Médico indígena da etnia Tuyuka é diplomado de manhã e de noite vai combater coronavírus em plantão

Médicos recém-formados pela UEA, como o indígena Israel Dutra (acima), já começaram a atuar na ação de enfrentamento à pandemia da covid-19 no Amazonas

Por Elaíze Farias, em Amazônia Real

Manaus (AM) – O indígena Israel Dutra, da etnia Tuyuka, foi um dos 71 novos médicos que colaram grau na manhã desta segunda-feira (20), em uma das salas da Escola Superior de Ciências da Saúde da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), em Manaus. De tarde, ele deu entrada no registro profissional na sede do Conselho Regional de Medicina do Amazonas (Cremam). Às 19 horas, seguiu para seu primeiro plantão, na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Campos Sales, bairro Tarumã, na zona oeste da capital, hospital de atendimento de urgência e emergência de média complexidade.

Desde sexta-feira, 108 formandos dos cursos de saúde da UEA colaram grau emergencialmente para reforçar o atendimento durante a pandemia de Covid-19. Segundo a assessoria do Creman, 22 médicos recém-formados pela UEA fizeram o credenciamento nesta segunda-feira (20) e receberam os registros no mesmo dia.

O Amazonas entrou num ponto de colapso no sistema de saúde, com 2.160 pessoas infectadas com o coronavírus e 185 mortes registradas até nesta segunda-feira (20) pela Fundação de Vigilância em Saúde (FVS).  O estado é o quinto em número de casos, atrás de São Paulo (14.580), Rio de Janeiro (4.899), Ceará (3.482) e Pernambuco (2.690). Desde 9 de abril, estudantes da área da saúde que tenham cumprido carga horária de 75% do estágio curricular obrigatório ou do internato podem obter o registro emergencial, segundo a Medida Provisória 934, que permite a antecipação da colação de grau para o enfrentamento da pandemia da covid-19.

Israel Dutra, de 46 anos, cujo nome em Tuyuka é Põrõ, nasceu na comunidade Mercês, igarapé Cabari, rio Tiquié, no Alto Rio Negro. Em entrevista à agência Amazônia Real horas antes de iniciar seu primeiro plantão, ele afirmou estar ciente de sua responsabilidade.

“É uma mistura de apreensão por toda essa situação e, ao mesmo tempo, um sentimento de alegria. É uma situação muito complicada [a pandemia]. A gente fica preocupado com o que pode acontecer, pode infectar, mas eu estou preparado. Não posso sentir medo”, disse o médico, que iria colar grau apenas em agosto.

Ele afirmou que, como estará atuando também pela Secretaria Municipal de Saúde (Semsa), espera que a cobertura do município inclua as populações indígenas do contexto urbano que não são atendidas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Para ele, a exclusão dos indígenas da cobertura é “uma injustiça” que precisa ser revista em função da urgência. A médio e longo prazo, avalia ele, precisa ser alterada administrativamente nas instâncias. “Tem um departamento de saúde indígena na Semsa. Quero conversar com os gestores”, adiantou.

Falante das línguas Tukano e Tuyuka, Israel gravou no início de abril vídeos com informações e orientações sobre a Covid-19 que foram distribuídos para sete Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) e cinco comunidades indígenas em que o programa de Telessaúde da UEA está presente. Ele também desenvolve projetos de pesquisa na Fundação Alfredo da Mata, em Manaus, um dos hospitais de referência em medicina de alta complexidade do estado, com foco em doenças dermatológicas e infectocontagiosas, junto com o médico e pesquisador Luís Cláudio Dias.

Formação em área de Humanas

Israel Dutra também é formado em filosofia pela Universidade Católica de Brasília, tendo sido seminarista da Inspetoria Salesiana. Licenciou-se em matemática pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e fez mestrado em geografia humana, pela Universidade de São Paulo (USP) e em ciências sociais, com ênfase em etnologia indígena, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo. Também é autor de um livro que ainda está em vias de lançamento. 

Em 2014, Israel entrou no curso de medicina na UEA decidido a dar uma reviravolta em sua vida profissional. Embora tenha se graduado em uma universidade pública, ele não foi poupado dos custos acadêmicos e das dificuldades, que foram supridos com a remuneração de seu emprego como professor da rede pública estadual e com apoio da esposa, Maria Leonilda, que é enfermeira. Israel é pai de um menino de 12 anos e uma menina de 2 meses.

Envolvido no movimento indígena desde jovem, Israel conta que antes de entrar para o curso de medicina foi um dos defensores da criação da Universidade Indígena do Rio Negro e organizou a realização de dois simpósios: I Workshop dos Povos Indígenas do Rio Negro sobre a construção da Universidade Indígena do Alto Rio Negroe oI Simpósio Internacional: Diálogos Interculturais da Fronteira Pan-Amazônica, em 2010, realizado na maloca da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro(FOIRN) em São Gabriel da Cachoeira, em 2010.

