Do Ibase
Estamos mergulhados em uma conjuntura de impasses e incertezas, que exige visão estratégica, determinação e sentido de urgência. De um lado, a pandemia com suas ameaças à vida no aqui e agora. De outro, devido a ela, foram postos a nu e convergiram todos os males das corrosivas e destrutivas estruturas e processos em que assenta a globalização capitalista neoliberal. Como nos lembra o equatoriano Alberto Acosta, a pandemia não pode ser vista dissociada do “… patriarcado, colonialismo, discriminação, extrativismos, violências, ecocídios, etnocídios, imperialismos…”. E nós, cidadania brasileira, temos isto tudo combinado com a ameaça fascista e o desgoverno do capitão presidente. Bota desafio para pensar e agir em tal contexto!
O problema é que a pandemia não dá trégua, continua contaminando e ceifando vidas, com respostas descoordenadas e irresponsáveis dos governos, com o governo federal minimizando e ignorando a gravidade da crise sanitária e humanitária em curso. Enquanto lamentamos os milhares de mortos e a dor das famílias que estão perdendo seus entes queridos, ficamos emocionados com o profissionalismo, a dedicação e o compromisso ético de equipes de saúde. Em nossos refúgios, descobrimos que isolamento é também uma forma de solidariedade e cuidado mútuo, de sermos mais sociais e cidadãos, numa crise sanitária desta natureza ameaçadora. Porém, como é enorme o contingente das e dos que não podem parar e se proteger porque o seu trabalho é essencial para o bem estar coletivo. Mas são duras, mal remuneradas e perigosas suas condições de trabalho, ainda mais em plena pandemia! E ainda temos os milhões de concidadãos que não têm como se isolar e se proteger pois estão estruturalmente condenados a viver na miséria e em territórios degradados. A pandemia está, ao seu modo, escancarando as desigualdades e exclusões sociais, o racismo, o machismo, a intolerância, a violência policial e a contínua e fatal “pandemia da fome” que grassam no seio da sociedade brasileira. E apesar disto tudo, temos setores e grupos que dão as costas à tragédia e continuam dando o seu apoio aos projetos fascistas do capitão e aos seus descalabros como administrador mor do país.
Claro, o debate sobre o pós-pandemia já está correndo. Como já escrevi outras vezes, por si só a pandemia e seu impacto pouco mudarão, só desvendam contradições existentes e alternativas possíveis que seriam necessárias para mudar e evitar a barbarização em curso no mundo todo. A fortaleza da aliança do 1% em torno das grandes corporações econômicas e financeiras e o controle que exercem sobre o poder estatal e as instituições públicas, em vista de garantir seus interesses, tem grandes chances de preservar a ditadura do livre mercado, o domínio e uso destrutivo da natureza, um bem comum indispensável a todas as formas de vida, e os sistemáticos retrocessos em termos de direitos de igualdade com liberdade e respeito à diversidade para as grandes maiorias humanas do planeta.
Para ao menos sonharmos com mudanças, não temos como não enfrentar a questão mais estratégica e urgente: preservar a institucionalidade democrática ameaçada pelas propostas e bravatas do capitão, seus asseclas nos ministérios e instituições do executivo federal, a ocupação de amplos espaços de poder por oficiais das forças armadas e o bando de apoiadores fanáticos, defendendo a volta do AI-5, o fechamento do STF e do Congresso, dispostos até ao uso da violência para alcançar seus objetivos. Tal questão conjuntural é condição indispensável para nós do Brasil evitarmos que a barbárie vire regra política logo aí.
