O novo recorde brasileiro e a realidade paralela do governo

Brasil tem mais de 400 mortes em 24 horas. Para novo ministro, número não é necessariamente uma tendência… Leia também: mesmo reconhecendo falta de dados, CFM libera cloroquina

Por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

NA SUPERFÍCIE E ABAIXO DELA

O Brasil registrou 407 mortes em 24 horas – o equivalente a uma morte a cada três minutos – e chegou a um total de 3.313 óbitos e 49.492 mil casos confirmados. Pelo que se sabe das curvas de contágio do coronavírus, não é difícil prever que os próximos dias devem ser piores.

O número de mortes aqui tem dobrado a cada cinco dias segundo uma nota técnica do MonitoraCovid-19, um sistema da Fiocruz. É mais rápido que na Itália e Espanha, onde isso acontece em oito dias. Pode-se argumentar que esses países aparentam já estar na descida de suas curvas, mas até a comparação com os Estados Unidos deixa o Brasil em maus lençóis: lá, têm sido seis dias para que dobre o número de mortos. E o coronavírus está chegando rápido aos municípios pequenos. Na mesma nota técnica, os pesquisadores observam que todas as cidades com menos de 500 mil habitantes já têm casos da doença.

Além de o vírus estar se espalhando, temos a tão falada fila de testes esperando resultados, inclusive de quem já morreu. Então, mesmo o recorde registrado ontem é um retrato do passado. Para se ter uma ideia, segundo o Ministério da Saúde a maior parte dos registros (155 mortes) divulgados ontem é do dia 13 de abril. Dez dias antes. A Pasta reconhece que, atualmente, está investigando nada menos que 1,2 mil de óbitos suspeitos.

Aliás, n’O Globo o colunista Rafael Garcia pergunta se não passou da hora de o Brasil reportar como mortes confirmadas essas que acontecem por SRAG (a síndrome respiratória aguda grave) mas ainda não têm resultados. Foi o que a China fez quando tinha escassez de testes. Para a narrativa bolsonarista, porém, obviamente não interessa de repente registrar mais de mil mortes em um dia.

Já falamos aqui como um outro sistema da Fiocruz, o InfoGripe, está constatando um aumento no número de internações e mortes por SRAG num ritmo bem maior do que a de infecções confirmadas pelo coronavírus. O último relatório semanal do sistema mostra que a o crescimento não deixou de acontecer, mas deu uma desacelerada nas últimas duas semanas. É uma boa notícia, e a explicação provavelmente está nas medidas de isolamento social. Acontece que, como há um intervalo entre o contágio, os sintomas e as hospitalizações, um relaxamento nessas medidas hoje só vai aparecer no sistema daqui a duas ou três semanas.

Outra observação: o sistema funciona com base nos registros hospitalares, então obviamente só serve para estimar o aumento de casos enquanto os hospitais conseguirem absorver os pacientes. Se faltar leito, os registros chegam a um limite. E já há cinco capitais brasileiras em colapso ou perto disso, segundo um índice desenvolvido por pesquisadores de várias universidades brasileiras. Além de Manaus, Macapá, São Paulo e Fortaleza, Palmas também entra nessa lista, mesmo com só 28 casos e uma morte confirmada. A questão é que a cidade tem uma das menores estruturas de saúde do país, com poucos médicos e respiradores.

REALIDADE PARALELA

Nelson Teich é um otimista. Para o novo ministro da saúde, há que se tomar cuidado com os modelos matemáticos que preveem cenários desastrosos, porque eles  pioram o medo. Mas os números oficiais também não o abatem: as mais de 400 mortes registradas ontem, por exemplo,  “podem não ser uma tendência“… Ele argumenta que os dados podem significar “um esforço de fechar os diagnósticos”, referindo-se aos testes atrasados. A informação de que 155 das mortes confirmadas ontem se referem ao dia 13 de abril é espantosa, de fato. Mas as restantes são de quando?

