Governo Bolsonaro, que liberou R$ 1,2 trilhão aos bancos, alega “falta de orçamento” e barra auxílio de R$ 50 mil a médicos e enfermeiros vitimados por covid. E mais: AstraZeneca cobrará caro para liberar produção da vacina de Oxford
por Maíra Mathias, em Outra Saúde
VETO À INDENIZAÇÃO
O Brasil deve chegar nesta semana à trágica marca de cem mil mortes pelo novo coronavírus. Em julho, o país liderou o ranking mundial, acumulando 32.919 vítimas fatais da pandemia. Sabemos há algum tempo que nossa liderança macabra também se estende às mortes dos profissionais de saúde. A categoria mais atingida é a enfermagem, que já perdeu ao menos 325 trabalhadores, segundo seu conselho federal.
Nesse sentido, uma das primeiras iniciativas a ganhar fôlego no Congresso durante a pandemia foi o projeto de lei 1.826. Apresentado pelos deputados Fernanda Melchionna (PSOL/RS) e Reginaldo Lopes (PT/MG) em meados de abril, o texto previa o pagamento de indenização para trabalhadores da saúde que tenham ficado permanentemente incapacitados devido à infecção pelo Sars-CoV-2 enquanto atuavam na linha de frente. Depois, o Senado incluiu também os dependentes desses profissionais.
Na época, o Ministério da Economia se manifestou contrariamente à aprovação do projeto, prevendo um impacto de R$ 1,7 bilhão a R$ 3,7 bilhões no orçamento da previdência social. O PL foi aprovado no último dia 14 e dependia da sanção presidencial.
Pois, ontem, Jair Bolsonaro vetou integralmente o projeto. A Presidência, contudo, não lança mão do estudo feito pela pasta da Economia, mas justifica que o texto foi barrado por falta de estimativa do impacto orçamentário por parte do Congresso. Também menciona “questões jurídicas”. Primeiro, porque o PL criaria uma despesa a ser paga também por estados e municípios a seus servidores (embora o texto fale que a despesa seria de responsabilidade da União). Segundo porque o PL violaria a lei de calamidade pública que veda a criação de despesas continuadas durante seu prazo de vigência. Fica a dúvida sobre se isso faz sentido, já que o projeto circunscreve a compensação financeira ao período de emergência sanitária.
O texto previa indenização de R$ 50 mil pela incapacitação ou óbito; a cobertura das despesas com funeral; e criava um adicional de, no mínimo, mais R$ 50 mil no caso de o profissional morto deixar dependentes com deficiência.
PRORROGAÇÃO DO AUXÍLIO
No começo de junho, quando o auxílio emergencial de R$ 600 estava prestes a caducar, a equipe econômica começou a falar com jornalistas que pretendia estender o benefício com um valor bem menor, de R$ 200. Para isso, seria necessário enviar ao Congresso outro PL – já que a lei 13.982, que criou o auxílio, permite que ele seja prorrogado pelo Executivo, desde que o valor permaneça igual. Além do balão de ensaio sobre a redução do benefício, Paulo Guedes & cia começaram a falar sobre um programa que “enterraria” o Bolsa Família, batizado de Renda Brasil. Nas primeiras reportagens sobre o assunto, parecia que a intenção era tocar as duas pautas juntas.
Agosto mal começou e parte da história já se repete. Ontem, repercutiu na imprensa a intenção do governo em prorrogar o auxílio com o valor menor, de R$ 200. Seriam pagas mais quatro parcelas, estendendo o benefício até o fim do ano. Mas há uma diferença nas ambições da equipe econômica, que parece ter perdido o ímpeto de apresentar em 2020 um projeto para substituir o Bolsa Família. O prazo para o envio do Renda Brasil foi jogado para 2021 em mais uma demonstração de que propor não é o forte do governo.
A propósito: o senador Eduardo Braga (AM) apresentou ontem uma PEC que cria o direto à renda básica para todos os brasileiros em situação de vulnerabilidade. A proposta é a primeira do gênero que defende a flexibilização do teto de gastos para permitir a criação do benefício.
A MP DA VACINA
O Ministério da Saúde redigiu uma medida provisória para viabilizar financeiramente a fabricação da candidata a vacina contra a covid-19. A MP, que está sendo analisada pela pasta da Economia, prevê a autorização de um crédito extraordinário de R$ 1,9 bilhão. A maior parte desse valor irá para a farmacêutica AstraZeneca, que detém a licença sobre a tecnologia desenvolvida pela Universidade de Oxford, ainda na fase dos testes. Desse total, R$ 522 milhões serão aplicados no processamento do imunizante e outros R$ 95 milhões serão investidos na Fiocruz.
