Paulo Edison de Oliveira é doutorando em Antropologia e membro do Observatório do Racismo – PUC-SP

Imagem: Pixabay

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