É claro que, se o Brasil conseguir correr atrás desses diagnósticos, vai haver um aumento grande nas mortes diárias até que o país consiga zerar a fila. Mas, enquanto isso, o vírus se espalha. Como então identificar a curva real de óbitos sem precisar esperar que todas as mortes antigas sejam confirmadas? Seria possível atualizar diariamente os números referentes aos dias reais dos óbitos? Fica a dúvida.

Curiosamente, a subnotificação só é um problema para o ministro quando o recorde de mortes vira manchete. Aí, precisa ser levada em conta. Já quando empurra os casos brasileiros para baixo, não precisa ser mencionada: “O Brasil hoje é um dos países que melhor performa em relação à covid. Se você analisar mortos por milhão de pessoas, o número do Brasil é de 8,17. A Alemanha tem 15. A Itália 135. Espanha 255. Reino unido 90 e EUA 29″, disse ele na quarta, em sua primeira coletiva como ministro. Ele não só desconsiderou a falta de diagnósticos como ainda apresentou dados distintos dos usados pela própria Pasta, e ninguém sabe de onde ele tirou esses números.

Em tempo: para outro ministro, Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, os meios de comunicação estão errados em mostrar… o que acontece: “No jornal da manhã é caixão, corpo; na hora do almoço, é caixão novamente. No jornal da noite é caixão, corpo e número de mortos. Eu pergunto a todos: como é que você acha que uma senhora de idade, uma pessoa humilde ou que sofre de outra enfermidade se sente com essa maciça divulgação desses fatos negativos. Não tá ajudando. Ninguém aqui está dizendo que tem que esconder. Os senhores [jornalistas] têm que também… eu conclamo e peço encarecidamente, tem tanta coisa positiva acontecendo“.

TUDO PARA DAR CERTO

Eduardo Pazuello, “braço direito” de Teich que ele mesmo não conhecia até esta semana, foi oficialmente anunciado como secretário-executivo do Ministério da Saúde na terça-feira. Um dia antes, servidores da Pasta foram até o hotel onde ele estava hospedado para “ensinarem o beabá do Ministério“, nas palavras da colunista d’O Globo Bela Megale. “Em uma lousa branca, os funcionários detalharam todo o organograma, informando quais entidades estão sob seu comando e quem são os responsáveis pelas mesmas. Pazuello será responsável pela área administrativa e concentrará atividades como monitoramento, logística, necessidades de transportar medicamentos e coordenação de ações com ministérios”.

O PLANO DESASTROSO

Nelson Teich não sabe qual é a tendência do coronavírus no Brasil, mas, como não poderia deixar de ser, sua primeira ação como novo ministro é em relação à reabertura econômica. “É impossível um país viver um ano, um ano e meio parado. Um programa de saída, isso é que a gente vai desenhar e dar suporte para estados e municípios”, disse ele, também na quarta. Na semana que vem, chegam as “diretrizes” que vão orientar as unidades da federação em relação a isso. A Frente Nacional de Prefeitos cobra um protocolo por parte do governo federal. Mas, mais do que isso, eles pedem condições para que as cidades tenham dados suficientes para embasar as ações.

Ontem, questionado sobre o péssimo momento para se pensar em abertura, Teich relativizou: “Quando digo que a gente vai ter que mapear no dia a dia, e que vai ter critérios, estratégias de saída, isso não quer dizer, primeiro, que a gente vá voltar, sair amanhã e que alguém defenda o isolamento ou não. A gente defende o que é melhor para a sociedade. Se o melhor para a sociedade for o isolamento, é o que vai ser. Se eu puder flexibilizar, dando uma autonomia e uma vida melhor para as pessoas, e isso não vai influenciar na doença, é o que vou fazer”.