Ontem, o secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério, Hélio Angotti, afirmou que, caso seja aprovada, a vacina será aplicada primeiro no grupo prioritário, composto por idosos, pessoas com comorbidades, profissionais de saúde, professores, agentes de segurança pública, motoristas de transporte público, indígenas e população carcerária. Ele também informou que a pasta encomendou 110 milhões de seringas e agulhas para que as cem milhões de doses sejam ministradas.
Ainda de acordo com ele, o Ministério busca “soluções alternativas” caso a vacina de Oxford se mostre ineficaz. Mas nenhum outro acordo em vista possibilitaria a transferência de tecnologia para o país.
AS ORIGENS DA PANDEMIA
Ontem, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou que a dupla de especialistas enviada à China para estabelecer os parâmetros da investigação sobre a primeira infecção do novo coronavírus concluiu seu trabalho. Agora, explicou Tedros Ghebreyesus, um time composto por mais gente vai começar os estudos epidemiológicos em Wuhan. A composição da equipe e o calendário de trabalho ainda não foram divulgados.
E o mundo ultrapassou a marca dos 18 milhões de infecções registradas do novo coronavírus.
VETO DERRUBADO
Gilmar Mendes derrubou ontem um veto de Jair Bolsonaro à lei que regulamenta o uso obrigatório de máscaras de proteção individual. O ministro do STF retomou a parte da redação aprovada pelo Congresso que prevê o uso do equipamento de proteção nas prisões e nos estabelecimentos onde jovens cumprem medidas socioeducativas. Isso porque o presidente acrescentou esse veto depois que a lei já havia sido publicada no Diário Oficial. Por esse mesmo motivo, outros vetos bastante graves – como a liberação do uso da máscara em lojas, templos religiosos, escolas, etc. – continuam valendo, pois saíram junto com a lei.
Em tempo: o número de casos confirmados na população carcerária aumentou 134% entre 28 de junho e 27 de julho. Em comparação, a média nacional cresceu 82% no período. Os dados são do Departamento Penitenciário Nacional (Depen).
VAZIOS ASSISTENCIAIS CONTINUAM
Milhares de leitos de UTI foram criados no país durante a pandemia. Mas a nova infraestrutura espelha um problema para lá de antigo: a desigualdade regional e entre SUS e setor privado. Os dados foram divulgados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que apontou um aumento de 21.359 leitos entre janeiro e junho – sendo 19.825 exclusivos para o tratamento da covid.
Olhando para o total de novas UTIs, 12,3 mil delas foram instaladas em hospitais privados, e a grande maioria (11.061) para a pandemia. Isso deixa o SUS com apenas 44% dos leitos de tratamento intensivo abertos para o tratamento do novo coronavírus. E 20% deles estão em hospitais de campanha que já começam a ser desativados em vários lugares.
Além disso, a maioria dos leitos foi criada no Sudeste, sendo a região Norte a menos beneficiada, embora seja aquela onde há mais vazio assistencial. E, mesmo por lá, também se constata concentração. Amazonas, Roraima e Amapá só abriram UTIs nas capitais.
Na última reunião do Conselho Intergestores Tripartite (CIT), realizada na quinta, os gestores defenderam a manutenção dos leitos temporários – que respondem por 92% das UTIs abertas na pandemia nas contas do CFM. De acordo com a Folha, o conselho dos secretários estaduais de saúde enviou um ofício ao ministério pedindo a continuidade dos repasses para sua manutenção. “O investimento nessa nova estrutura nunca é desperdício, e precisa ser entendido como imprescindível”, defendem esses gestores.
HECATOMBE
O site da Piauí comparou os números brasileiros na pandemia com os do resto do mundo. As conclusões ajudam a dimensionar o tamanho da tragédia por aqui, dando concretude a informações que, isoladas, já perderam a capacidade de chocar. Alguns exemplos: A avenida Atlântica, em Copacabana, concentra a mesma quantidade de mortos que a cidade de Pequim, onde moram 21 milhões de pessoas. Os óbitos registrados em um único hospital carioca equivalem ao dobro das mortes registradas em toda a Coreia do Sul. Só a cidade de São Paulo registrou mais mortes do que a Alemanha. Pernambuco sozinho concentra tantos óbitos quanto toda a América Central. E as mortes entre indígenas já ultrapassaram as registradas na região da Sicília, na Itália.
A MORTE DA JOVEM INDÍGENA
Cinco agentes públicos se tornaram réus por negar atendimento a uma jovem indígena. Joice tinha 14 anos, morava na Reserva Indígena de Dourados (MS) e foi vítima de uma parada cardíaca no ano passado durante uma atividade esportiva no colégio. Ao buscar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), a diretora da escola e a médica da unidade básica de saúde da reserva ouviram não. Ao apelar para o Corpo de Bombeiros, também. A adolescente morreu.
