Conhecimentos ancestrais fortalecidos: Encontro no Tiquié reúne Kumuã para discutir Covid-19 e cria coordenação de saberes tradicionais indígenas

Na Foirn

Algumas voadeiras que circularam pelo Rio Tiquié na primeira semana de dezembro transportaram passageiros com uma missão especial: trocar saberes tradicionais utilizados no enfrentamento à Covid-19 e estabelecer um protocolo indígena de proteção contra essa doença e outras enfermidades que possam atingir os povos do Rio Negro. Nos dias 4, 5 e 6 de dezembro, a comunidade Serra de Mucura, no Rio Tiquié, município de São Gabriel da Cachoeira (AM), recebeu o 1º Encontro de Conhecedores Tradicionais do Rio Tiquié, promovido pela Foirn com apoio do Instituto Socioambiental (ISA):  foram três dias de intensa troca de saberes entre os kumuã (plural de kumu) – como os conhecedores tradicionais são conhecidos na região. A reunião contou com a presença de um pajé que conduziu ritual para proteger indígenas e não indígenas do novo coronavírus.

“Um dos objetivos do encontro é organizar os protocolos tradicionais indígenas de tratamento e prevenção da Covid-19. Os conhecedores fizeram os contos, as narrativas sobre as prevenções e tratamentos. Avançamos mais, com a criação de uma coordenação interna para conduzir estratégias para combate e prevenção da Covid e para articular outros eventos desse tipo, agregando mais conhecedores”, informa o vice-presidente da Foirn, Nildo Fontes, também diretor de referência da DIAWI´I (Coordenação das Organizações Indígenas do Tiquié, Baixo Uaupés e Afluentes).

Nildo Fontes participou do encontro de Kumuã e explica que a demanda dessa reunião surgiu durante a realização das assembleias regionais eletivas da Foirn, quando indígenas moradores de diversas regiões reforçaram a informação de que recorreram aos saberes ancestrais para combater a Covid-19. Durante toda a pandemia, os povos tradicionais do Rio Negro utilizaram plantas medicinais, benzimentos e rituais para proteção no enfrentamento à pandemia. O relato é de que muitos se curaram com essas práticas, o que levou ao fortalecimento desses conhecimentos. Entretanto, esse resultado não foi registrado pelos órgãos oficiais.

“Muitos de nós tivemos os sintomas da doença, usamos os medicamentos tradicionais e nos curamos, mas isso não está nos registros oficiais. Queremos que isso registrado”, explica Nildo Fontes. 

Na conclusão da assembleia, foi divulgada uma carta em que os Kumuã demandam das instituições apoio para valorização dos saberes, inclusive com remuneração dos conhecedores e construção de casas de saber. Foi criada uma coordenação de conhecedores tradicionais para articulação e mobilização para fortalecimento dos saberes, estando prevista a realização de novo encontro em 2021, na comunidade de Caruru Cachoeira, também no Rio Tiquié. Fazem parte desse grupo o antropólogo Dagoberto Azevedo, da etnia Tukano, doutorando da Universidade Federal do Amazonas (Ufam); o professor Orlindo Marques, da etnia Tukano; Geraldino Tenório, da etnia Tuyuka; o conhecedor Damião Barbosa, Yeba Masã; o agente de saúde indígena (AIS) Arlindo Moura, Tukano.

Entre os conhecedores presentes estavam Nazareno Marques (Tukano); Mário Campo (Desana); Tarcísio Barreto (Tukano); Celestino Azevedo (Tukano); Feliciano Tenório (Tuyuka); Damião Barbosa (Yebamasã). Além deles havia professores, agentes indígenas de saúde (AIS) e Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (Aimas).

O coordenador-adjunto do Programa Rio Negro do ISA, Aloisio Cabalzar, e a analista de comunicação do ISA, Juliana Radler, participaram do encontro de conhecedores do Rio Tiquié. Durante a assembleia foi entregue a representantes de comunidades a publicação Plano de Gestão Territorial e Ambiental do Alto Rio Negro (PGTA), elaborado em conjunto pela FOIRN e ISA. O volume foi lançado em novembro durante a XV Assembleia Eletiva da Foirn.