É preciso aguardar a chegada das tais diretrizes para ver o que elas estabelecem em relação às condições necessárias para o início da abertura. Mas, no cenário que temos hoje, não existe a menor segurança para relaxar nada, como explica, no Estadão, o epidemiologista Pedro Hallal. Reitor da Universidade Federal de Pelotas, ele é também coordenador da grande pesquisa por amostragem que pretende apontar a prevalência real – e a evolução semana a semana – das infecções pelo novo coronavírus no Brasil. Ele compara a situação brasileira com os seis requisitos estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde para que as medidas de isolamento sejam relaxadas. A conclusão é que ainda não temos praticamente nada. Segundo a OMS, a transmissão deve estar controlada; é preciso ter capacidade de testar e isolar os pacientes e seus familiares; locais de trabalho e escolas devem estar adaptados para evitar o contágio; o surto deve estar controlado em locais específicos, como hospitais; é preciso ter equipamentos suficientes. Nada disso faz parte da nossa realidade, em parte alguma.

Por falar no estudo de Pelotas: os cem mil testes aplicados na população vão ser feitos por pesquisadores do Ibope. E eles devem ser orientados pelo ministro Nelson Teich…

O QUE ESPERAR

O completo desastre que tem sido a atuação do governo federal em relação ao coronavírus é analisado pelo professor da Unicamp Gastão Wager em entrevista ao Outra Saúde. Ele traça o perfil de Nelson Teich e mapeia os erros do Ministério ainda sob Mandetta. Ouça aqui

LOCALMENTE

Estados continuam tendo autonomia para decretar suas medidas, mesmo contra orientações da União. A questão é saber o quanto o discurso pró-abertura do governo federal influencia, pelo desgaste, essa tomada de decisões local. Pelo menos sete estados e Distrito Federal já anunciaram algum afrouxamento.

O governo de São Paulo está sendo criticadíssimo após anunciar seu plano de flexibilização, que ainda não foi detalhado mas deve começar a partir do dia 10 de maio. Isso quando o estado projeta que o número de mortes vai triplicar dentro de duas semanas, chegando a 3,2 mil. “É  bom deixar claro que não estamos dizendo aqui que depois de 10 de maio não teremos quarentena”, explicou o governador João Doria (PSDB). A ideia é identificar áreas e serviços que poderão reabrir. A eterna e repetitiva questão de fundo é: com base em quê, se não se conhece a situação real, e se o fato de não haver registros da doença em algum município não significa de forma alguma que ela esteja de fato ausente? Pelo menos o plano prevê que a abertura depende da capacidade de testagem, inclusive para assintomáticos.

Ainda pressionado pelas críticas, Doria afirmou ontem que a abertura pode ser revista caso não haja isolamento de 50% – e não tem ficado muito acima disso. O fluxo de veículos já está registrando recorde de índice de lentidão, desde o início do isolamento.

E a prefeitura da capital lançou em vídeo uma nova campanha incentivando a população a ficar em casa. É pesada; como exemplo de local onde a quarentena não pegou, mostra Guayaquil, no Equador, onde corpos chegaram a ficar espalhados pelas ruas. “Não podemos pensar de forma nenhuma em relaxamento. No caso da região metropolitana é muito cedo para pensarmos no fim do isolamento, mesmo após 10 de maio”. disse Edson Aparecido dos Santos, secretário de saúde do município na Globonews.

Com menos destaque do que São Paulo, Minas também anunciou seu plano de reabertura, mas não há datas.

No Rio, o governador Wilson Witzel (PSC) anunciou que poderia flexibilizar a quarentena a partir do dia 11 de maio. Mas, em reunião ontem para discutir o plano, disse que isso só vai acontecer quando os hospitais de campanha forem inaugurados e quando as mortes caírem.

Seria muito absurdo pensar em flexibilizar qualquer coisa agora. Na capital, já há espera de dias por um leito de UTI, médicos chegaram no ponto de escolher quem vive ou morre e pacientes da capital estão sendo enviados para hospitais do interior, alguns a mais de cem quilômetros de distância. No estado como um todo, segundo a secretaria de saúde, a taxa de ocupação é de 66% em leitos de enfermaria e 78% em leitos de UTI.

