“Os povos indígenas estão sendo duplamente afetados, inclusive com sinais crescentes de racismo e machismo por parte de algumas elites e autoridades, a exemplo do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que acaba de ser denunciado no Tribunal Penal Internacional de Haia por crimes contra a humanidade e genocídio por seu descaso consciente em face da pandemia e da crise de saúde”, escreve Jesus González Pazos, membro da organização de cooperação ao desenvolvimento Mugarik Gabe, em artigo publicado por Naiz, com tradução do Cepat.
9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas. Poderíamos pensar que é mais um dia daqueles que a Organização das Nações Unidas buscou implementar, ao longo do ano, e que contém uma diversidade, por vezes um tanto fantasmagórica, de comemorações variadas.
No entanto, os povos indígenas não são fantasmas. Ao contrário, hoje, somam aproximadamente 400 milhões de pessoas. Um pouco mais de 5% da população mundial, ainda que, ao mesmo tempo, engrossem em 15% os números globais do empobrecimento. E, apesar disso, em seus poucos territórios (11%) souberam conservar 80% da biodiversidade do planeta. Isso quando a crise climática que já nos atinge nos questiona e demonstra radicalmente que o modelo de desenvolvimento do capitalismo não só é inviável, mas também perigoso para a existência humana e para o planeta.
Acreditamos, portanto, que vale a pena que o mundo pare um dia para pensar na enorme riqueza de conhecimentos, gestão da natureza, culturas, modos de vida que esses povos oferecem ao planeta, mas também para refletir sobre a violação sistemática de direitos em que vivem, o que ocorre não apenas um dia, mas 365 dias por ano, até acumular décadas e séculos de todos os tipos de injustiças, perseguições e mortes. E, agora, tudo isso é agravado pela incidência da pandemia COVID–19 que os atinge de forma brutal, diante do abandono, consciente em muitos casos, de diferentes governos.
Em maio passado, mais de 45 organizações, coordenações e redes de cooperação do Estado espanhol tornamos públicos um documento com o título “Pandemia, Direitos e Povos Indígenas”. Nele expressávamos nossa preocupação com o impacto desta epidemia na América Latina, com especial referência aos povos indígenas. Fazíamos eco às notícias que chegam diariamente através dos meios de comunicação e das próprias organizações indígenas. Ambos reafirmam o fato inegável de que o coronavírus está colocando em risco não apenas a vida de pessoas, mas, em alguns casos, a própria existência de diferentes povos naquele continente. É sabido que hoje toda a América se tornou o epicentro da pandemia mundial e, dentro dela, por exemplo, na bacia amazônica, a doença está totalmente fora de controle.
Insistíamos em um fato que o próprio sistema internacional reconhece há décadas, embora sistematicamente não o cumpra. Como povos, possuem direitos individuais e direitos coletivos e esta é uma premissa que deve marcar a visão e a relação com eles também no enfrentamento da atual pandemia. Uns e outros não podem ser adiados ou substituídas por medidas urgentes de simples ajuda humanitária, às quais a cooperação começa a ser reduzida. A solidariedade não é eficaz se não for recarregada, endossada, no quadro do exercício dos direitos que lhes correspondem como povos.
Nas últimas décadas, como sujeitos políticos, os povos indígenas alcançaram avanços importantes diante das diferentes sociedades e das instituições estatais e internacionais no que se refere ao reconhecimento de seus direitos. Avanços constitucionais, desenvolvimentos legislativos, instrumentos internacionais de direitos humanos, estratégias específicas de cooperação são a prova disso. Mas também destacávamos que a gravidade da atualidade põe em xeque todos esses avanços, caso não sejam articulados às políticas e medidas necessárias para tornar efetivos os direitos conquistados e enfrentar a ameaça da pandemia. O lema de não deixar ninguém para trás foi amplamente assumido, mas esperamos que esta decisão inclua não somente as pessoas, mas também seus direitos. Estes não podem ser relegados para segundo plano.
Não faremos um balanço da situação da América Latina, mas queremos enfatizar que é uma das regiões do mundo com os mais altos níveis de desigualdade e injustiça social, agora exacerbados pela pandemia. Nesse cenário, os povos indígenas estão sendo duplamente afetados, inclusive com sinais crescentes de racismo e machismo por parte de algumas elites e autoridades, a exemplo do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que acaba de ser denunciado no Tribunal Penal Internacional de Haia por crimes contra a humanidade e genocídio por seu descaso consciente em face da pandemia e da crise de saúde.
Ou a absoluta inação do governo colombiano, apesar de saber que o confinamento da população, principalmente indígena, está colocando suas lideranças na mira dos atores armados. Ou o abandono do governo golpista da Bolívia que, causando um aumento descontrolado de infecções, usa a pandemia e sua incidência como novo pretexto para atrasar, mais uma vez, as eleições e permanecer no poder até conseguir que sejam desmantelados os grandes avanços em direitos e condições de vida dos últimos quatorze anos.
Diante de toda essa situação, é necessário reiterar a convicção prática, normativa e jurídica de que o trabalho deve ser redobrado de maneira especial em função das demandas desses povos. Prática, porque é preciso ir além das palavras e são muitos anos de cooperação e solidariedade que nos mostram que este é o caminho, normativo, porque é reconhecido por instrumentos internacionais de direitos e estratégias de ação e cooperação. De direito, evidentemente, porque como sujeitos políticos, os povos indígenas devem ser os protagonistas de seu presente e de seu futuro. Em suma, menos declarações e mais ações efetivas na defesa e exercício de direitos.
E o cenário apresentado pela pandemia só nos reafirma tudo o que foi anteriormente apontado, bem como a urgência da sua abordagem. Não pode ser que um dia internacional dos povos indígenas passe com alguma declaração ou referência perdida na vida política deste planeta. Existem responsabilidades diversas e múltiplas. Dos povos indígenas, por dar continuidade à luta de décadas para tornar seus direitos efetivos. Da solidariedade internacional, por continuar apoiando, divulgando e fortalecendo suas lutas. Das empresas transnacionais e oligarquias, uma retirada de projetos que empobrecem e destroem territórios até a sua destruição, gerando novas realidades no aprofundamento da crise climática. Das instituições, sociedades e classes políticas em tornar efetivo o respeito pelos direitos desses povos e da natureza e, claro, entre estes, o direito de definir seu presente e futuro, a partir de e em seus próprios territórios.
Recordemos mais uma vez um fato essencial: souberam conservar 80% da biodiversidade mundial melhor do que o sistema capitalista dominante, então, o mundo que se diz desenvolvido neste âmbito tem muito a aprender e pouco a ensinar.
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Indígenas protestam contra o genocídio sofrido pelos povos indígenas durante ATL 2018. Crédito da foto: Mobilização Nacional Indígena (MNI)