Entidades cristãs receberam quase 70% da verba federal para comunidades terapêuticas no primeiro ano de governo Bolsonaro

Dinheiro público financiou CTs denunciadas por violações de direitos humanos, incluindo LGBTfobia e desrespeito à liberdade religiosa

Por Mariama Correia, Agência Pública

Kleidson Oliveira Bezerra, 43 anos, andou quase 40 quilômetros até encontrar uma rodovia. Era madrugada quando ele fugiu de uma comunidade terapêutica (CT), em Minas Gerais, depois de ter sido forçado pelo pastor a capinar, mesmo estando com a mão ferida em um acidente sofrido antes da internação. Somente na fuga se deu conta de que estava a quatro horas de Belo Horizonte. Alguns dias antes, ele tinha entrado na Kombi de uma igreja – da qual nem lembra o nome –, convencido por missionários que abordavam moradores de rua prometendo libertação do uso abusivo de drogas.

Durante anos, após a experiência traumática, Kleidson rejeitou qualquer oferta de tratamento, até conhecer o Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Nessas unidades ligadas ao SUS, transtornos relacionados ao abuso de álcool e outras substâncias psicoativas são tratados sem internação obrigatória, como ocorre nas CTs. “Fui tratado pelo nome, como gente. Sentia que estava recuperando minha dignidade”, lembra.

Kleidson se tornou um defensor dos Caps e dos direitos dos usuários de drogas como vice-presidente do Coletivo de Luta Antimanicomial Nacional e integrante do serviço de abordagem a pessoas em situação de rua e do Conselho de Saúde de Sobradinho, no Distrito Federal. “O problema das comunidades terapêuticas no Brasil é que a maioria é controlada por grupos religiosos”, diz. “Eles privam o sujeito da liberdade, exploram o trabalho e aproveitam a vulnerabilidade para doutrinar. Transformar a pessoa em um produto da igreja.”

Kleidson Oliveira Bezerra é vice-presidente do Coletivo de Luta Antimanicomial Nacional – Agência Câmara de Notícias

Segundo levantamento inédito da Agência Pública, comunidades terapêuticas de orientação cristã receberam quase 70% dos recursos enviados pelo Ministério da Cidadania a essas entidades no primeiro ano de governo de Bolsonaro. Dos aproximadamente R$ 150,5 milhões de repasses a 487 instituições contratadas para oferecer tratamento aos usuários de drogas no Brasil, pelo menos R$ 41 milhões foram para CTs notoriamente evangélicas e R$ 44 milhões para católicas, apurou a Pública com o cruzamento dos dados do mapa geral das comunidades terapêuticas, do próprio ministério, e informações disponibilizadas nos sites e canais oficiais das entidades.

Mais de 60% das CTs contratadas pelo ministério da Cidadania em 2019 têm ligações diretas com grupos religiosos cristãos e/ou são presididas por sacerdotes, como padres, missionários e pastores. Na maioria dessas casas, práticas como leitura da bíblia, cultos, missas e orações fazem parte do tratamento oferecido aos usuários de drogas.

Os maiores contratos também são com CTs cristãs. No topo da lista está o Grupo de Assistência à Dependência Química Nova Aurora, que recebeu R$ 1,6 milhão. O segundo maior volume de recursos (R$ 1,3 milhão) foi para a Escola de Treinamentos Missionários, do grupo evangélico Desafio Jovem. No ano passado, o Ministério da Cidadania pagou R$ 11,8 milhões a unidades do Desafio Jovem, ONG fundada por pastores da Assembleia de Deus nos Estados Unidos.

Bruno Fonseca/Agência Pública

Governo contratou organizações acusadas de violações de direitos humanos

O dinheiro público financiou também comunidades terapêuticas denunciadas por violações de direitos humanos, incluindo desrespeito à liberdade religiosa. É o caso do Centro de Recuperação Álcool e Drogas Desafio Jovem Maanaim, da ONG evangélica Desafio Jovem, que recebeu R$ 1 milhão do Ministério da Cidadania para financiar 75 vagas de tratamento gratuito em três unidades.

Internos da entidade disseram que eram punidos com tarefas, como lavar pratos, quando se negavam a participar de cultos. Também há relatos de falta de psicólogos ou psiquiatras e de LGTBfobia. As denúncias estão em um relatório de inspeção do Ministério Público Federal (MPF) com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Conselho Federal de Psicologia, publicado em 2018.