Se chegar a uma taxa dessa na sua região metropolitana, o governador do Maranhão vai decretar lockdown, ou seja, o fechamento total. Flávio Dino (PCdoB) afirmou ao Estadão que o decreto já está pronto. A ocupação estava em 70% até o dia 21, mas foi alugado um hospital com mais 200 leitos para suprir a demanda. “Estou analisando todos os cenários possíveis e os indicadores para mim são óbitos e capacidade hospitalar. Como, até agora, a capacidade hospitalar está assegurada e tenho mais leitos para entregar, estou num sentido otimista. Apesar do crescimento de casos, acho que a gente dá conta de segurar a demanda”, disse ele. Hoje, só funcionam na região os serviços essenciais.

NO CONGRESSO

A comissão da Câmara que acompanha as medidas contra o coronavírus decidiu convidar Nelson Teich para ir lá falar das ações do Ministério, especialmente no que diz respeito ao socorro a estados que estão colapsando. Uma das cobranças da comissão é que o governo federal libere R$ 300 milhões em emendas destinadas à saúde do Amazonas. É apenas um convite; Teich não precisa aceitar. A data ainda vai ser definida.

E, mirando o enfraquecimento de Rodrigo Maia, o Planalto segue em sua tentativa de se aproximar de líderes do Centrão. Depois da sua primeira aparição na imprensa, Teich foi a uma reunião com Jair Bolsonaro, Luiz Eduardo Ramos e três desses líderes: Arthur Lira (Progressistas), Wellington Roberto (PL) e Jhonatan de Jesus (Republicanos). Como já comentamos aqui, está forte o leilão de cargos em troca de votos no Congresso.

NO AMAZONAS

A intervenção federal na saúde do Amazonas foi descartada pelo Planalto. Mas o governo federal resolveu enviar a “Força Nacional do SUS” ao estado. Esse programa, criado em 2011, serve para auxiliar unidades da federação em epidemias, desastres e outras situações críticas. Segundo o Ministério da Saúde, mais de 8,2 mil profissionais de saúde se voluntariaram para integrar a Força Nacional no combate à covid-19. Até a tarde de ontem, 25 trabalhadores, dentre médicos, enfermeiros e fisioterapeutas, tinham sido enviados ao estado. Antes de embarcarem, fizeram treinamento de um dia. Cada grupo fica por lá pouco tempo: entre sete e dez dias. De acordo com o governador Wilson Lima (PSC), o pico das infecções está previsto para acontecer na primeira quinzena de maio. 

Uma reportagem da Piauí chama atenção para outra variável que pode complicar ainda mais as coisas no Amazonas e outros estados da região. É que maio também inaugura a chegada da estação seca na Amazônia. Ano passado, foi quando a floresta ardeu em chamas provocadas por fazendeiros e grileiros que chocaram todo o planeta. E a fuligem das queimadas é uma geradora de síndromes respiratórias. O que pode acontecer quando o novo coronavírus e o desmatamento se encontrarem em condições em que o sistema de saúde já colapsou? As perspectivas não são boas. 

MÉDICOS CUBANOS

O Pará vai contratar médicos cubanos para dar conta da ampliação da sua capacidade de atendimento durante a epidemia. A autorização foi dada pela Procuradoria-Geral do estado na última quarta (22).

TENTANDO FREAR

O vídeo da reabertura do Shopping Center Neumarkt, em Blumenau, é um show de horrores. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina notificou o estabelecimento. Vai continuar abrindo, mas não pode ter apresentações com música, precisa limitar o número de pessoas e adotar medidas para que haja distanciamento mínimo de 1,5 metro entre elas. O estado permitiu o funcionamento de shoppings, desde que fossem tomadas medidas de precaução. O que, convenhamos, não é tão fácil de fiscalizar.

