“Já trabalhou nua?”: processo contra promotora que defende índios no Xingu revela preconceito e machismo

Por Hellen Alves, no DCM

A Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso (FEPOIMT) emitiu nota de apoio à promotora Solange Linhares, afastada por decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso após denúncia realizada pelo Ministério Público Estadual (MPMT). Solange é acusada de suposto desvio de R$ 985,7 mil de Termos de Ajustamento de Condutas destinados a projetos sociais para comunidades indígenas. 

Os projetos seriam “fantasia” ou “produto da imaginação” de Solange servindo para o “deleite” e “prazer” da investigada, segundo trechos da denúncia. O Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público afirma que ela foi tratada com demérito, por meio de nota de apoio à promotora.

A nota emitida pela FEPOIMT, que representa 43 povos indígenas de Mato Grosso e assinada por Crisanto Rudzö Tseremey’wá, da etnia Xavante, presidente da organização desde 2018, ressalta que Solange atuou em defesa de direitos das comunidades indígenas da região de Paranatinga e de Gaúcha do Norte, onde se situam as Terras Indígenas Bakairi, Marechal Rondon, Batovi e a região do Alto Xingu.  

O documento esclarece que a promotora de Justiça levou às aldeias projeto sobre a conscientização do voto livre; regularização de documentos, como certidões de nascimento, RG, CPF, Carteira de Reservista; doação de alimentos e de brinquedos para as crianças e adolescentes indígenas. 

“Queremos dizer também que a doutora Solange tratou os povos indígenas de Paranatinga e de Gaúcha do Norte do mesmo jeito respeitoso, simples e gentil com que tratava os cidadãos não-indígenas que moram nas cidades”, acrescenta a nota. 

Eliane Xunakalo, assessora da FEPOIMT  e liderança Bakairi, conta que recebeu a denúncia contra Solange com indignação. “Conversando com os parentes, sabemos que os projetos  aconteceram, há provas, entrevistas do próprio Ministério Público Estadual. Nos faz observar que a promotora é parceira nossa, e qual o problema dela nos auxiliar?”, comenta Eliane. 

“Solange e os demais servidores da justiça e demais Poderes devem nos tratar igual aos outros cidadãos, porque somos! E o que nos diferencia é a questão social. Se todos  respeitassem, o Brasil estaria  em outro patamar, também somos um dos pilares sociocultural deste país”, conclui ela. 

A promotora também recebeu apoio por meio de notas de caciques do Alto Xingu, da etnia Xavante, da etnia Kuikuro e da etnia Kurâ-Bakairi.

Promotora de Justiça Solange Linhares recebe apoio das lideranças indígenas

Promotora ‘louca’ e projetos para ‘deleite’ 

Em cerca de 20 trechos da denúncia feita pelo procurador-geral de Justiça, José Antônio Borges, e pelo coordenador do Naco Criminal, Domingos Sávio Barros Arruda, os projetos desenvolvidos nas comunidades indígenas são apontamos como “fantasia”, “inventados”, “imaginários” e “fruto da imaginação da acusada”. 

Consta no Artigo 41 do Código de Processo Penal que:

“A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas”.

Dessa forma, a repetição de termos que põem a sanidade de Solange em dúvida pode evidenciar que a promotora foi vítima de gaslighting no decorrer do processo.

Gaslighting é uma forma de abuso psicológico no qual informações são distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade.

A denúncia afirma também que Solange utilizava os recursos das TACs para “seu deleite” e que, “para dar vazão aos seus prazeres, notadamente, à sua paixão pessoal por indígenas, seus costumes, tradições e modo de vida”, utilizava as verbas para se deslocar até as aldeias dos Alto Xingu, “onde dançava, banhava, comia e dormia ao lado dos silvícolas”. 

A palavra “deleite” significa excesso de satisfação; que sente contentamento ou deleitação; prazer, gozo ou delícia. O uso deste termo revela a subjetividade da denúncia e também um certo preconceito em relação ao trabalho realizado por Solange.

No vídeo do depoimento da promotora Solange no âmbito do MPE, o então corregedor-geral Flávio Fachone questionou intensivamente se ela teria ficado nua quando estava entre os indígenas.

“Nesse contato com os índios, nessa aproximação, a senhora chegou a trabalhar de uma maneira a se despir para poder ganhar a confiança? Teve alguma coisa nesse sentido ou não?”, perguntou Fachone.

