Um mês após o primeiro registro da doença, número de casos na reserva mais populosa do país já passa de cem; com um sistema de abastecimento ineficiente, famílias ficam até três dias sem água na torneira; acampamentos têm nascentes contaminadas por agrotóxicos
Por Poliana Dallabrida, em De Olho no Genocídio
A população indígena de Dourados, no Mato Grosso do Sul, tem dificuldade para adotar a medida mais simples para enfrentar a maior crise sanitária dos últimos anos no mundo: lavar as mãos. Isso porque a Reserva Indígena Dourados (RID) e os acampamentos contíguos a ela não possuem saneamento básico e o acesso à água é limitado.
Desde o dia 13 de maio, quando o primeiro caso de Covid-19 foi confirmado na reserva, 104 indígenas já contraíram a doença, de acordo com o boletim divulgado nesta quarta-feira (17), pela prefeitura de Dourados. O total de casos no município é de 1.421. Um dos epicentros da doença foi um frigorífico, o da JBS Foods Seara.
Cerca de 17 mil indígenas vivem na reserva mais populosa do país, habitada pelas etnias Guarani, Guarani Kaiowá, Guarani Ñandeva e Terena. A densidade populacional é 5,3 vezes maior que a de Campo Grande.
A quatro quilômetros do centro de Dourados, a reserva de 3,5 mil hectares faz divisa com o anel viário que conecta a cidade à rodovia MG-156, ao lado de plantações de soja, milho, cana-de-açúcar e condomínios de luxo.
“Nesses bairros, a água chega tranquilamente. Todos os moradores que fazem divisa com a aldeia têm água 24 horas”, ressalta Fernando Souza, líder indígena Terena e membro do Conselho de Saúde Indígena de Dourados. “O condomínio tem asfalto, polícia, coleta de lixo. Mas, ao atravessar a rua, não tem nada disso”.
MAPAS MOSTRAM DIFERENÇA ENTRE BAIRROS
Com uma população estimada em 222,9 mil pessoas, Dourados tem Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,747, considerado alto. Segundo o Atlas do Desenvolvimento Humano de 2013, 93,6% da população do município vivia em domicílios com banheiro e água encanada. Só que os indígenas — que trabalham na cidade como garis, por exemplo — estão exatamente entre aqueles com menos acesso.
A incidência proporcional de Covid-19 no município é a quinta mais alta de Mato Grosso do Sul: são 579,6 casos a cada 100 mil habitantes. Dourados tem 34,1% dos casos registrados no estado. Outros três municípios com as maiores médias proporcionais de casos a cada 100 mil habitantes — Douradina, Fátima do Sul e Vicentina — ficam na região, epicentro da doença no estado.
Nas áreas indígenas do município, mais de 71,5% dos domicílios de três das cinco áreas de Dourados com maioria indígena — acima de 76,6% da população — não possuíam abastecimento de água da rede geral em 2010, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), conforme informações do Censo reunidas para o De Olho nos Ruralistas pelo blog Desigualdades Espaciais.
A contraposição em relação às demais áreas do município fica mais evidente quando se observa a distribuição da população indígena pelo município:
A Reserva Indígena de Dourados é composta por duas aldeias, Bororó e Jaguapiru, e conta com cerca 200 quilômetros de rede de abastecimento de água. Em teoria, todas as famílias teriam acesso a água, mas ela não chega de forma contínua, relata Fernando Souza:
— Às vezes, a família tem a torneira em casa, mas não tem água. Quando chega, chega na madrugada e muitas famílias não têm reservatório. Uma parte da reserva chega a ficar dois, três dias sem água.
A escassez obrigou os moradores a fazerem “puxadinhos” para estender o acesso à água, mas a vazão da rede não permite abastecer todos os domicílios. “Segundo análise dos engenheiros da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), a produção desses poços seria suficiente, mas foram feitas tantas emendas que a água já não tem força para alcançar todos os lados”, explica Souza.