Também parou na Justiça – e foi suspenso – o decreto da prefeitura que permitia a reabertura parcial do comércio em São José dos Campos, interior de SP. A ação foi movida pelo Ministério Público porque, sendo polo regional, a cidade passaria a difundir o vírus em municípios vizinhos.

AINDA A NOVELA DA CLOROQUINA

Parece mesmo obra de ficção, mas é Brasil. Ontem, o Conselho Federal de Medicina se reuniu com Jair Bolsonaro e Nelson Teich. O objetivo do encontro foi entregar o parecer do CFM sobre uso de hidroxicloroquina e cloroquina. “Não existe nenhuma evidência científica forte que sustente o uso da hidroxicloroquina para o tratamento da covid”, disse o presidente da autarquia, Mauro Luiz Britto Ribeiro. Diante da frase, podemos supor que o Conselho travou a administração do medicamento, certo? Errado. O parecer do CFM não só libera, como libera geral: os médicos podem receitar a substância até para doentes em estágio inicial dos sintomas em ambiente domiciliar que não sofrerão punição do Conselho. Trocando em miúdos, a explicação é que a decisão foi dar mais crédito aos relatos dos médicos brasileiros do que aos estudos científicos. “Em outra situação muito provavelmente o CFM não liberaria o uso da droga a não ser em caráter experimental. Mas, diante dessa doença devastadora, a opção foi dar um pouco mais de valor ao aspecto observacional de vários médicos, importantes e sérios”, disse Ribeiro. Dessa forma, tanto o Conselho quanto o Ministério da Saúde estão lavando as mãos do papel regulatório que deveriam desempenhar. Para Teich, “permitir o uso ao critério do médico não representa uma recomendação do Ministério”. Já Ribeiro declarou que o CFM decidiu “liberar o uso da droga, mas não recomendar”. 

REMDESIVIR PODE NÃO SER EFICAZ

O remdesivir, um antiviral produzido pela farmacêutica Gilead, vinha sendo hypado como tratamento para a covid-19. Mas o primeiro estudo clínico randomizado desapontou cientistas (e investidores). O Finantial Times estava atento e examinou um documento publicado por engano pela OMS sobre esses resultados. Dos 237 pacientes estudados na China, 158 receberam a droga que não melhorou as condições de quem tomou, nem reduziu a carga viral dos pacientes. Além disso, 18 pessoas que receberam o medicamento tiveram efeitos colaterais  e precisaram parar de tomá-lo. Até agora, todas as expectativas em torno do remdesivir se baseiam em estudos limitados – mas que foram o suficiente para fazer o preço da ação da Gilead subir de 77 para 84 dólares na semana passada. Não à toa mesmo depois do vazamento do resultado do estudo feito na China, a empresa continua dizendo que há razão para esperança pois a pesquisa testou poucos pacientes, particularmente aqueles que estavam nos estágios iniciais da doença. A ver. 

VACINA

Ontem, cientistas chineses da empresa Sinovac divulgaram resultados sobre vacina para o novo coronavírus naquela plataforma que reúne estudos acadêmicos ainda não revisados por pares. De acordo com o relato, a imunização, aplicada em duas doses, teve sucesso em neutralizar dez cepas do Sars-Cov-2 em oito macacos. A Science, por sua vez, publicou um artigo de opinião do cientista Douglas Reed, que também tenta desenvolver uma vacina. Ele observa que o número de animais testados é pequeno para produzir resultados estatisticamente relevantes.