Aloísio Cabalzar aponta que o uso dos conhecimentos tradicionais durante a pandemia levou a um processo de autoconfiança dos indígenas. “Aqui nessa região, o tratamento principal para os povos Tukano é o benzimento, o encantamento que é feito pelos conhecedores. Eles procuraram nesse conjunto de encantamentos, a origem dessa doença. Então, a importância desse encontro é ser uma oportunidade de vários conhecedores do rio, de vários povos e comunidades, se encontrarem. Nem todo mundo sabe as mesmas coisas. Eles puderam compartilhar o que que estão fazendo, o que está dando certo”, disse.

O encontro foi registrado por equipe do ISA e Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas, coordenada por Juliana Radler. Ela explicou que os registros do encontro serão utilizados para a produção de um documentário de curta duração que mostrará o enfrentamento da Covid-19 a partir de ações articuladas pelo Comitê Interinstitucional de Combate à Covid-19 de São Gabriel da Cachoeira e do uso de remédios e práticas tradicionais dos povos indígenas. As filmagens foram feitas no local pelo documentarista Christian Braga, com apoio do fotógrafo indígena Paulo Desana e do comunicador indígena Mauro Pedrosa. “Foi um encontro de força impressionante. Como jornalistas e comunicadores fomos chamados a levar adiante o recado dos povos indígenas de fortalecimento dos saberes e cuidado com meio ambiente”, disse Juliana Radler.

Durante quatro dias, os conhecedores discutiram em suas línguas indígenas – principalmente Tukno e Tuyuka   –  com apoio de tradução para o português do antropólogo Dagoberto Azevedo, além de Orlindo Marques e Geraldino Tenório. Uma das demandas dos próprios conhecedores é que esses saberes sejam compartilhados para com todos os povos indígenas do Rio Negro. O material será traduzido por comunicadores indígenas e compartilhado por meio de áudios com os demais povos do Rio Negro.

O Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro (Dsei-ARN) apoiou e participou do encontro. Representante do órgão, a psicóloga Ana Délia explicou que os trabalhos das equipes levam em conta a valorização dos saberes indígenas. Ela orientou sobre os procedimentos para evitar a contaminação pelo novo coronavírus, como uso de máscara, álcool em gel e evitar compartilhar objetos.

RITUAL

Localizada na floresta amazônica e no meio do caminho entre os distritos de Taracuá e Pari-Cachoeira, Serra de Mucura é considerado um local sagrado pelos indígenas, abrigando quatro cavernas que representam malocas de onde surgiram os povos indígenas do Alto Rio Negro, do qual o Tiquié é afluente.   

Capitão da Comunidade Serra de Mucura e presidente da Associação Indígena das Comunidades do Médio Tiquié, Roberval Sambrano Pedrosa e seus familiares recepcionaram o grupo de conhecedores. “Estamos realizando um grande evento aqui na comunidade sobre Covid-19. Estou muito alegre. É um lugar especial, com quatro cavernas que representam malocas antigas de onde se se originaram os povos do Alto Rio Negro”, explica.

O encontro se tornou ainda mais especial com a realização de um ritual conduzido pelo pajé Jairo Villegas, que é um Yaí, um tipo de especialista tradicional que trabalha chupando as doenças dos pacientes. Os próprios indígenas explicam que a presença de um pajé nas comunidades foi ficando cada vez mais rara devido à influência dos religiosos que consideravam a prática um pecado, o que aconteceu também com os rituais de proteção.

Na cerimônia realizada na Serra de Mucura foram benzidas substâncias como rapé, tabaco, Ipadu, carajiru, jenipapo e breu branco. O ritual foi regado com a bebida tradicional caxiri, preparada pelas mulheres da comunidade. Cantos e danças ocorreram pelo menos durante 8 horas seguidas. Foram utilizados maracás, chocalhos e adornos.

