Alterações na MP 910 feitas pelo senador, filho da senadora Katia Abreu, colocam mais terras públicas no mercado do Matopiba, onde atua internacionalmente o marido dela; Congresso reformula o projeto, mas mantém algumas mudanças
Por Leonardo Fuhrmann, em De Olho nos Ruralistas
Em abril de 2018, o empresário Moises Pinto Gomes esteve no Catar, em uma feira de negócios. Segundo o Gulf Times, jornal local de língua inglesa, a visita dele ao país serviu para vender oportunidades de negócios na agropecuária brasileira. A mais vistosa delas, o Fundo Matopiba, criado para aquisição de terras e produção agrícola no Brasil. “O Catar pode investir em fazendas no Brasil para produção de alimentos, que posteriormente poderão ser exportados para o Catar”, disse o empresário ao diário catariano.
Segundo a reportagem, ele apresentou um fundo de US$ 500 milhões, a serem aplicados na aquisição de fazendas a serem preparadas e aprimoradas para a produção de grãos (arroz, soja, sementes e milho). Objetivo: gerenciar e operar a produção antes da alienação de terras e operações agrícolas. “A ideia por trás dessa plataforma é aproveitar a situação que temos no Brasil, como o preço mais baixo da terra, investir em parceria com empresas do Catar com o Brasil em terras e produção”, afirmou, segundo a publicação.
Uma proposta para facilitar esse acesso a terras no Brasil já tramita no Congresso. É a Medida Provisória 910, de autoria do governo Jair Bolsonaro, para regularizar a situação de pessoas que ocupam terras públicas. Parlamentares de oposição e movimentos sociais ligados a povos tradicionais, ambiente e acesso à terra, o TCU e o MPF manifestam preocupação com o texto que está no Congresso. O argumento é que a medida, criada a pretexto de favorecer pequenos produtores, na verdade beneficia criminosos especializados em invadir terras públicas.
O relator da proposta, apontado como responsável por diversas alterações que tornam a MP ainda mais leniente com grileiros e a especulação imobiliária rural, é o senador Irajá Abreu (PSD-TO), filho da também senadora Katia Abreu (PP-TO), atual mulher de Moises Pinto Gomes. O texto encontra-se na Câmara, onde recebeu uma nova redação do deputado Zé Silva (Solidariedade-MG) que, assim como Irajá, também é membro da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), face mais organizada da bancada ruralista em Brasília.
A nova versão em tramitação na Câmara ameniza alguns dos dispositivos inseridos por Irajá, como o marco temporal para regularização fundiária, buscando um consenso entre governo, FPA e supostos representantes de ambientalistas para levar a MP 910 à votação antes de seu prazo de extinção, em 19 de maio. Caso não seja votada até lá, a MP da Grilagem — para seus defensores MP da Regularização Fundiária — não poderá ser reeditada até o fim do ano.
O PRÓPRIO SENADOR TEM EMPRESAS NO SETOR
A agropecuária não é a única área de atuação do marido da senadora, padrasto de Irajá. Gomes é um homem de muitos negócios. É dono de emissoras de rádio e TV na capital de Tocantins, Palmas, e em outras duas cidades do estado, além de empresas de hotelaria e publicidade, a última em sociedade com Iratã Abreu Silvestre, irmão de Irajá, que já foi vereador em Palmas.
O próprio Irajá declara empresas que podem ser beneficiadas diretamente pela MP-910. À Justiça Eleitoral, em 2018, afirmou ter participação societária em duas empresas voltadas para negociações com imóveis rurais e agronegócio, a Aliança e a Aliança Ponte Alta. Ele também declarou uma empresa voltada para negociações de imóveis urbanos e outra no setor de hotelaria. Em todos, sua mãe, candidata a vice na chapa de Ciro Gomes em 2018, também aparece como sócia.
Em reportagem de 2018, o site Repórter Brasil já apontava projetos de Irajá que facilitavam diretamente a atuação empresarial de sua família. O Projeto de Lei 2163/2011, arquivado no início da atual legislatura, propunha o fim dos estudos de impacto e do licenciamento ambiental para empreendimentos agropecuários, florestais ou relacionados ao reflorestamento. A dispensa do licenciamento ambiental foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2001.
Outro projeto de Irajá na mesma legislatura foi visto pelos movimentos de luta pela terra como uma tentativa de retaliação. O PL 1201/2015, arquivado no ano passado, dizia que os beneficiários do programa de reforma agrária precisam ter domicílio eleitoral na mesma cidade do assentamento. Dois anos antes, um grupo de mulheres ligadas ao MST ocupou a Fazenda Aliança. Elas protestavam contra o desmatamento ilegal feito por Irajá nas suas fazendas no Tocantins.
Em 2010, Irajá foi autuado pelo Ibama por desmatar vegetação de preservação permanente, sem permissão ou licença ambiental na Fazenda Aliança, que herdou da mãe e se dedica ao cultivo de eucalipto. A multa aplicada foi de R$ 120 mil.
MP BENEFICIA EMPRESAS QUE NEGOCIAM TERRAS
O substitutivo da MP no Congresso aumentou de 1,5 mil hectares para 2,5 mil hectares a área passível de regularização. A proposta facilita o pagamento de indenizações a quem não cumprir os requisitos necessários e não obriga o autor do pedido de regularização a estar radicado na terra para requerer a propriedade e permite a regularização em nome de empresas. Além disso, retira a exigência de vistoria nos imóveis rurais com até quinze módulos fiscais.
A advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), destaca entre os problemas do relatório de Irajá o aumento do prazo de ocupação de áreas passíveis de regularização. Pela lei anterior, os proprietários devem demonstrar que exerciam o usufruto das terras até julho de 2008 para obter desconto de 50% a 90% no valor mínimo da área, permitindo uma extensão até 2011, com pagamento do valor máximo de referência. Pela proposta, poderiam ser regularizadas áreas ocupadas até 10 de dezembro de 2018. “Abre ainda a possibilidade de uma pessoa já beneficiada por uma regularização ser novamente beneficiada em outra área”, diz.
Essa foi uma das principais alterações introduzidas pelo parecer do deputado Zé Silva, que removeu o novo marco temporal proposto por Irajá, mantendo os prazos originais. A nova versão mantém o enfraquecimento da vistoria obrigatória em áreas embargadas ou autuadas pelo Ibama, a extensão do prazo de renegociação de inadimplência e a regularização de áreas desmatadas, mas que não receberam embargo ou autuação. Além disso, a versão de Zé Silva flexibiliza as condições para desmatamento após a titulação da área, desde que o proprietário adira ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) ou assine Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
Para Batista, a MP tem impacto na comercialização de terras porque áreas griladas podem ser negociadas abaixo do preço de mercado com grandes lucros para quem compra e quem vende. O fato de beneficiar pessoas jurídicas é outro fator que vai ao encontro de quem negocia terras. Entidades estimam que a MP, como está, pode colocar no mercado de 55 a 65 milhões de hectares de terras. A advogada Maíra de Souza Moreira, da ONG Terra de Direitos, diz que o STF já havia excluído, em 2019, a possibilidade de regularização sem vistoria.
Outro advogado da Terra de Direitos, Pedro Martins, diz que a possibilidade de regularização sem vistoria é uma ameaça para comunidades tradicionais, como as quilombolas, e originárias, os indígenas. “Terras ocupadas por esses povos, mas ainda sem um processo de reconhecimento, poderão cair nas mãos de quem reivindicar a propriedade”, afirma o advogado, que atua em Santarém, no Pará. Ele diz que a medida diminui a possibilidade de criação de novos assentamentos, ao tirar as áreas do domínio público e passar para o particular.
Padrasto do relator, Gomes tem duas empresas com interesses diretamente ligados às questões agrárias: a Múltipla Soluções e Tecnologia e a Agroinvest Brasil, as duas de agronomia e consultoria para agricultura e pecuária. Ambas têm sede em Brasília e foram criadas em 2015, no mesmo ano em que Gomes se casou com a então ministra da Agricultura. Foi pela Agroinvest que ele esteve no Catar. Na empresa, ele é sócio de do advogado Arno Jerke Junior, assessor parlamentar da senadora desde julho de 2018.
Jerke é um colaborador de confiança da senadora, seu principal assessor parlamentar. Seu salário bruto em fevereiro foi de R$ 22,9 mil, segundo o site do Senado. Sua relação com a família Abreu é muito mais antiga. Pelas mãos de Katia, ele ocupou a Secretaria Nacional de Desenvolvimento do Cooperativismo do Ministério da Agricultura e depois a diretoria da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Antes, havia sido advogado da CNA e coordenador técnico do instituto ligado à entidade. Embora a senadora não tenha, administrativamente, o cargo de chefe de gabinete, é ele quem assume essa função.
PRINCIPAL ASSESSOR DA SENADORA É O OUTRO SÓCIO
Em julho de 2015, Arno Jerke Junior esteve no oeste da Bahia pelo Ministério da Agricultura. Sua missão era justamente apresentar aos produtores rurais as possibilidades de captação pela Agência Matopiba, uma agência regional de desenvolvimento voltada principalmente para a agropecuária, que seria criada pelo governo. A proposta de criação da agência ainda está em tramitação na Câmara. Na Comissão de Agricultura, o projeto foi aprovado sob a relatoria de Irajá, na época deputado federal. A última movimentação da proposta, ainda em tramitação nas comissões específicas da Câmara, data de setembro do ano passado.
O Matopiba é uma área de expansão do agronegócio entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. A região é marcada por conflitos e denúncias de grilagem de terras. A região é uma das novidades da MP-910. As regularizações anteriores tinham como foco a Amazônia Legal. Desta vez, a proposta permite a regularização no país inteiro. Para Joice Bonfim, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR), a regularização ameaça em especial as margens do Rio São Francisco e terras alagadas no Tocantins. Ambas têm alto grau de ocupação por comunidades tradicionais.
Segundo Evaristo de Miranda, pesquisador da Embrapa que coordenou o Grupo de Inteligência Territorial Estratégica, cerca de 22% do Matopiba encontra-se em áreas que não podem ter atividades agropecuárias, por serem assentamentos de reforma agrária, terras quilombolas, terras indígenas ou unidades de conservação. “Todas as 31 microrregiões do Matopiba possuem áreas como essas, ou seja, é uma realidade bastante presente e à qual a gestão territorial precisa estar atenta”, escreveu.
Foto (Reprodução): vida de senador e dono de imóveis rurais