FAMÍLIAS SE ABASTECEM COM BALDES
O sistema de abastecimento de água da Aldeia Bororó foi implantado pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) na década de 90. “Com o passar dos anos, ele sofreu ampliações desordenadas devido ao crescimento populacional acelerado, o que deixou o sistema de distribuição de água subdimensionado, provocando pressão baixa ou insuficiência de água”, explica Mara Beatriz Grotta, chefe do Serviço de Edificações e Saneamento Ambiental Indígena do Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena do Mato Grosso do Sul (Dsei-MS).
“Não foi pensado um projeto global, de longo prazo”, completa Fernando Souza. “Foram feitos projetos aos poucos. A população indígena foi crescendo, houve uma dispersão das famílias na área, e água já não chega mais para todos”.
As famílias sem reservatório ou acesso à água precisam encher baldes nos poços da reserva — cinco na aldeia Bororó e sete na Jaguapiru. Em maio, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) doou 120 caixas d’água para tentar amenizar a situação.
Cerca de 3 mil indígenas vivem em acampamentos contíguos à reserva. De acordo com líderes locais, 270 famílias vivem em barracos de lona em nove retomadas — acampamentos que reivindicam territórios tradicionais – no entorno da reserva: Nhu Vera I, Nhu Vera II, Nhu Vera Guasu III, Araticoté, Abaeté I e II, Ivu Vera, Jaihepiru e Itapoty.
Além das condições precárias de moradia, os indígenas que vivem nas retomadas são alvo frequente de ataques de seguranças privados das fazendas da região. Para entender melhor os conflitos indígenas no estado, acesse o site De Olho no Mato Grosso do Sul, um projeto especial desenvolvido pelo observatório.
Para obter água, os moradores desses acampamentos têm três opções: encher baldes nos reservatórios da reserva, cavar os próprios poços subterrâneos ou recorrer às minas e córregos da região. Nesses casos, o risco de contaminação é alto.
O jornal Midiamax mostrou que, na Aldeia Panambizinho, em outra região do município, eles chegam a caminhar dois quilômetros em busca de água contaminada.
AGROTÓXICOS CONTAMINAM AS NASCENTES
A área no entorno das retomadas recebe pulverização aérea de agrotóxicos, que contamina as nascentes usadas pelos indígenas. Como a área dos acampamentos não é regularizada, o governo federal não libera recursos para investimentos em obras de saneamento.
Mesmo a qualidade da água que abastece os moradores não-indígenas de Dourados é comprometida. Entre 2014 e 2017, 27 agrotóxicos foram detectados na rede que abastece o município, segundo informações compiladas no Mapa de Agrotóxicos na Água publicado pela Repórter Brasil e Agência Pública.
Enquanto os indígenas de Dourados padecem para ter acesso à água, a rede municipal, fornecida pela Empresa de Saneamento de Mato Grosso do Sul (Sanesul), passa a menos de um quilômetro da reserva. “O que custa para o município ou para o estado ligar essa rede à da aldeia?”, pergunta Fernando Souza. “Se fizer isso, toda a população vai ter água 24 horas”.
Para o líder indígena, a falta de saneamento reflete o descaso dos gestores municipais e estaduais:
— Eu só tenho valor para o gestor municipal, para os governantes, na época de eleição. Aí, eles vêm todos para a aldeia, porque somos 7 mil eleitores. Na hora de fazer as políticas públicas não conseguem enxergar essas pessoas que mensalmente injetam dinheiro na economia na cidade.
Tanto as ações de saúde indígena quanto as ações de saneamento básico de aldeias indígenas são de responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde. No estado, a Sesai atua por meio do Dsei-MS.
PANDEMIA ATRASOU OBRAS DE AMPLIAÇÃO DA REDE
Em dezembro de 2018, o Ministério Público Federal (MPF) pediu à Justiça que fosse determinado um prazo final para cumprimento de um acordo assinado em abril de 2014 entre a União, representada pela Sesai, e a prefeitura de Dourados para garantir a ampliação da rede de abastecimento e o fornecimento regular de água à reserva indígena.