Durante esse ritual, o pajé rearrumou o mundo, mandando a Covid-19 de volta para o lugar de onde ela saiu. Entretanto, ele mandou o recado de que precisa de uma contrapartida dos não indígenas, que devem parar de mexer no meio ambiente e de   provocar desmatamentos e queimadas. Também ajudaram na condução do rito o conhecedor Damião Amaral e os bayás (mestre de cerimônias) Rodrigo Lima Barbosa e Bernardo Lima Barbosa, todos da etnia Yeba Masã. O pajé fala a língua Makuna, que foi traduzida por Damião Amaral.

Para ajudar no entendimento da ação do pajé, o antropólogo Dagoberto Azevedo compara o ritual realizado na Serra de Mucura a uma dose de reforço da vacina. “O que eles puderam fazer no ritual é a arrumação desse mundo cosmológico com esteio e portas de sustentação. Depois protegeram essa plataforma terrestre com esteios que têm durabilidade para combater o novo coronavirus. Protegeram a pessoa também com uma série de luzes e reflexos”, explica. O pajé também mencionou o uso de plantas amargas, como o cipó saracura. 

O antropólogo indica que o ponto principal é que o pajé mandou a doença de volta para casa. “O ponto principal é que eles encaminharam o vírus para a origem dele, na casa dos brancos. Parecia que (o vírus) veio atacar os povos indígenas da região. O Yaí viu e abriu caminho por onde ele veio. Poderia atingir os não indígenas, mas ele flexibilizou essas portas para que os parceiros continuem trabalhando com os povos indígenas. Com essa flexibilização, o Yaí viu com a força do pensamento que a doença parecia estar querendo retornar. Mas nesse encontro ele reforçou essa proteção. Lançou como se fosse o reforço da vacina, traduzindo para vocês entenderem”, resume Dagoberto.

Veja abaixo as principais demandas que constam da Carta dos Kumuã do Rio Tiquié      

1 – Criar programas referente a valorização e fortalecimento dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas da região Diawií;

2 –   Criar agenda de discussão interinstitucional para elaborar mecanismos para reconhecimento da categoria de conhecedores tradicionais visando à remuneração no processo de trabalho preventivo e de cura das doenças;

3 –   Apoiar projetos específicos para as aldeias indígenas sobre cultura, encontros, cerimônias e atividades relacionadas para seu fortalecimento

4 –   Apoiar na construção das casas dos saberes, usando materiais modernizados; elaborar projetos arquitetônicos para construção de casas de saber com formato tradicional e usar materiais adaptados modernos nas estruturas;

5 –   União das instituições no processo de projetos referentes nos anseios dos povos indígenas;

6-    Criar mecanismos para organizar formação e reconhecimento de novos conhecedores tradicionais indígenas;

7-    Apoiar na divulgação dos trabalhos dos encontros;

8 –   Valorização de antropólogos indígenas para colaborar no processo de organização do protocolo de prevenção e tratamento da Covid-19 e de outras doenças com conhecimentos tradicionais para o uso interno das comunidades dentro de seus territórios.

Participantes moradores de comunidades (por comunidade e em ordem alfabética)