Com a troca de gestão no MPF no ano passado, os grupos de trabalho que continuariam fiscalizando as CTs foram desfeitos, mas o relatório sobre violações teve repercussão internacional. “A Comissão Interamericana de Direitos Humanos orientou o Estado brasileiro a não financiar as entidades denunciadas. Os contratos mostram que o governo federal desconhece as comunidades terapêuticas no Brasil, porque não há fiscalização”, avalia Lúcio Costa, perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

Outra citada no relatório é a Associação Beneficente Caverna de Adulão, no Distrito Federal, que recebeu R$ 844 mil do Ministério da Cidadania. O documento do MPF diz que não havia “atendimento personalizado” na CT, ou seja, que considerasse particularidades de cada interno. Criada pelo pastor Lúcio Mendonça, a instituição evangélica destaca, em seu site, “acompanhamento técnico-profissional coordenado por teólogos, pastores” como parte do tratamento. Na internet, circulam relatos de que essa mesma CT estaria rejeitando pessoas que não apresentam teste para Covid-19.

“Estão cobrando um exame caro”, reclama o vice-presidente do coletivo de luta antimanicomial nacional, Kleidson Oliveira. Ele mostra um vídeo, recebido no WhatsApp, em que um idoso denuncia o acolhimento negado por não ter o teste, mesmo não estando com sintomas. A exigência do exame não faz parte da cartilha que orienta o funcionamento das comunidades terapêuticas durante a pandemia. As medidas determinadas pelo governo federal, no entanto, não estão impedindo contaminações, como mostramos nesta reportagem.

A Caverna de Adulão e a Jovem Maanaim não enviaram respostas até publicação da reportagem. O Ministério da Cidadania não respondeu sobre o financiamento das CTs denunciadas por violações de direitos humanos até a publicação desta reportagem.

CTs ganham força no governo Bolsonaro

As comunidades terapêuticas estão no centro da política nacional antidrogas do governo Bolsonaro, que aponta para a abstinência como única solução viável. Segundo o próprio Ministério da Cidadania, a quantidade de vagas financiadas pelo governo federal nessas entidades cresceu de 2,9 mil, em 2018, para aproximadamente 11 mil, em 2019.

A expectativa era que o número chegasse a 20 mil este ano, o que representa R$ 300 milhões em contratos. É quase o dobro dos R$ 150,5 milhões contratados no ano passado – embora o valor inicialmente anunciado, de R$ 153,7 milhões, não tenha sido totalmente alcançado por cancelamentos e/ou rescisões de contratos, segundo o Ministério da Cidadania, que não detalhou quais foram os acordos atingidos nem o motivo dos cancelamentos. O valor previsto para 2020 também supera ao orçamento anual dos Caps (R$ 158 milhões), que trabalham com a perspectiva de redução de danos (uma estratégia focada em diminuir os riscos à saúde do usuário, que não visa à abstinência) e com equipes multidisciplinares, formadas por psicólogos e médicos.

“O recurso público está centralizado nas comunidades terapêuticas, quando o ideal é o tratamento intersetorial, em liberdade e no território de residência do paciente”, observa Luciano Gomes, do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. “Há um movimento de reforço das comunidades terapêuticas, inclusive com a recente regulamentação do acolhimento de adolescentes nessas casas pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad)”, reforça Marisa Helena Alves, do Conselho Federal de Psicologia e coordenadora da Comissão Intersetorial de Saúde Mental (CISM).

Até agora, contudo, as contratações de 2020 não foram feitas. Por causa da pandemia, o edital lançado em dezembro passado foi prorrogado em junho. Porém, o Ministério da Cidadania elenca 113 instituições cadastradas em 2019, o que seria, segundo pessoas ligadas ao setor, uma primeira etapa para a conquista do contrato.

Essa lista prévia mantém o padrão de contratação de entidades religiosas. Com informações disponibilizadas pelos canais oficiais dessas instituições, a Pública apurou que quase 60% das entidades já listadas são ligadas a igrejas ou organizações de matriz cristã. Pelo menos 40% das entidades são declaradamente evangélicas, têm relações diretas com igrejas ou entidades evangélicas e/ou são geridas por pastores. Católicas são quase 20%.

Proselitismo político e religioso

Além de aumentar repasses do Orçamento Executivo, no ano passado, a Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (Senapred), gerida pelo médico Quirino Cordeiro e ligada ao Ministério da Cidadania, de Onyx Lorenzoni, elaborou uma cartilha para orientar o envio de emendas parlamentares às comunidades terapêuticas. É uma forma de aumentar repasses federais às entidades.

Os congressistas aprovaram R$ 102 milhões em emendas para CTs em 2019, segundo levantamento do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). “Parlamentares sempre destinaram verbas às CTs dos seus currais eleitorais. Com a cartilha, o governo federal institucionalizou essa captação. É algo inédito”, observa Leonardo Pinho, vice-presidente do Conselho de Direitos Humanos e da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).

As maiores emendas foram propostas por integrantes de frentes religiosas no Congresso, como a católica e a evangélica. Alguns parlamentares dessas bancadas integram também a frente em defesa das CTs e outros têm negócios com estas.