“Óbvio que uma promotora de justiça não trabalha nua. Eu nunca fiquei nua para trabalhar. Eu te respondo isso bastante ofendida”, disse a promotora visivelmente constrangida e irritada com a pergunta.

Tapi Yawalapiti, futuro cacique e líder indígena do Alto Xingu, conta que acompanhava Solange durante a realização dos projetos em sua aldeia, mas em nenhum momento viu a promotora nua. “Ela é autoridade, ela sabe que não pode ficar nua como a indígena anda na aldeia. Ela tem conhecimento sim, ela pintou o rosto, ela usou o colar, mas vestida”, esclarece ele.

A nota emitida pelo povo Kurâ-Bakairi afirma que a promotora passou a ser alvo de perseguição e violência política ao se aproximar e executar projetos junto a comunidades indígenas.

“Acreditamos que os contatos com lideranças indígenas e visitas periódicas às aldeias servem como forma de ampliação do conhecimento e especialização para defesa dos direitos indígenas, e não “para o seu deleite e prazer, como afirma a denúncia”, esclarece a nota.

Projetos ‘fantasia’

O projeto “Cidadão Xingu” ou “Cidadania do Xingu” nunca existiu e tratou-se tão somente de uma “fantasia” criada por Solange Linhares Barbosa para tentar “justificar” o aporte de recursos de TACs para aquelas entidades e , a partir daí, “utilizá-los, em proveito próprio e/ou alheio, sempre conforme seus interesses e das mais variadas formas”, afirma o procurador Borges. 

Esse projeto que busca ampliar o exercício da cidadania por parte dos povos indígenas, assim como a atuação da promotora Solange Linhares foram abordados pela Revista Lume do Mato Grosso na Edição nº 17 em setembro de 2017:

Reportagem publicada na imprensa local sobre o projeto “Cidadão Xingu” e sobre a promotora

Tapi Yawalapiti conta que Solange ajudou na correção dos dados na Certidão de Nascimento e RG dos membros da comunidade. “Nós indígenas temos RG e Certidão de Nascimento com nomes e datas erradas, ela mandou corrigir isso tudo isso. Isso é muito importante no trabalho dela”, afirma a liderança Yawalapiti.

“A Escola Sonhada” também é apontado como “fantasia” servindo apenas para o suposto desvio de TACs, contudo, a promotora Solange concedeu entrevista ao Ministério Público do Estado do Mato Grosso sobre esse projeto e outros que estavam sendo realizados no Xingu.

“O Ministério Público teve acesso a um sonho apresentado pelo comunidade indígena Seduc há 10 anos, eles apresentaram um projeto arquitetônico em formato de cocar indígena. Me apresentaram ali durante reuniões por conta de um inquérito civil que apura justamente essa questão da educação indígena no Xingu e passou a agregar parceiros”, esclarece Solange à entrevistadora Cristina Gomes.

O projeto foi pauta de uma reunião realizada no dia 28 de fevereiro de 2018 entre representantes do Escritório das Nações Unidas para Serviços de Projetos (Unops), Ministério Público Estadual e Secretaria de Estado de Educação (Seduc), realizada na sede da Procuradoria Geral de Justiça.

Essa reunião virou notícia no site do Ministério Público do Estado do Mato Grosso e, de acordo com o secretário-geral de Gabinete da PGJ, promotor de Justiça Arnaldo Justino da Silva, o Escritório das Nações Unidas para Serviços de Projetos demonstrou interesse em auxiliar o Estado e o Ministério Público no planejamento para viabilização do projeto piloto e a parceria seria viabilizada por meio de um Termo de Cooperação Técnica.

Matéria publicada sobre o projeto “Escola Sonhada” no site do MPMT em fevereiro de 2018

O projeto “Casa do Papai Noel” que promovia a entrega de presentes para crianças é apontado como “imaginado” por Solange na denúncia. A execução do projeto repercutiu na imprensa local e também é citado nas notas de apoio emitidas pelas lideranças indígenas.

Segredo de Justiça

Solange Linhares e a defesa da promotora preferiram não comentar sobre o caso que corre em segredo de Justiça.

***

Veja as Notas de Apoio e trechos da Denúncia na publicação original do DCM

Foto: Solange Linhares junto ao povo Bakairi

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

17 − dez =