A defesa da democracia neste momento exige determinação e coragem para engolir alguns sapos e assim tecer um espectro amplo de alianças de forças pró-democracia. Já se debate a necessidade de uma Frente Ampla democrática. Mas o que precisa ficar bem claro é que não existirá tal frente sem estar no centro um vigoroso ativismo cidadão. E isto não só como trincheira de resistência ao avanço autoritário e fascista e defesa do que ainda nos resta de democracia. Trata-se de forjarmos um complexo e potente movimento cidadão no centro da Força Ampla, como fundamento e força de empuxe da resistência. Mas também e ao mesmo tempo, movimento capaz de apontar para a necessária revitalização futura da democracia, como processo de luta política prenhe de possibilidades constituintes e instituintes de direitos de liberdade e igualdade no respeito à nossa diversidade como povo, sem discriminações e violências, e de transformação democrática ecossocial do poder e da economia, trazendo ao centro os bens comuns e o cuidado de todos por todos e da integridade da natureza, para uma vibrante sociedade brasileira e a cidadania planetária que compartimos.
Como cidadania com perspectiva democrática ecossocial transformadora de tudo que está aí, não temos a opção de desistir de lutar para mudar. Precisamos mudar nós mesmos, pois não podemos priorizar apenas as agendas específicas de cada movimento, que não agregam forças, nem esperar visão estratégica e direção de onde não virá. A desagregação e disputas personalistas das forças de esquerda, centro esquerda e de algum modo democráticas, que tem lá seu quinhão de responsabilidades pela deterioração do quadro político, que abriu possibilidades para a vitória eleitoral do capitão, antidemocrata descarado, não vai criar as condições políticas necessárias para um movimento de envergadura necessária na atual conjuntura brasileira. Há claras tensões entre os poderes democráticos instituídos, o que mostra que pesos e contra pesos ainda operam, evitando o pior. Mas é só. O desempate não acontecerá pela ação do STF e, muito menos, pela “confederação de interesses corporativos” que impera no Congresso Nacional, apesar de também necessários nesta hora. Temos que olhar mais atentamente para o chão da sociedade civil, para os territórios de cidadania, para os sinais que daí afloram. Quem poderá impor agenda para as forças políticas numa Frente Ampla é a cidadania em ação e não o contrário. E aí precisamos, nós mesmos, nos reinventar e criar novas formas de expressão e pressão cidadã, em plena pandemia. Já temos o barulho dos panelaços. E, apesar dos riscos e restrições, já começamos a ocupar as ruas, mostrando que ela é território de cidadania. As bandeiras verdes e amarelas dos fascistas em nosso meio são um disfarce, um embuste, uma forma de subordinação de nosso país ao truculento imperialismo de Trump. Demonstremos e desconstruamos tal trapaça. As cores verde-amarelas que tremulam em nossos corações, para parafrasear o poeta russo Ievtuchenko, são cheias de sonho, esperança e cidadania. Estas são nossas e vamos demonstrar isto pelo ativismo.
Convergências e plataformas de diferentes movimentos sociais já vinham se formando há mais tempo, antes da pandemia e do pandemônio político que nos ameaçam claramente agora. Sem desistir de panelaços, de demonstrações de indignação e repulsa com clamores e faixas desde onde nos refugiamos, sem desistir de recuperar as ruas com as precações necessárias e sempre que possível, precisamos agora encontrar formas de diálogo os mais amplos entre as forças de cidadania ativa, através de redes sociais e trocas on-line, nas limitações sanitárias para realizar grandes encontros. Nas redes digitais, com todas as suas contradições, existe o espaço e a possibilidade de usar a inteligência e a criatividade coletiva para definir o que é estratégico e indispensável para a cidadania, em torno a que agenda e como fazer uma Frente Ampla que evite o pior. A espinha dorsal de uma Frente Ampla democrática efetiva diante das ameaças fascistas, como a história demonstra, sempre nasce da cidadania ativa. E seremos mais efetivos se começarmos desde já definir rumos e caminhos a construir no futuro. Trata-se de uma tarefa de disputa de hegemonia, de projeto de sustentabilidade ecossocial democrática: uma reinvenção do que fazer democrático. Espero contribuir com algumas ideias na próxima crônica, só para trazer meu tijolinho para a construção de imaginários mobilizadores que só farão sentido se elaborados coletivamente.