Mais de 70% das emendas (R$ 72,6 milhões) foram aprovadas pelo relator-geral do Orçamento Federal, o deputado federal Domingos Neto (PSD-CE). Ele é membro das bancadas evangélica e católica e da Frente Parlamentar em Defesa das Comunidades Terapêuticas.

Bruno Fonseca/Agência Pública

O segundo maior valor (R$ 2,5 milhões) foi determinado pelo senador Eros Biondini (Pros-MG), coordenador da Frente Parlamentar em Defesa das Comunidades Terapêuticas. Cantor católico, Biondini é fundador da Missão Mundo Novo, uma organização religiosa que promove eventos e “mantém um local de triagem e encaminhamento de usuários de drogas às comunidades terapêuticas e de apoio e orientação às famílias”, como descreve o site do senador.

Biondini é signatário das frentes católica e evangélica no Congresso. A católica é presidida pelo deputado federal Givaldo Carimbão (Avante-AL). O irmão de Carimbão, Gileno Sá Gouveia, era o nome à frente da Associação de Acolhimento para Dependentes Químicos Divino Pai Eterno, em Feira Grande (AL), até seu falecimento, em 2016. No ano passado, a entidade foi contratada pelo Ministério da Cidadania por R$ 281,3 mil para oferta de 20 vagas.

Da bancada católica, o deputado federal Eduardo da Fonte (PP-PE) destinou o terceiro maior montante para as CTs em emendas no ano passado (R$ 2 milhões). O pernambucano é correligionário do pastor Cleiton Collins (PP-PE), deputado estadual em Pernambuco e dono das comunidades terapêuticas Saravida com sua esposa, a vereadora Michele Collins (PP-PE).

Em maio do ano passado, Cleiton Collins acompanhou o então ministro da Cidadania Osmar Terra no lançamento de um programa de oferta de vagas de qualificação que contemplava internos das CTs. Também no ano passado, três unidades da CT Saravida entraram no cadastro do governo federal de comunidades terapêuticas, o que seria, como dissemos, um primeiro passo para a organização fechar contratos com a União.

Na batalha por verbas, o casal Collins defende a inserção das CTs no SUS em Pernambuco – como mostrou a Marco Zero Conteúdo – e o acolhimento de pessoas em situação de rua nessas entidades, autorizado durante a pandemia por uma portaria da União. “Os grupos religiosos que controlam as CTs estão avançando na política nacional da população de rua como uma nova fonte de recursos públicos”, analisa Leonardo Pinho.

A lista de políticos donos de comunidades terapêuticas ainda tem outros nomes ilustres, como o do ex-senador Magno Malta (PL-ES), o deputado federal Marco Feliciano (Republicanos-SP) e o deputado federal Pastor Sargento Isidório (Avante-BA). Isidório, que se diz ex-gay, é dono da Fundação Doutor Jesus, onde ameaçava internos com um porrete. Ele é pré-candidato à prefeitura de Salvador.

Tratamentos mesclam espiritualidade e laborterapia

Segundo estimativas, o Brasil tem aproximadamente 2 mil CTs em funcionamento. Muitas atuam na informalidade, ao largo das fiscalizações.

A convergência com grupos religiosos ocorre desde a criação das CTs, que surgem de irmandades anônimas (como a Alcoólicos Anônimos) e igrejas. No Brasil, “82% das entidades se vinculam com igrejas e organizações religiosas, notadamente as de matriz cristã”, segundo perfil das CTs traçado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2018. O cultivo da espiritualidade e a laborterapia – tratamento através do trabalho – são comuns a mais de 90% das entidades.

“Mesmo instituições não ditas religiosas fazem uma hibridização de métodos espirituais e técnicos”, observa a coordenadora da pesquisa do Ipea, Maria Paula Gomes. Para ela, a agenda religiosa é perigosa porque torna a entidade “um empreendimento moral, que obstrui uma discussão sobre a política de drogas”.

O fortalecimento de CTs ligadas a grupos cristãos conservadores segue, segundo Maria Paula, na esteira da ascensão desses grupos na política brasileira. Ela lembra que a primeira oportunidade de financiamento das CTs junto ao governo federal ocorreu ainda em 2010, pelo programa ‘‘Crack é possível vencer”. E acrescenta que, desde então, os repasses só cresceram, deixando outras abordagens de lado.

“Nenhum método é eficaz por si próprio. O que tem sido preconizado é um método terapêutico singular e com métodos complementares”, diz Maria Paula. “Um dos maiores problemas da política antidrogas atual é o foco na abstinência. E que muitas vezes, nas CTs, o sucesso do tratamento é medido pela conversão espiritual do indivíduo. Além de que, sem o tratamento apropriado, as pessoas não são preparadas para enfrentar a realidade do lado de fora da instituição e, por isso, muitas voltam ao uso abusivo de drogas depois de deixarem as casas de recuperação.”

Crédito: Andre Borges/Agência Brasília

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