Como nos salvaremos do terraplanismo sanitário?

Dinheiro, há: só o Tesouro Nacional tem R$ 1,3 trilhão em caixa. Estado poderia remunerar trabalhadores em quarentena e incrementar o SUS. Mas governo bloqueia gastos públicos em nome da “austeridade” — enquanto dá bilhões para rentistas

por Paulo Kliass*, em Outras Palavras

A cada dia que passa a crise do coronavírus se agrava em termos exponenciais. Bolsonaro e Paulo Guedes estão há várias semanas se recusando a encarar a gravidade da situação. O primeiro se mantém com o discurso terraplanista de negação da ameaça proporcionada pela pandemia, para a qual arranja qualificativos como “gripezinha” ou “resfriadozinho”. O segundo não consegue se afastar de seu compromisso com as ideias do monetarismo ortodoxo, por mais que a maior parte dos pensadores desse modelo conservador já estejam flexibilizando suas interpretações pelo mundo afora.

A urgência do momento tem movido dirigentes políticos do campo da direita pelos cinco continentes a abandonarem seu dogmatismo e encarar de forma propositiva a dura realidade do covid-19. Movimento similar tem sido empreendido por um expressivo número de economistas do próprio establishment. Assim, todo o discurso da austeridade fiscal a qualquer custo passou a ser relativizado em face dos riscos apresentados pelo ineditismo da situação.

A própria União Europeia propõe a flexibilização de suas regras fiscais duras e austeras impostas aos países-membros. Os governos dos países desenvolvidos, de forma geral, perceberam a necessidade de um recuo na política de contenção de despesas públicas a qualquer custo. Na verdade, estamos em meio a uma importante mudança de comportamento dos próprios formadores de opinião e dos responsáveis pela implementação da política econômica e de políticas públicas de forma geral.

A conjuntura é completamente nova e não cabem as comparações apenas com a crise de 2008/9 ou com a gripe espanhola do começo do século XX. A combinação perversa da crise econômica generalizada e a emergência da crise da saúde impõe uma mudança radical no receituário apregoado pelo fiscalismo até anteontem. É chegada a hora de romper definitivamente com as amarras assassinas da austeridade cega e burra.

A saída é elevar gastos públicos

De um lado, impõe-se a colocação em marcha de medidas para salvar vidas em escala local, regional, nacional e global. O inimigo é um microrganismo desconhecido forte e poderoso. Assim, os Estados devem abrir o caminho para as despesas que forem necessárias no combate ao covid-19. Por outro lado, esse período exige a implementação de medidas com o objetivo de atenuar os efeitos perversos da própria redução do ritmo da atividade econômica que a crise provocou. Isso significa que o Estado deve promover alternativas para compensar as perdas de renda dos trabalhadores e da maioria da população. Além disso, cabe também outro conjunto de resoluções para reduzir o impacto negativo na vida das empresas, em especial as pequenas e médias.

Com isso, cai por terra o discurso de que o “governo não tem mais recursos”, tal como vinha sendo martelado desde 2015 em nossas terras. Como os economistas heterodoxos vínhamos alertando há muito tempo, problema não é a ausência de capacidade de o Estado realizar suas despesas. A questão é que as verdadeiras prioridades sempre foram outras. Em especial, a garantia da realização das despesas financeiras, como o pagamento de juros da dívida pública. Esse tipo de gasto público é considerado intocável, ao contrário das rubricas com saúde, educação, previdência, salários de servidores e outros.

A gravidade do momento impõe a ruptura definitiva e radical com os pressupostos do fiscalismo austericida. Ao contrário da mentira repetida dia sim e outro também por Paulo Guedes, os recursos existem. O que falta é a vontade política de utilizá-los para a guerra à pandemia. O Tesouro Nacional, por exemplo, tem à sua disposição o volume equivalente a R$ 1,3 trilhão em sua Conta Única junto ao Banco Central. O caminho é transformar parte desse valor em disponibilidades imediatas para os programas de políticas públicas que a conjuntura exige.

A absoluta maioria dos economistas e especialistas já está convencida de que o momento é de ampliar o gasto público. Em circunstâncias como as que vivemos agora, não existe solução fora desse escopo. Clamar pelo “mercado” como uma varinha mágica só pode significar ignorância ou muita – mas muita mesmo! – maldade. Promover a agilidade da despesa pública é o único meio existente para que os recursos necessários à saúde surjam na ponta do sistema. Felizmente ainda contamos com o nosso SUS, presente na totalidade de nossos municípios e com uma competência de profissionais especializados e motivados.

Quem paga? Os pobres ou o grande capital?

No entanto, é necessário também a disponibilidade imediata de dinheiro para comprar equipamentos, produtos, medicamentos, vacinas, hospitais, ambulâncias, etc. Além disso, é essencial também que haja verba para pagamento de novos profissionais que sejam contratados para atuar nessa guerra ao vírus. O sucateamento a que esse sistema foi submetido ao longo dos últimos cinco anos deixa evidente o crime cometido contra nossa saúde pública em nome desse fiscalismo assassino.

O momento é de aliviar a vida da grande maioria de brasileiros e brasileiras que não se encontram em condições de arcar com despesas básicas, como água, luz, telefone, transporte, alimentação, aluguel, entre outras. Isso significa colocar em marcha mecanismos de adiamento das faturas de serviços públicos e a disponibilidade de mecanismos extraordinários de renda para as famílias que não estão no mercado formal de trabalho.

É óbvio que todos esses programas têm seus custos. Porém, felizmente nosso País conta com capacidade para fazer face a essa emergência. As formas de pagamento dessa fatura no futuro deverá ser parte do debate nacional, pois está cada vez mais evidente que as elites, o topo da nossa pirâmide da desigualdade, nunca contribuíram de forma efetiva para o formação de nosso bolo tributário. Pois aí está a oportunidade de que passem, pela primeira vez, a oferecer uma parcela de seu “sacrifício”

De qualquer forma, a hora exige compromisso e vontade política de mudar. Esse é o momento para rompermos com o fiscalismo austericida e para sairmos da crise com um espírito de maior fraternidade e de maior solidariedade entre todas e todos. O momento é de promover um aumento imediato e expressivo de nossos gastos públicos. Quanto mais nos demorarmos na atual inércia proposta por Guedes e Bolsonaro, piores serão as consequências e as dificuldades na etapa da saída da crise.

*Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

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