Em defesa de indígenas em SP, MPF quer anulação de norma da Funai que permite regularização indevida de terras

Instrução Normativa 09/2020 afrouxou critérios de certificação de títulos privados de propriedade em áreas em processo de demarcação

Ministério Público Federal em São Paulo

O Ministério Público Federal (MPF) quer a anulação, no âmbito do estado de São Paulo, dos efeitos de uma norma da Fundação Nacional do Índio (Funai) que, na prática, facilita a regularização de títulos privados de propriedade sobrepostos a terras indígenas em processo de demarcação. A Instrução Normativa (IN) 09/2020, que também está sob questionamento em outros estados, coloca em perigo a integridade de pelo menos 19 territórios historicamente ocupados por comunidades indígenas em São Paulo.

O texto, em vigor desde 16 de abril, restringiu as hipóteses em que a regularização de imóveis rurais em favor de particulares é proibida. Até então, a existência de terras indígenas – ainda que em fase preliminar de estudo para identificação e delimitação – sobrepostas às áreas reivindicadas por particulares era suficiente para que a Funai indicasse ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a impossibilidade da concessão dos títulos privados. Com a mudança trazida pela IN 09/2020, essa sinalização passou a ser feita somente nos casos em que o território ocupado por essas populações tradicionais já estiver definitivamente demarcado.

A demarcação de terras indígenas no país ainda não foi concluída em muitas regiões, e as novas regras acabam ameaçando a integridade de diversos territórios. Em São Paulo, a especulação imobiliária e os interesses por recursos naturais aumentam as pressões sobre essas áreas. Estima-se que inscrições de propriedade privada se sobreponham a 93,1% dos 68.350 hectares de terras indígenas em diferentes fases de reconhecimento no estado. Se a instrução normativa da Funai for aplicada, boa parte desses imóveis poderá ser certificada, viabilizando o desmembramento e o parcelamento dessas áreas e ameaçando a ocupação legítima pelos povos originários. Outra consequência é o aumento dos riscos à preservação ambiental, já que quase 80% desses territórios coincidem com unidades de conservação, a maioria de proteção integral.

Após contestações do MPF, a IN 09/2020 já foi suspensa em vários estados, como Amazonas e Mato Grosso, e declarada nula pela Justiça Federal em Santarém (PA). Em São Paulo, a ação civil pública ajuizada é fruto da iniciativa coordenada de 14 procuradores da República que atuam nas diversas regiões do estado. Eles destacam que a norma da Funai contraria a garantia constitucional dos direitos dos povos tradicionais ao desconsiderar o caráter originário da ocupação dessas áreas e a precedência do direito territorial indígena sobre a propriedade privada comum. Além disso, indicam que as novas regras violam compromissos internacionais assumidos pelo Brasil de proteger esses povos e consultá-los sobre medidas administrativas ou legislativas que possam afetá-los.

Segundo os autores da ação, o ordenamento jurídico brasileiro assegura a integridade dos povos indígenas independentemente do reconhecimento formal de suas terras. “O processo de demarcação não confere nem retira direitos, mas apenas explicita a extensão e os limites do território tradicional ocupado por determinado povo. É, portanto, um ato ou procedimento meramente declaratório, ostentado tal caráter com esteio na ordem constitucional e legal”, afirmaram.

“Considerada a relação diferenciada que os povos indígenas têm com seus territórios, não é admissível imaginar que o dano de qualquer natureza provocado em suas terras a eles interesse na mesma medida em que importa aos demais habitantes do Brasil ou do mundo. O vínculo cultural existente entre os povos indígenas e o território que ocupam, que vai além de um simples vínculo de propriedade, faz a relação do grupo indígena com o dano tão mais acentuada que torna insignificante, por comparação, sua relevância para os indivíduos que lhe são exteriores”, concluíram os procuradores.

Para que os efeitos da instrução normativa sejam revertidos imediatamente, a ação inclui um pedido de liminar que obrigue a Funai a restabelecer parâmetros mais rigorosos para impedir a concessão de título privado, muitos deles previstos na IN 03/2012, em vigor até a edição das regras atuais. Com isso, o MPF quer que o órgão considere a existência não só de terras indígenas já homologadas e regularizadas para barrar as propriedades particulares, mas também de territórios ainda apenas delimitados, declarados, em estudo ou simplesmente reivindicados.

Os procuradores querem também que a Justiça determine liminarmente à Funai a anulação de eventuais certidões que já tenham avalizado a concessão de títulos particulares sem levar em conta os critérios mais rígidos propostos na ação. Ao final da tramitação do processo, o MPF pede que seja reconhecida a ilegalidade, a inconvencionalidade e a inconstitucionalidade da norma em vigor.

O número da ação é 5022138-83.2020.403.6100. A tramitação pode ser consultada aqui.

Leia a íntegra da ação civil pública

Foto: José Eduardo Bernardes

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