E INJEÇÃO

Contrariando qualquer racionalidade científica, Donald Trump resolveu fazer ontem uma sugestão durante sua coletiva de imprensa diária: a de que as pessoas recebam injeções de desinfetante. Aplicações de água sanitária, álcool 70… “E aí eu vejo o desinfetante, que derruba [o coronavírus] em um minuto. Um minuto! E tem um jeito de a gente fazer algo, uma injeção dentro ou quase uma limpeza? Porque, veja bem, ele entra nos pulmões e faz um trabalho tremendo nos pulmões, então seria interessante checar isso. Então, será preciso ver com os médicos, mas soa interessante para mim”. Os técnicos do próprio governo reagiram com indignação à proposta de envenenamento coletivo do presidente norte-americano.

A VENTILAÇÃO MECÂNICA EM DEBATE

A JAMA, uma das revistas científicas mais respeitadas, publicou ontem um estudo que se debruçou sobre o uso de ventilação mecânica na epidemia de covid-19 em Nova Iorque entre 1º de março e 4 de abril. Dos 2.634 pacientes hospitalizados que participaram da pesquisa, 320 (12,2%) precisaram de ventilação mecânica invasiva, ou seja, quando os profissionais precisam colocar os tubos garganta adentro e administrar sedação pesada para impedir o funcionamento dos músculos respiratórios. Destes, 88,1% morreram. A taxa média de mortes em pessoas entubadas em uma infecção respiratória aguda gira em torno de 40%.

Mas será que os doentes com covid-19 morrem mais porque a doença é mais grave ou porque, por ser desconhecida, o tratamento vai muitas vezes pelo caminho errado? O debate sobre o uso excessivo do recurso se desenrolou esse mês inteiro. Uma longa reportagem da Reuters ouviu médicos de países como China, Itália, Espanha, Alemanha e EUA para entender o que está levando vários profissionais a pesar mais os prós e contras dessa intervenção que facilita, por exemplo, infecções secundárias. Eles concordam que o recurso é vital, mas ressaltam que lançar mão dele muito cedo em uma infecção, ou muito frequentemente, como protocolo-padrão, ou sob cuidados de pessoal não treinado para o procedimento, pode ser bastante problemático. Isso porque a doença é nova e deixa os pulmões em um estado diferente.

Por exemplo, um estudo escrito por médicos italianos publicado na American Thoracic Society afirma que a covid-19 não leva a problemas típicos, de modo que a pressão do ar liberado pelo aparelho deve ser mais baixa do que o padrão utilizado em UTIs. Outra matéria, da ABC, dá a entender que o padrão tem sido o contrário: aumentar muito a pressão do ar. Voltando à reportagem da Reuters, da Espanha, a médica Delia Torres explicou que o comprometimento dos pulmões demonstrado nos raios-x assustava as equipes médicas, que optavam por entubar o mais rápido possível, mas que à medida que os profissionais foram lidando com a doença, optaram por prestar mais atenção nas condições de cada paciente. O discussão está em curso. 

AS MORTES DOS JOVENS E SAUDÁVEIS

Na epidemia brasileira, temos visto altos índices de contaminação entre jovens. Na zona Leste de São Paulo, por exemplo, a maioria dos doentes tem entre 20 e 49 anos. Por aqui, já se falou que o nível socioeconômico é um determinante a ser levado em consideração. Quanto mais pobre, mais vulnerável, logo, mais chances de ter comorbidades. Mas há jovens saudáveis morrendo também não só aqui, como no resto do mundo. A BBC reuniu as teorias que circulam entre os cientistas que buscam explicar isso.