“Eu tinha sonho de ajudar a universidade indígena. Acabei mobilizando centenas de pessoas nos dois simpósios, junto com a Ufam. Mas também fui vendo os Kumuã (pajés). Eles estavam morrendo. Estavam acabando todos. Eles precisavam de alguém para dar a luz, alguém que os motivasse. Então decidi estudar medicina para aprender a medicina não indígena também”, diz.

Israel Dutra lembra que um de seus maiores incentivadores foi seu tio, Pedro Machado, liderança com um passado reconhecido na luta pela defesa do território indígena no Alto Rio Negro. Seu tio lhe incentivava a ingressar na luta pelos direitos indígenas e lhe contava histórias de lideranças do sua região de origem. Estes relatos ajudaram na sua formação política e encorajou Israel, mas também lhe abriram os olhos para outra realidade.

“Ele sempre me acompanhou nas jornadas. Mas no final da vida ele não tinha mais nada: emprego, filhos, casa, mulher. Então vi que precisava me preocupar comigo. Encontrar uma forma de melhorar de vida com um bom trabalho e poder ajudar os outros. Só com a saliva não ia conseguir ajudar os outros”, disse.

“Tem muita gente pensando na área de Humanas; pensam coisas boas. Mas se eu ficasse só na área de Humanas, não ia sobrar nada para ajudar os outros”, afirmou. Ele admite, porém, que a formação em Humanas vai lhe ajudar na atenção clínica às populações a partir de agora, sobretudo às mais carentes, e a lhe dar uma visão humanística no atendimento. “O médico tem que pensar também.”

Um episódio familiar persegue sem respostas a vida de Israel e lhe tira o sossego: o desaparecimento de seu pai há quase dois anos. Único filho homem, Israel deixou de ter notícias de Avelino Dutra, um destacado pajé em São Gabriel da Cachoeira, em setembro de 2018, quando o pai veio para Manaus para tratamento médico após levar uma pancada na cabeça por agressão física.

Avelino passou a ter problemas de saúde mental, perda de memória e uma vez fugiu da casa de seus parentes, em Manaus. Foi encontrado e levado ao Hospital João Lúcio com marcas de agressão, onde chegou a ficar hospitalizado e novamente fugiu. “Nunca mais vimos nosso pai, que era um importante pajé, um Kumuã”, diz Israel, que abandonou a ideia de seguir carreira religiosa como padre para seguir a linhagem paterna do povo Tuyuka.

“[ Meu pai] Dizia que eu deveria escolher entre terçado, machado, caniço, remo e canoa ou os livros, cadernos, canetas, lápis e borracha. Com essas palavras que meu pai foi me deixar no Internato da Missão Salesiana de Pari- Cachoeira para eu continuar os meus estudos. Sempre acreditei e confiei nas palavras do meu pai. Desde criança, sempre quis ser diferente de todos. Porque meu pai me ensinou a ser assim. E fez de tudo para eu estudar e chegar onde cheguei até hoje”, disse o novo médico, em post publicado em sua conta pessoal no Facebook.

O povo Tuyuka é um dos 23 que habitam a região do Alto Rio Negro, no Amazonas, território com maior concentração de etnias indígenas do país. Eles falam uma língua do tronco Tukano Oriental e seu território de origem fica na região do rio Tiquié e do rio Uapés, afluentes do rio Negro, na fronteira com a Colômbia.

Novos registros emergenciais

“Eu tenho muito orgulho de sempre dizer nas colações de grau que a Universidade do Estado do Amazonas entrega sempre os melhores profissionais para a sociedade, e, nesse momento, não é diferente, mesmo eles ainda não tendo completado os 100% da matriz curricular dos seus cursos nós temos certeza que a universidade está entregando os melhores profissionais para o mercado de trabalho. E tanto na Farmácia, quanto na Enfermagem e na Medicina eles vão ser peças fundamentais nesse momento de crise”, afirmou a pró-reitora de Ensino de Graduação da instituição, Kelly Souza, .

Os novos médicos, enfermeiros e farmacêuticos serão absorvidos pela rede pública e ficarão à disposição das secretarias estadual e municipal de Saúde (Susam e Semsa) por 180 dias. Após esse período, os alunos poderão acrescentar o tempo de experiência ao histórico escolar. Desde sexta-feira, 108 formandos dos cursos de saúde colaram grau.

Já o Cremam começou a fazer a inscrição para os novos registros na segunda-feira e essa ação vai prosseguir ao longo desta semana, inclusive no feriado de Tiradentes. Segundo a Assessoria de Imprensa, a entidade está com 16 agendamentos de novos registros médicos.

Amazônia Real entrou em contato com o governo do Amazonas e com a Prefeitura de Manaus para obter informações sobre a cobertura médica e de demais profissionais de saúde na rede pública do estado e da capital, entre elas dados sobre déficit e demanda. A Universidade Federal do Amazonas (UFAM) também foi procurada para informar sobre a colação de graus de novos profissionais de saúde, incluindo os médicos. Os órgãos e a instituição de ensino ainda não responderam até a publicação desta matéria, que ela será atualizada assim que as respostas sejam enviadas.

Foto: Secom/Governo do Amazonas

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