“Desde que alçou voo no cenário nacional, atuou de forma diametralmente contrária ao direito e já é conhecido como um célebre artífice de lawfare”
Na Fórum
No último dia 25 de agosto, ausente o Ministro Celso de Mello e com um placar de empate que beneficiou o réu, a 2ª Turma do STF anulou pela primeira vez uma sentença que havia sido proferida pelo ex-juiz Sérgio Moro. A decisão, envolvendo o caso Banestado e o doleiro Paulo Roberto Krug, traz uma novidade: a correição por parte da Suprema Corte em casos mal conduzidos pelo ex-juiz, especificamente quanto à forma da coleta de depoimentos durante a verificação da delação premiada e a irregular juntada de documentos aos autos depois das alegações finais da defesa.
Dada a expectativa de outros inúmeros réus e processos diante da forma displicente com que o juiz e o MPF atuaram no contexto da Lava Jato, distorcendo o devido processo legal nas diferentes fases, podemos chegar ao menos a três lamentáveis conclusões: primeiro, a Lava Jato, sob comando de Sérgio Moro, foi uma grande perda de oportunidade histórica para se combater a corrupção dentro da legalidade; segunda: a Lava Jato, sob o comando de Sérgio Moro, perseguiu, processou e condenou inocentes, provocando um sem-número de consequência nos projetos de vida e na biografia de diversos acusados; a terceira grande conclusão vem sendo descoberta aos poucos e com cada vez mais escandalosas revelações: uma imensa trama de colaboração internacional foi usada para afastar forças políticas, líderes e um projeto nacional de desenvolvimento que passava pelas principais empresas e setores estratégicos do Brasil.
E o direito internacional público não pode estar alheio a essa imensa trama que passou substancialmente pela violação explícita e sorrateira de tratados internacionais. Ainda pouco se sabe desse imenso iceberg encoberto, mas não é segredo que Sergio Moro manteve relações íntimas com integrantes da Lava Jato e esteve frequentemente nos Estados Unidos visitando entidades públicas e privadas dedicadas a usar o “combate à corrupção” como ativos estratégicos regionais, passando pelo uso da extraterritorialidade.
Um dos fatos mais graves, revelados pelo site The Intercept Brasil e pela Agencia Pública, foi a colaboração ilegal dos integrantes do MPF de Curitiba com agentes do FBI e do Departamento de justiça dos Estados Unidos (DOJ) a partir dos anos de 2015, incluindo a violação flagrante do Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, o MLAT (Mutual Legal Assistance Treaty), e violando o acordo bilateral de colaboração em matéria judiciária penal. Em suma, o MPF de Curitiba surrupiou a competência do Ministério da Justiça na coordenação da referida cooperação internacional, colaborando efetivamente com o avanço das investigações que, mais adiante, resultaram em acordos de confissão de suborno e o acionamento de mecanismos de jurisdição extraterritorial.
O convencimento da impunidade era tanta entre o Procuradores da Lava Jato de Curitiba, em especial o líder, Deltan Dallagnol, que o levou a cometer a mais escandalosa ilegalidade ao criar uma fundação privada com fins de interesse público, gerida por ele mesmo e fomentada com 2,5 bilhões de reais que teriam sido recuperados pelo acordo de leniência entre a justiça dos Estados Unidos e a Petrobras. E aqui devem ser levantadas muitas aspas em “recuperados”, porque o acordo de leniência, assim como o da Odebrecht e de outras empresas investigadas, permanecem encobertos por sigilo e guardam segredos soturnos. Além do MLAT, outros compromissos internacionais certamente foram “esquecidos”, onerando o patrimônio nacional sem qualquer formalidade, ferindo inclusive competência do Congresso Nacional em acordos bilionários sem os devidos cuidados políticos e legais, uma mácula incalculável para a soberania brasileira.
Se vamos ao direito, como professoras, sabemos que o juiz, ao conduzir um processo e ditar uma sentença, o faz representando o Estado, e é por isso que o princípio da imparcialidade do julgador é condição fundamental para que se cumpra o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, bem como o princípio da presunção de inocência. É um princípio que decorre de conquista civilizatória, constando no artigo 10 da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”.
E a imparcialidade, a contrário senso, é também a garantia do próprio juiz, para que não venha a ter, mais adiante, o dissabor de um decisum anulado. No caso de Sérgio Moro, é muito mais que isso. O ex-juiz e ex-Ministro do Governo Bolsonaro se desintegra aos poucos. Este que ocupou posição central na desestabilização política do país vem sendo compreendido aos poucos nas atitudes subterrâneas e antinacionais.
Desde que alçou voo no cenário nacional, atuou de forma diametralmente contrária ao direito e já é conhecido como um célebre artífice de lawfare. As revelações trazidas pela Vaza Jato apenas confirmaram o que muitos juristas já deduziam. Dos grampos ilegais à relação complementar com veículos da mídia, a Lava Jato se valeu de tudo para afastar o candidato favorito às eleições de 2018. O próprio ex-juiz tem ajudado a revelar detalhes sórdidos. Gaba-se da relação como o delegado Maurício Valeixo e de ter conseguido barrar a decisão do desembargador Favreto que poderia ter soltado Lula em julho de 2018. Gaba-se do “ringue” contra Lula. Talvez movido pelo mesmo sentimento de impunidade que levou seus colegas do MPF de Curitiba a criarem uma Fundação com dinheiro público, não perceba que já caminha ladeira abaixo, e que a quebrada é íngreme.
Recentemente o Supremo reconheceu o uso abusivo de dados falsos na delação de Antonio Palocci às vésperas das eleições de 2018, indubitavelmente prejudicando o pleito eleitoral e, portanto, ferindo ainda mais a já desrespeitada democracia brasileira. Ao violar o princípio da imparcialidade a esse nível de comprometimento democrático, Sérgio Moro não se deu conta de que viria a se tornar um dos personagens mais nefastos da história recente do país.
É o que, de certa forma, demonstraram os resultados do Projeto “Suspeição em Suspenso”, coordenado por importantes Centros de pesquisa em direito do país. Para 97,8% dos professores de direito consultados na base amostral, incluídas as principais universidades do Brasil, Sérgio Moro foi absolutamente parcial nos julgamentos contra Lula. O resultado demonstra um amplo consenso, demonstra o que todos sabem. E mesmo com as artimanhas de última hora, tentando mudar as regras do jogo quanto ao in dubio pro reo, aproxima-se o dia em que a mesma 2ª Turma do STF deverá proferir a decisão que consagrará o que todos sabem, que o Brasil foi traído pela maior farsa jurídica de sua história.
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*Carol Proner, Larissa Ramina, Gisele Ricobom são professoras de Direito Internacional, membros da ABJD – Associação Brasileira de Juristas pela Democracia
Foto: Lula Marques