A hipótese genética, que não é nova para explicar a suscetibilidade a doenças infecciosas, é a primeira da lista. Uma mutação genética poderia expor uma parcela da população e o candidato mais cotado nessa linha de pesquisa é um gene que codifica um receptor de enzima que fica nas células do pulmão e em outras partes do corpo. Esse receptor é usado pelo vírus como porta para invadir as células, logo, variações nesse gene – que existem – tornariam as pessoas mais vulneráveis ou resistentes à doença. Ainda na seara genética, pesquisadores têm olhado para a diferença entre sexos, já que os homens parecem mais afetados pela covid-19 do que as mulheres. Isso aconteceria porque o cromossomo X é responsável por muitos genes de imunidade – e como as mulheres têm dois X e os homens só um, as mutações aí os deixariam mais a descoberto. A resposta do sistema imunológico mais violenta a um agente patogênico é conhecida como “tempestade de citocinas”, que são substâncias produzidas para atacar um vírus e acabam funcionando como bombas e matando células saudáveis, o que consequentemente danifica órgãos do doente. Também mutações podem explicar por que alguns reagem assim – cerca de 15% das pessoas que combatem qualquer infecção grave –  e outros não. Finalmente, há a teoria que examina se o contato com outro coronavírus que circula no mundo há alguns anos – chamado HCov-229E – poderia tornar as pessoas mais imunes ou hipersensíveis ao novo coronavírus. O grau de exposição ao vírus também poderia explicar o óbito como desfecho da infecção em gente jovem e saudável. É o caso de profissionais de saúde, por exemplo.   

DESMAIOU NO CHUVEIRO

Lucas Miolla, de 30 anos, narrou para a Folha como a doença pode ser traiçoeira. Ele começou a sentir sintomas em 1º de abril: dor, ardência nos olhos, febre. Nos dias seguintes, foi ficando mais fraco (“tomar banho era um suplício”) até que no sexto dia perdeu a consciência e caiu no chuveiro. Ligou para o teleatendimento do seu plano de saúde, foi encaminhado para a emergência mais próxima e, chegando lá, ficou sabendo que seus pulmões tinham 20% de comprometimento. Internado, passou dias ruins. “Começou uma piora terrível. Não conseguia mais andar, só me deslocava de cadeira de rodas. Também só respirava com ajuda do respirador e não comia nada”, contou. Doze dias depois, saiu o resultado positivo para Sars-Cov-2. E, depois de apresentar melhora, ele também recebeu alta.

NO OUTRO EXTREMO

Falamos por aqui que essa semana a Europa atingiu cem mil mortes por covid-19. Ontem, o braço europeu da OMS divulgou que quase metade desses óbitos aconteceu em asilos. O organismo sinalizou a necessidade de adotar novos protocolos de regulação para essas instituições.

TERRAS INDÍGENAS VULNERÁVEIS

Uma análise  da Associação Brasileira de Estudos Populacionais avaliou a situação de vulnerabilidade de 471 terras indígenas frente à epidemia de covid-19. Eles criaram índices a partir da ponderação de fatores como distância de leitos de UTI, saneamento básico, quantidade de moradores, porcentagem de idosos na população e situação prévia dos territórios. A situação mais grave, caracterizada pelo índice de vulnerabilidade crítica, é vista em 13 terras indígenas: cinco na região Norte, quatro na Sul, três na Centro-Oeste  e uma no Nordeste. Depois, vem o índice de vulnerabilidade intensa, que atinge 85 terras indígenas, a maioria (56) localizada na região Norte. Também apresentam vulnerabilidade alta nada menos do que 247 TIs – de modo que a situação não é boa em 345 terras indígenas das 471 pesquisadas.   

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil reivindica que sejam construídas estruturas de atendimento específicas para indígenas para que o fluxo de atendimento desde o diagnóstico por sintomas, feito nas aldeias, até o tratamento em UTIs – que sempre foi complexo, diga-se de passagem – não condene os indígenas a morrer sem acesso aos leitos. 

Além disso, a reportagem da Agência Pública sobre o estudo chama atenção para outro problema: o dos indígenas que vivem nas cidades. Isso porque o monitoramento de casos feito pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde deixa de fora os não aldeados. 

