por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde
A REFORMA ADMINISTRATIVA
A proposta do governo de reforma administrativa finalmente chegou às mãos de Rodrigo Maia. Na entrega, Jair Bolsonaro foi substituído por Jorge Oliveira, ministro da Secretaria Geral da Presidência da República, para quem a ideia é ter “um Estado mais moderno e mais enxuto”. O presidente da Câmara foi todo elogios: “Parabenizo o presidente pela correta decisão de encaminhar uma reforma que vai no ponto correto, olhando o futuro do serviço público brasileiro com a sua importância que é qualidade e bom atendimento ao cidadão. Nós não podemos mais tirar dinheiro da sociedade com os impostos e do outro lado sair muito pouco em serviços para a sociedade”, disse, afirmando ser possível aprovar o texto ainda este ano.
“No ponto correto” não é bem uma expressão que se possa usar para classificar a PEC: ela poupa, além de militares, as carreiras do topo do funcionalismo público, como parlamentares, juízes, desembargadores e promotores. Somente para os demais, acaba com o regime jurídico único e cria cinco regimes de contratação para diferentes grupos de carreira (só um deles com estabilidade). Também elimina benefícios como licenças-prêmio, aumentos retroativos, férias superiores a 30 dias por ano e a progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço.
O Ministério da Economia diz que não poderia incluir o Legislativo e o Judiciário na jogada porque o Executivo não tem autonomia para fazer esse tipo de mudança nos outros poderes – elas precisariam ser propostas pelos próprios órgãos aos quais estão vinculados, assim como no caso dos militares. Mas só realmente as carreiras mais altas estão protegidas: “um juiz não poderá ser atingido, mas o servidor da área administrativa de um tribunal terá de obedecer às novas regras”, explica O Globo.
A PEC traz ainda uma alteração perigosa: permite ao presidente extinguir ou modificar autarquias e fundações por decreto simples, sem necessidade de debater com o Congresso. A matéria do El País pontua que ficariam vulneráveis as agências reguladoras, como a Anvisa, e institutos como o Ibama. E, acrescentamos nós, universidades e autarquias como a Fiocruz.
Se o texto não agrada ao funcionalismo público, também não é elogiado nem pelos que defendem mudanças como o fim da estabilidade. Na visão deles, um dos maiores problemas seria o fato de o texto não mexer com os servidores atuais, só com as contratações futuras. Segundo a Folha, embora a PEC tenha sido bem recebida pelos partidos de centro-direita, nos bastidores se diz que ela pode vir a travar, “por não conter nada de substancial” e por provocar desgaste com a categoria dos servidores.
NÃO É SEGURO. SERÁ ÉTICO?
Quem não se lembra do biofísico He Jiankui, que no fim de 2018 anunciou a criação dos primeiros bebês geneticamente modificados? Esse foi certamente o experimento mais controverso dos últimos anos e, não à toa, levou o cientista e dois colegas à prisão. Mas abriu de vez a porta para outros semelhantes (“Onde você já viu um pesquisador disposto a desacelerar?“, questionou no ano passado o biólogo russo Denis Rebrikov, após anunciar que não aguardaria protocolos internacionais para orientar sua pesquisa com a edição de óvulos humanos).
O caso He Jiankui e seus inevitáveis desdobramentos na ciência motivaram a criação da Comissão Internacional sobre o Uso Clínico da Edição do Genoma Humano Germinal, com especialistas de vários países convocados pela Royal Society do Reino Unido, a Academia Nacional de Medicina dos EUA e a Academia Nacional de Ciências dos EUA. Ontem, após mais de um ano de investigações, o grupo divulgou um grande relatório.
A comissão destaca que, no momento, os métodos de edição genética ainda não são seguros o suficiente para uso em embriões humanos, porque podem gerar alterações indesejadas e produzir resultados diferentes, mesmo entre células dentro do mesmo embrião. Isso está longe de ser resolvido. Quando for, diz o documento, as técnicas podem vir a ser usadas para evitar que distúrbios genéticos sérios sejam transmitidos – mas, mesmo então, isso deveria ser inicialmente restrito a um conjunto restrito de circunstâncias: doenças genéticas graves causadas por variantes de DNA em um único gene.
Algo nada trivial é que o relatório se debruça sobre questões científicas e técnicas, e quase nada sobre as éticas. “Há um risco de que isso seja percebido como: ‘Se temos esse foco em questões científicas e técnicas, isso significa que já tomamos [eticamente] a decisão de ir em frente com isso”, preocupa-se Jackie Leach Scully, bioética da Universidade de New South Wales em Sydney, no site da Nature. E essas questões, estão, definitivamente, em aberto. “A sociedade deve se perguntar até onde quer chegar e onde está a linha entre a cura e o melhoramento da espécie humana. Evitar o nanismo, por exemplo, seria cura ou melhoramento?”, pondera, no El País, o jurista Federico de Montalvo Jääskeläinen, presidente do Comitê de Bioética da Espanha.
Outro relatório, coordenado pela Organização Mundial da Saúde, deve tratar mais sobre ética. Está previsto para sair no fim deste ano.