Acará-Poço

Oscarina Caldas Azevedo, Desana, de Acará-Poço

Rafael Antônio Azevedo, Tukano, de Acará-Poço

Boca do Sal

Rafael Marques, Tukano, de Imaculada/Boca do Sal

Caruru-Cachoeira

Claudimar Rezende Marques, Tukano, de Caruru-Cachoeira

Nazareno Marques, Tukano, de Cachoeira Caruru

Orlindo Marques, Tukano, de Caruru-Cachoeira

Cunuri

Estévão Monteiro Pedrosa, Tukano, Cumuri

João Carlos Pedrosa, Tukano, de Cunuri

Guadalupe

Oziel Barbosa Macedo, Desano, de Guadalupe

Morro do Beija-Flor

Bernardo Lima Barbosa, Yeba Masã, de Morro do Beija-Flor

Tarcísio Lima, Yeba Masã, de Morro do Beija-Flor

Pirarara-Poço

Alesânia Aguiar Azevedo, Tukano

Arnaldo Azevedo, Tukano, de Pirarara-Poço

Celestino Rezende Azevedo, Tukano, de Pirarara-Poço

Derluce Massa Azevedo, Tukano, de Pirarara-Poço

Edigio Veiga, Desano, de Pirara-Poço

Eugênia Pimentel, Desano, de Pirarara-Poço

João Pedro Lima Azevedo, Tukano, de Pirarara-Poço

Jones Rezende, Tukano, de Pirarara Poço

Jusaleia Veiga, Desana, Pirarara-Poço

Osimar Azevedo, Tukano, de Pirarara-Poço

Palmira Azevedo, de Pirara-Poço

Rafael Peixoto Veiga, Desano, de Pirarara-Poço

Rosilene Aguiar Azevedo, Tukano, de Pirarara- Poço

Rosivaldo Aguiar Azevedo, Tukano, de Pirarara-Poço

Vilmar Rezende Azevedo, Tukano, de Pirara-Poço

Porto Amazona

Jairo Lemdaño Villega, Makuna, Porto Amazona

Santa Rosa

Inácio Macedo Barbosa, Yeba-Masã, de Santa Rosa

João Bosco Macedo, Desano, de Santa Rosa

Mateus Gomes Macedo, Desano, de Santa Rosa

São Domingos

Tarcísio Borges Barreto, Tukano, de São Domingos

São Felipe

Damião Amaral Barbosa, Yeba-Masã, São Felipe

Maria Áurea Nunes Batista, Baniwa, de São Felipe

Rodrigo Lima Barbosa, Yeba Masã, de São Felipe

São José I

Rogelino da Cruz Alves Azevedo, Tukano, de São José I

São Luiz

Cornélio Gonçalves, Desano,

São Miguel

Geraldino Tenório, Tuyuka, de São Miguel

São Pedro

Anunciata Rezende Marques, Tukano, de São Pedro

Edilson Villegas Ramos, Tuyuka, de São Pedro

Feliciano Tenório, Tuyuka, de São Pedro

João Paulo Tenório, Tuyuka, de São Pedro

Josival Azevedo Rezende, tuyuka, de São Pedro

São Sebastião

Germano Campos, Desano, São Sebastião

Margarete Pinheiro, Tuyuka, de São Sebastião

Mário Campos, Desano, de São Sebastião

Odilon José Lopes Campos, Desano, de São Sebastião

Serra de Mucura

Enedina Azevedo, Desana, Serra do Mucura

Ernesto da Silva, Tukano, Serra do Mucura

Jocimara Alves Maia, Tukano, de Serra do Mucura

José Calixto Araújo Pedrosa, Tukano, Serra do Mucura

Josiane Maria Pedrosa, Tukano, de Serra do Mucura

Maria Aparecida Bernardes, Tariana, de Serra do Mucura

Maria de Lourdes Marques Tenório, Tuyuka, de Serra do Mucura

Roberval Sambrano Pedrosa, Tukano, Serra do Mucura

Taracuá

Arlindo Matos Moura, Tukano, de Taracuá

Isaías da Silva, Tukano, de Taracuá

FOIRN

Vice-presidente, Nildo Fontes

ISA

Aloisio Cabalzar, coordenador-adjunto do Programa Rio Negro

Juliana Radler, analista de comunicação

Ana Amélia Hamdan, jornalista

Christian Braga, documentarista

Paulo Desana, fotógrafo e documentarista indígena

Mauro Pedrosa, Aima

Julião, Barqueiro

Augusto, Barqueiro

Antropólogo indígena

Dagoberto Azevedo, Tukano, antropólogo doutorando da Univesidade Federal do Amazonas (Ufam)

Dsei-ARN

Ana Délia, Psicóloga

Colaborou: Ana Amélia Hamdan/ISA e Nildo José Miguel Fontes/Foirn

Imagem: Participante do 1º Encontro de Conhecedores Tradicionais do Rio Tiquié. Foto: Ana Amélia Hamdan/ISA

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