Em tempo: falamos aqui que a Fundação Nacional do Índio (Funai) não tinha gastado praticamente nada da verba liberada em regime de urgência pelo Ministério da Justiça. Agora, a notícia é de que a autarquia gastou R$ 1 milhão dos R$ 10 milhões recebidos para comprar… oito caminhonetes. Em nota enviada ao Estadão, a Funai só respondeu que os veículos “serão empregados de acordo com o mapeamento”, dando a entender que a compra se justifica nesse momento de epidemia para distribuir cestas básicas – e reconhecendo que há várias localidades onde o acesso se dá apenas por meio de barco ou avião. Isso porque há outra verba, de R$ 40 milhões do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, para a compra e distribuição desses alimentos para 154 mil famílias. A Funai informa que apenas 4,1 mil cestas foram entregues. 

QUILOMBOLAS

Outra população muito vulnerável que sequer conta com um subsistema de saúde como o indígena para lhe dar suporte é a quilombola. De acordo com o De Olho Nos Ruralistas, até quarta-feira (22), seis mortes nessas comunidades já haviam sido registradas pela associação que representa os quilombolas.

APAGÃO ESTATÍSTICO

Há um problema na apuração e transparência dos dados sobre desemprego no país. Não é de hoje: desde 2018, as informações do portal criado pelo governo para informar a quantidade que recebe seguro-desemprego não são atualizadas. Mas piorou no governo Bolsonaro. Desde janeiro deste ano, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, conhecido pela sigla Caged, deixou de ser publicado mensalmente. E em 30 de março, o governo admitiu que essa publicação não tem data pra voltar. 
Para piorar de vez, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) está sendo feita por telefone por conta da epidemia do novo coronavírus. E a adesão às entrevistas, antes feitas ao vivo, caiu de 90% para 60%. 

E a medida provisória 954 que autorizou a realização remota da Pnad enfrenta críticas. Há temor de violação dos dados dos cidadãos. Isso porque a MP autoriza o IBGE a requisitar às operadoras nome completo, número de telefone e endereço de todos os consumidores. A redação do texto é considerada abrangente e sem finalidade específica. Além disso, como já dissemos por aqui, o país não tem uma estrutura que fiscalize o uso de dados pelo poder público. A OAB e partidos políticos entraram com pedidos de suspensão da MP no Supremo Tribunal Federal – que pediu explicações ao IBGE. O Instituto ignorou a movimentação e enviou ofícios para operadoras de telefonia, pedindo urgência no envio dos dados.

ATAQUE BRASILEIRO À OMS

O governo federal parece, de fato, animado para embarcar nos ataques feitos por Donald Trump à Organização Mundial da Saúde. Ontem, Jair Bolsonaro questionou nos seguintes termos as recomendações feitas pelo organismo internacional durante a pandemia: “O pessoal fala tanto em seguir a OMS, né? O diretor da OMS é médico? Não é médico. É a mesma coisa se o presidente da Caixa não fosse da economia. Não tem cabimento. Então, o diretor da OMS não é médico”, afirmou em transmissão ao vivo. O UOL lembra que Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da Organização, é graduado em biologia, tem mestrado em Imunologia de Doenças Infecciosas pela Universidade de Londres e doutorado em Saúde Pública pela Universidade de Nottingham… Ele foi ministro da saúde da Etiópia.

Na quarta-feira, o chefe da diplomacia brasileira e discípulo de Olavo de Carvalho já havia dado um sinal claro de que a estratégia é imitar Trump. Mas Ernesto Araújo deu um toque de surrealismo à teoria da conspiração de que a OMS favorece a China: o chanceler publicou no seu blog que a aposta no multilateralismo é uma trama comunista. “O globalismo substituiu o socialismo como estágio preparatório ao comunismo”, disse. E acrescentou: “O vírus aparece, de fato, como imensa oportunidade para acelerar o projeto globalista”. 

Enquanto isso, no plano dos fatos, Tedros Ghebreyesus – que pode ser o próximo a cair pela pressão feita pelos EUA contra ele – deu um recado parecido com o de Luiz Henrique Mandetta. Disse que vai continuar trabalhando. Outro membro da equipe da OMS foi na mesma linha: “estou ocupado demais”, disse.

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