PENSANDO MODELOS
Conforme uma vacina viável contra a covid-19 parece se tornar uma realidade mais próxima, cresce a necessidade de discutir (e definir) estratégias para distribuir as doses de modo a dar cabo da pandemia o quanto antes. Isso é mais complicado do que parece, uma vez que, no curto prazo, não haverá vacina para todos. A Science publicou ontem o relatório de um grupo de 19 especialistas em saúde pública que descreve o que chamam de Modelo de Prioridade Justa. Eles criticam alguns planos sugeridos anteriormente, inclusive duas propostas da OMS – uma que previa a distribuição para cada país de acordo com o tamanho de sua população, e o outra que definia prioridade para profissionais de saúde, idosos e pessoas com doenças que sejam fatores de risco para a covid-19.
Os autores argumentam que tomar o tamanho das populações como base não seria suficiente para corrigir distorções, porque países mais populosos não são necessariamente os que mais sofrem com o descontrole da pandemia. Dizem ainda que os países mais ricos são os que têm mais profissionais de saúde e idosos, e que colocar esses grupos na frente também tenderia a beneficiar as nações de alta renda. O modelo defendido por eles se divide em três fases: na primeira, seriam priorizados países onde a vacina evitaria o maior número de mortes prematuras; na segunda, aqueles que iriam reduzir mais a pobreza e evitariam maior perda de renda nacional bruta a cada dose da vacina. A terceira fase teria como foco a redução do contágio na comunidade, e aí teriam prioridade, inicialmente, os locais com maior transmissão.
Agora, pensando na distribuição dentro de um país, também não há muita unanimidade. Embora priorizar grupos de risco pareça fazer sentido, não necessariamente será a melhor escolha. Pesquisadores da Universidade Johns Hopkins University e da Universidade do Sul da Califórnia explicam, no site The Conversation, que proteger os mais frágeis tem sido um guia em políticas públicas pelo menos desde a pandemia de influenza nos anos 1950 – mas, no caso da gripe, estudos têm demonstrado que a melhor forma de proteger idosos é vacinar crianças, os principais propagadores dessa doença. Para a covid-19, defendem eles, também deveriam ser priorizados os prováveis transmissores assintomáticos, especialmente os que trabalham em contato com muita gente: “Depois de cuidar de trabalhadores essenciais, a vacinação deve ser dada aos maiores transmissores do vírus – principalmente os jovens – e só então aos mais vulneráveis. (…) Por mais contraintuitiva que essa estratégia possa parecer, muitas evidências mostram que seria a abordagem certa”, resumem.
NADA MUDOU
O Brasil continua com 9,5 milhões de testes do tipo PCR encalhados, diz o Estadão. O número é quase igual ao identificado pelo jornal no fim de julho (quando eram 9,9 milhões). Até ontem, só foram enviadas 6,43 milhões de unidades a estados e municípios, o que dá menos de um terço das 22,9 milhões adquiridas. E outros mais de 7 mihões de testes comprados ainda estão sendo fabricados na Fiocruz. Nada mudou nos motivos para o encalhamento: seguem em falta insumos para coleta e extração do material genético dos pacientes.
ÀS ESCONDIDAS
Já contamos aqui como, no início de agosto, Ricardo Salles foi a Jacareacanga (PA) acompanhar uma operação de combate a garimpos ilegais e que foram os próprios garimpeiros que saíram fortalecidos: Salles foi hostilizado e, para acabar com o protesto, prometeu uma reunião com o grupo em Brasília – um avião da FAB iria levá-los. O encontro aconteceu já no dia seguinte. E sobre o que eles conversaram? Ninguém sabe, pois não há ata da reunião, nem lista de presença, nenhum registro dela. Foi o que o Ministério do Meio Ambiente respondeu à Época, diante de pedidos via Lei de Acesso à Informação. O caso todo é alvo de uma investigação aberta pelo Ministério Público Federal no Pará para verificar se houve desvio de finalidade quando se usou a aeronave da FAB para levar os garimpeiros até Brasília. Afinal, o avião só deveria ser usado nas operações de combate a garimpos…
Enquanto isso, os alertas de desmatamento do programa Deter, do Inpe, indicam que a Amazônia perdeu mais de mil quilômetros de floresta no mês passado. Foi o segundo pior agosto dos últimos cinco anos, o vice-presidente, que preside o Conselho Nacional da Amazônia, comemorou no Twitter. É que, comparando com 2019 (o pior agosto da história recente da Amazônia), houve melhora.
CRESCE A PRESSÃO
O ministro interino da Saúde Eduardo Pazuello marcou para semana que vem uma conversa com senadores sobre a portaria que inibe a realização de abortos previstos em lei. E, até lá, parece que vai continuar crescendo a pressão contra a portaria. A Defensoria Pública da União (DPU) e outras 11 defensorias estaduais ajuizaram ação civil pública pedindo sua revogação. Mais de dois mil profissionais da saúde e do Direito assinaram um manifesto com o mesmo pedido – o texto deve ser encaminhado hoje pela deputada federal Jandira Feghali a Rodrigo Maia. Cerca de 330 entidades e organizações de defesa dos Direitos Humanos assinam uma nota de repúdio contra a portaria.
OS GUARDIÕES
Os vereadores do Rio rejeitaram a abertura de impeachment contra o prefeito Marcelo Crivella, que usou funcionários contratados pela prefeitura para atrapalhar a imprensa na porta de hospitais municipais. Foram 25 votos a 23.