O caso foi investigado pelo Ministério Público Federal (MPF) que concluiu que, entre 2012 e 2019, vigorou no Samu de Dourados a proibição ilegal de que ambulâncias e profissionais de saúde entrassem na reserva, onde moram 15 mil indígenas. A ordem teria sido formalizada pelo ex-coordenador do órgão, Eduardo Antônio da Silveira, e seguida pelos seus sucessores no posto: Jony Santana e Renato Vidigal. Todos discriminaram apenas a reserva indígena sob a alegação de que as equipes de saúde não estariam seguras se lá entrassem. E ainda por cima afirmavam que a decisão tinha respaldo do MPF – alegação que o órgão diz ser mentirosa.
Além deles, se tornaram réus a atendente do Samu e o sargento do Corpo de Bombeiros que também recusou atendimento, desta vez sob a justificativa de que a responsabilidade seria da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do governo federal.
O episódio não é isolado e lideranças relatam que acabaram aceitando que os próprios indígenas transportassem pacientes até o lado de fora da reserva, onde a ambulância do Samu aceitava estacionar. “É perigoso manusear um paciente em estado grave e transportá-lo em um veículo não adequado. Além disso, quando esperávamos o aparato policial, por vezes, levavam horas para chegar. Quando é urgência, um minuto de atraso já coloca em xeque a vida da pessoa. Fizemos isso por anos. Sempre nos trataram com muita negligência”, constata Fernando Souza, do conselho distrital de Saúde Indígena, em entrevista à Agência Pública. “A única justificativa é a discriminatória, racista. Não há outra explicação. É entender que pessoas têm menos direitos do que outras. Se a mesma situação tivesse ocorrido em qualquer outro bairro da cidade, em especial, algum de classe média alta, isso não teria ocorrido”, avalia por sua vez o procurador Marco Antônio Delfino.
JULGAMENTO
Ontem, o ministro Luís Roberto Barroso criticou o governo federal durante seu voto no julgamento da ação que busca assegurar medidas de proteção à saúde dos indígenas durante a pandemia, com a instalação de barreiras sanitárias que impeçam invasões. “A remoção dos invasores das terras indígenas é medida imperativa, imprescindível e é dever da União. É inaceitável a inação do governo federal em relação a invasões em terras indígenas. Inclusive porque essas invasões vêm associadas a prática de diferentes crimes ambientais, não apenas um oferecimento de grave risco para os indígenas. Essas invasões são para a prática de crimes, como desmatamento, queimadas, como a extração ilegal de madeira e a degradação da floresta”, disse. O julgamento continua amanhã, quando os outros ministros do Supremo devem votar.
MILITARES E SALLES
O Ministério do Meio Ambiente está defendendo extinguir “urgentemente” a meta de redução de desmatamento nos biomas brasileiros. O plano plurianual é recente: foi aprovado em dezembro passado pelo Congresso e sancionado por Jair Bolsonaro. Nele, a União prevê uma diminuição de 90% no desmatamento e nos incêndios florestais precisa ser alcançada até 2023. Os planos de Ricardo Salles para a Amazônia – objeto de preocupação internacional – incluem não uma meta, mas um teto para o desmatamento, que não poderia avançar sobre 390 mil hectares da vegetação nativa. O despautério mereceu um breque do Ministério da Economia, que observou em uma nota técnica obtida pelo Estadão que a proposta protegeria apenas 0,07% da cobertura vegetal amazônica.
No El País Brasil há outra reportagem que dá conta do fracasso do governo em preservar a Amazônia – ou do sucesso em favorecer o desmatamento, dependendo do ponto de vista. O foco é o papel do Exército nessa história. A Operação Verde Brasil 2, coordenada pelo vice Hamilton Mourão, mobilizou milhares de militares e centenas de recursos, mas não nos lugares certos, segundo fontes do Ibama ouvidas pelo repórter Gil Alessi. Isso porque há cinco áreas que concentram quase 45% do desmatamento da região. Os militares até estão atuando nelas, mas priorizam ações que não atacam os focos do desmatamento e queimadas ativos, tampouco os garimpos ilegais. Eles preferem bloquear rodovias e enxugar gelo, apreendendo madeira já derrubada.
Falando em militar, o general Braga Netto foi diagnosticado com o novo coronavírus. Segundo a Casa Civil, ele está assintomático. É o sétimo ministro infectado.
IMPACTOS DURADOUROS
A foz do rio Doce ainda está contaminada por rejeito de mineração, quase cinco anos depois do rompimento da barragem da Samarco em Mariana (MG). Minério de ferro e outros metais pesados estão presentes nos músculos e fígados dos peixes em concentrações prejudiciais ao consumo humano. São substâncias como o cádmio, que teve aumento de nada menos do que 36.000% em comparação com o índice verificado antes do crime socioambiental. O acompanhamento da situação vem sendo feito semestralmente por universidades públicas. Por conta da pandemia, a coleta que seria feita em agosto teve de ser adiada.
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Marcello Casal Jr/Agência Brasil