À época, o Dsei-MS assinou um termo de cooperação técnica com a companhia de saneamento do estado, a Sanesul. Dois anos depois da vistoria do MPF, os problemas persistem e as obras para corrigir e ampliar o sistema de abastecimento de água só foram iniciadas em janeiro deste ano.
Na aldeia Bororó, a mais afetada pela falta de água na reserva indígena, o Dsei-MS está implementando um projeto de reordenamento do sistema, com a ampliação da rede adutora, implantação de reservatórios, setorização da rede de abastecimento, reforma das casas de química e comando e limpeza e manutenção, com a troca de bombas submersas, dos cinco poços que abastecem a área.
“A parte mais importante desta obra será a criação de cinco setores individuais, que atenderão determinadas regiões sem comprometer outras. Cada zona terá seus poços e reservatórios”, explica Mara Grotta, do Dsei-MS. “Com o lançamento da água diretamente na rede, ocorre a perda de carga durante o consumo da população. Com isto, a água não chega em pontos de altitudes elevadas. Estes e demais problemas serão resolvidos com a finalização da obra em andamento”.
A obra, que custou R$ 1,3 milhão, foi realizada pelo setor de Edificações e Saneamento Ambiental Indígena do Dsei-MS com recursos do governo federal. A entrega do projeto finalizado estava prevista para maio, mas, devido à crise do coronavírus, foi prorrogada por mais sessenta dias.
Uma obra semelhante está prevista para começar a partir do dia 22 na Aldeia Jaguapiru, que possui atualmente sete poços. O valor do projeto nessa área está estimado em R$ 1,6 milhão.
INDÍGENAS FICARAM ISOLADOS EM ESPAÇO SUPERLOTADO
Por falta de espaço para cultivo, centenas de indígenas precisam trabalhar fora da reserva, geralmente no setor de frigoríficos e limpeza urbana. A fábrica da JBS Foods Seara em Dourados emprega atualmente trinta indígenas. Foi a partir dali que a Covid-19 se alastrou nas aldeias do município.
Os dez primeiros casos de contaminação pelo novo coronavírus na reserva são de indígenas que trabalham no frigorífico: “Contaminação em aldeia em Dourados (MS) começou na fábrica da JBS, diz cacique“. No dia 13 de maio, uma moradora de 35 anos recebeu a confirmação do teste positivo para Covid-19. Um dia antes, o boletim do Dsei-MS apontava outros cinco casos suspeitos entre indígenas do município.
O vírus se espalhou rapidamente. Cinco dias depois do primeiro caso, trinta indígenas testaram positivo para a doença. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) publicou uma nota no mesmo dia denunciando a negligência de órgãos de saúde estaduais e federais para conter a transmissão comunitária da doença.
Nas aldeias, as casas são apertadas e o isolamento é impossível. No dia 20 de maio, líderes indígenas de Dourados publicaram um pedido de socorro: “Estamos diante de mais um massacre anunciado com a chegada do Covid-19 em nossos Tekohas (territórios indígenas) e apelamos pela nossa sobrevivência”.
Como resposta, o Ministério da Saúde tentou isolar os indígenas contaminados na Casa de Saúde Indígena (Casai) de Dourados, mantida pelo governo federal. O espaço logo ficou superlotado, e os indígenas agora fazem isolamento em uma casa cedida pela diocese do município.
JÁ SÃO QUASE 300 OS INDÍGENAS MORTOS NO PAÍS
Dourados contabiliza as mortes por Covid-19 de forma separada: cinco no município e seis “de outras localidades”. A prefeitura gosta de destacar o número de pessoas recuperadas, repetindo discurso do governo federal.
Segundo o boletim da Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, divulgado ontem, o Mato Grosso do Sul tem 119 dos 3.345 indígenas com casos confirmados de Covid-19 no Brasil. Não foi registrada nenhuma morte. O total de mortes entre os Dseis chegou a 107, mas a pasta ignora os casos urbanos.
As contas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) mostram pelo menos 294 mortos. O número de infectados já chega a 5.613, entre os casos confirmados, atingido 103 etnias.
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Foto principal (Divulgação): prefeitura de Dourados registrou ontem 129 dos 1.421 casos confirmados de Covid-19